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PROCESSO CIVIL
Desjudicialização Dos Procedimentos E Sistema De Justiça Multiportas

William Paiva Marques Júnior
05/05/2025
O art. 3º do CPC/20151, consolidou o ingresso, no ordenamento jurídico brasileiro, da denominada Justiça Multiportas. A ideia do multi-door courthouses é justamente possibilitar a resolução dos conflitos de forma mais adequada, admitindo outros métodos de solução de conflitos, além da demanda judicial. Sua adoção coaduna-se com o espírito pacificador previsto no CPC/2015 mediante o qual a lide combativa é substituída pela busca incessante da solução mais adequada e satisfativa.
O termo Multi-door Courthouses foi, pela primeira vez suscitado, em Washington D.C. em 1976, na denominada Pound Conference, promovida pela American Bar Association (ABA). Frank Sander, professor da Universidade de Harvard, convidado a palestrar no evento, vislumbrou o surgimento de um tribunal com várias portas individualmente consideradas, cada uma apta a resolver uma espécie de conflito, dando aos mais diversos casos a solução mais adequada e satisfatória possível2.
Para Fredie Didier Jr.3, é importante registrar que o CPC/2015 ratificou a consagração de um sistema de justiça multiportas: a tutela dos direitos pode ser alcançada por diversos meios, sendo a justiça estatal mais um deles. Atualmente, deve-se falar em “meios adequados de solução de conflitos”, designação que engloba todos os meios, jurisdicionais ou não, estatais ou não, e não mais em “meios alternativos de solução de conflitos” (alternative dispute resolution), que exclui a jurisdição estatal comum e parte da premissa de que ela é a prioritária. Nesta nova justiça, a solução judicial deixa de ter primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser a ultima ratio, extrema ratio.
Nessa ordem de ideias, o Judiciário deixaria de ser o protagonista absoluto na resolução de conflitos e passaria a ser um dos meios para elucidar a questão a ser apreciada, de acordo com a natureza e as especificidades de cada caso. O acesso à justiça se ampliaria e haveria a possibilidade, com a redução dos processos judiciais, de soluções mais justas, eficientes, céleres e tempestivas para as lides.
Para Luiz Guilherme Marinoni; Sérgio Cruz Arenhart e DanielMitidiero4, a necessidade de adequação da tutela dos direitos não se dá apenas na forma judiciária. O CPC reconhece que, muitas vezes, a forma adequada para a solução do litígio pode não ser a jurisdicional. E por isso que o seu art. 3º reconhece a arbitragem (§ 1º) e declara que é dever do Estado promover e estimular a solução consensual dos litígios (§ § 2º e 3º ). Nessa linha, o Código corretamente não alude à arbitragem, à conciliação e à mediação e a outros métodos como meios alternativos, mas simplesmente como métodos de solução consensual de conflitos. Embora tenham nascido como meios alternativos de solução de litígios (alternative dispute resolution), o certo é que o paulatino reconhecimento desses métodos como os meios mais idôneos em determinadas situações (como, por exemplo, a mediação para conflitos familiares, cuja maior idoneidade é reconhecida pelo próprio legislador, no art. 694, CPC) fez com que se reconhecesse a necessidade de alteração da terminologia para frisar semelhante contingência. Em outras palavras: de métodos alternativos passaram a métodos adequados, sendo daí oriunda a ideia de que o sistema encarregado de distribuir justiça não constitui um sistema que comporta apenas uma porta, contando sim com várias portas (multi-door dispute resolution), cada qual apropriada para um determinado tipo de litígio.
Informado pelo sistema multiportas, o Código de Processo Civil de 2015 prescreve que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º do CPC/2015), recomendando que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução harmoniosa de conflitos sejam estimulados por Juízes, Advogados, Defensores Públicos e Membros do Ministério Público (art. 3º, § 3º do CPC/2015), inclusive no curso do processo judicial (art. 139, V do CPC/2015). Esses dispositivos do CPC instigam os magistrados à adoção da função instrumental do processo, abandonando, de forma progressiva, a vetusta sistemática do processo como um objetivo em si mesmo.
Segundo Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes5, para os casos de eventuais colisões entre princípios o sistema constitucional impõe a regra da proporcionalidade, reafirmada nos arts. 8º- e 489, §2º- do CPC e responsável pela harmonização dos princípios e pelo justo equilíbrio entre os meios empregados e os fins a serem alcançados. É a proporcionalidade que autoriza e legítima a concessão de medidas urgentes antes da citação do réu (medidas liminares concedidas inaudita altera parte) e portanto sem a prévia efetivação da garantia constitucional do contraditório- sendo essa aparente violação um culto a um valor também elevado e de igual modo amparado pela Constituição Federal de 1988, que é o do acesso à justiça mediante a efetividade e tempestividade da tutela jurisdicional. (art. 5º-, inciso XXXV da CF/88).
Nessa nova estratégia multiportas, avulta em importância a missão institucional da Defensoria Pública, eivada de forte componente funcionalizado, se dá no fato de que ao prestar essa assistência jurídica integral, a Defensoria Pública passou a envolver duas funções que até então eram características da advocacia privada. A primeira se refere à consultoria, e a segunda a de representação, ampliada à esfera extrajudicial, quando for imprescindível para a plena defesa dos interesses das pessoas necessitadas.
Neste diapasão, decidiu o STF6 que a vertente extrajudicial da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública permite a orientação (informação em direito), a realização de mediações, conciliações e arbitragem (resolução adequada de litígios), dentre outros serviços, evitando, muitas vezes, a propositura de ações judiciais.
A partir da adoção desse novo modelo processual civil, recomenda-se que as partes sejam instadas a manifestar-se de forma integrada e colaborativa sobre o interesse na conciliação do litígio, tendo em vista o dever do juiz de busca pela via conciliatória e o modelo de tribunal multiportas, adotado pelo CPC/2015, tendo como um de seus paradigmas a ideia da audiência de conciliação e de mediação, prevista no art. 334 do CPC/2015.
De acordo com o STJ7, a desjudicialização dos conflitos e a promoção do sistema multiportas de acesso à justiça, deve ser francamente incentivada, estimulando-se a adoção da solução consensual, dos métodos autocompositivos e do uso dos mecanismos adequados de solução das controvérsias, tendo como base a capacidade que possuem as partes de livremente convencionar e dispor sobre os seus bens, direitos e destinos.
Nessa ordem de ideias, tem-se que o legislador ao fomentar a atividade extrajudicial na desjudicialização dos procedimentos, especialmente conforme prospectado por meio da Resolução nº. 571 de 26/08/2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa, bem como pelo Marco Legal das Garantias (Lei nº. 14.711, de 30 de outubro de 2023), o qual normatiza a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, a Lei nº. 14.382, de 27 de junho de 2022 (Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), que introduz a possibilidade de adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, está-se corroborando como espírito do legislador ao aprovar o Código de Processo Civil, que buscou a ampliação de métodos adequados de solução de conflitos e a implementação de uma Justiça Multiportas. Ainda por força do sistema multiportas, o Provimento nº 149 de 30/08/2023 do CNJ, determina que os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro serão facultativos.
O objetivo da Justiça Multiportas no Processo Civil é a busca compartilhada de valorização da concertação de interesses entre as partes envolvidas, em substituição ao arcaico incentivo ao demandismo, aos infindáveis recursos e manejo de artifícios processuais. Mas isso somente se pode alcançar por meio da atuação vanguardista dos magistrados, motivados pelos ideais da equidade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da economia e da justiça do caso concreto.
O modelo Justiça Multiportas inaugura uma nova compleição de atuação, pautada na busca do método mais adequado para a solução do caso concreto, a qual nem sempre passa pelo Poder Judiciário, o que reflete diretamente na contenção da litigiosidade, plasmado na ideia de desjudicialização. Uma vez que outras oportunidades de solucionar o litígio surgem, maior a possibilidade de o judiciário conseguir trabalhar melhor e julgar os casos que realmente dependem de uma análise mais verticalizada.
É reconhecida a aplicação do método de conciliação para conflitos episódicos (problema de interpretação de cláusula contratual, por exemplo), ao passo que a técnica da mediação para situações duradouras (conflitos de família, por exemplo).
Deve-se ressaltar que não são todos os casos adequados às técnicas de conciliação, mediação, arbitragem e negociação, da forma ostensiva prevista pelo CPC/2015.
Até mesmo no Direito Administrativo, a Lei nº. 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, permite em seu art. 151, o uso de métodos adequados na solução de controvérsias na execução de contratos administrativos. Dentre esses métodos estão a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de controvérsias (dispute board) e a arbitragem. O objetivo é evitar a necessidade de recorrer ao longo caminho do processo judicial, proporcionando assim uma resolução mais ágil e eficiente dos impasses, em procedimentos céleres, contratuais e na tomada de decisão.
A crescente complexidade dos conflitos, justifica a necessidade de verticalização da adoção do sistema de justiça multiportas, exigindo um caráter pedagógico dos profissionais do Direito em abrir a racionalidade judiciária para a sensibilidade que o caso requer de uma forma democrática, inclusiva e satisfativa.
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NOTAS
1 “Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
2 ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tania; CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
3 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 19ª- edição. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, pág. 185.
4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Comentado. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, pág. 158.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, pág. 53.
6 Veja-se: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Estadual que disciplina a homologação judicial de acordo alimentar firmado com a intervenção da Defensoria Pública (Lei 1.504/1989, do Estado do Rio de Janeiro). 3. O Estado do Rio de Janeiro disciplinou a homologação judicial de acordo alimentar nos casos específicos em que há participação da Defensoria Pública, não estabelecendo novo processo, mas a forma como este será executado. Lei sobre procedimento em matéria processual. 4. A prerrogativa de legislar sobre procedimentos possui o condão de transformar os Estados em verdadeiros “laboratórios legislativos”. Ao conceder-se aos entes federados o poder de regular o procedimento de uma matéria, baseando-se em peculiaridades próprias, está a possibilitar-se que novas e exitosas experiências sejam formuladas. Os Estados passam a ser partícipes importantes no desenvolvimento do direito nacional e a atuar ativamente na construção de possíveis experiências que poderão ser adotadas por outros entes ou em todo território federal. 5. Desjudicialização. A vertente extrajudicial da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública permite a orientação (informação em direito), a realização de mediações, conciliações e arbitragem (resolução alternativa de litígios), entre outros serviços, evitando, muitas vezes, a propositura de ações judiciais. 6. Ação direta julgada julgada improcedente.” (STF- ADI 2922 / RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, julgamento: 03/04/2014.)
7 “CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIVÓRCIO CONSENSUAL. ACORDO SOBRE PARTILHA DOS BENS. HOMOLOGAÇÃO POR SENTENÇA. POSTERIOR AJUSTE CONSENSUAL ACERCA DA DESTINAÇÃO DOS BENS. VIOLAÇÃO À COISA JULGADA. INOCORRÊNCIA. PARTES MAIORES E CAPAZES QUE PODEM CONVENCIONAR SOBRE A PARTILHA DE SEUS BENS PRIVADOS E DISPONÍVEIS. EXISTÊNCIA, ADEMAIS, DE DIFICULDADE EM CUMPRIR A AVENÇA INICIAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE. AÇÃO ANULATÓRIA. DESCABIMENTO QUANDO AUSENTE LITÍGIO, ERRO OU VÍCIO DE CONSENTIMENTO. ESTÍMULO ÀS SOLUÇÕES CONSENSUAIS DOS LITÍGIOS. NECESSIDADE. 1- Ação distribuída em 14/09/2012. Recurso especial interposto em 20/10/2015 e atribuído à Relatora em 15/09/2016. 2- Os propósitos recursais consistem em definir se houve negativa de prestação jurisdicional e se é possível a homologação de acordo celebrado pelas partes, maiores e capazes, que envolve uma forma de partilha de bens diversa daquela que havia sido inicialmente acordada e que fora objeto de sentença homologatória transitada em julgado. 3- Ausentes os vícios do art. 535, II, do CPC/73, não há que se falar em negativa de prestação jurisdicional. 4- A coisa julgada material formada em virtude de acordo celebrado por partes maiores e capazes, versando sobre a partilha de bens imóveis privados e disponíveis e que fora homologado judicialmente por ocasião de divórcio consensual, não impede que haja um novo ajuste consensual sobre o destino dos referidos bens, assentado no princípio da autonomia da vontade e na possibilidade de dissolução do casamento até mesmo na esfera extrajudicial, especialmente diante da demonstrada dificuldade do cumprimento do acordo na forma inicialmente pactuada. 5- É desnecessária a remessa das partes à uma ação anulatória quando o requerimento de alteração do acordo não decorre de vício, de erro de consentimento ou quando não há litígio entre elas sobre o objeto da avença, sob pena de injustificável violação aos princípios da economia processual, da celeridade e da razoável duração do processo. 6- A desjudicialização dos conflitos e a promoção do sistema multiportas de acesso à justiça deve ser francamente incentivada, estimulando-se a adoção da solução consensual, dos métodos autocompositivos e do uso dos mecanismos adequados de solução das controvérsias, tendo como base a capacidade que possuem as partes de livremente convencionar e dispor sobre os seus bens, direitos e destinos. 7- Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 1623475/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 20/04/2018) (Grifou-se)