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A prisão do devedor de alimentos em tempos de pandemia

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Fernanda Tartuce

Fernanda Tartuce

12/11/2020

Fernanda Tartuce
Leonardo Silva Nunes
Victor Fernando Muniz Rocha

Dentre os vários dilemas jurídicos vivenciados a partir da pandemia do COVID-19, impasses relacionados à satisfação do crédito alimentar e à possibilidade de prisão do devedor de alimentos ganharam relevo. Afinal, seria adequado este meio de execução durante o período de exceção? A questão se avulta quando levadas em conta as medidas de distanciamento social reproduzidas mundialmente, bem como o fato de que a pandemia ainda não acabou; o Brasil e o mundo ainda aguardam uma vacina confiável e apta a promover a suficiente imunização da população.

O risco de encarceramento, como era de se esperar, não passou despercebido do Poder Público. Em março de 2020 foi publicada uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça para que os magistrados considerassem “a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus”[1]. Tal teor foi encampada pelo Congresso Nacional ao editar a Lei 14.010/2020: tal ato normativo, ao instituir o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19), dispôs no art. 15: “até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações”.

Diante desse cenário, evidenciado o problema da “vigência temporária” da previsão legal – que estipulou, com exclusividade, a modalidade de prisão domiciliar em casos de inadimplemento do crédito alimentar -, é importante analisar possibilidades e buscar soluções.

Ao consagrar o vigente regime processual civil (Lei 13.105/2015), atento ao princípio constitucional do acesso universal à justiça (art. 5º, XXXV, CRB/1988), o legislador foi explícito ao determinar que tal comando refere-se não somente à atividade cognitiva, mas também à satisfação prática do direito (art. 4º, CPC). Ressaltou, aliás, o dever de cooperação na busca da efetividade das decisões (art. 6º, CPC). Nessa linha, pode-se falar em direito fundamental à tutela processual do crédito, que, segundo Hermes Zaneti Júnior[2], decorre também da modificação na compreensão da tutela da propriedade (de direito de propriedade passa-se ao direito à propriedade).

Para o adimplemento do crédito alimentar, dada a sua essencialidade, admitem-se ferramentas como o uso dos meios executivos típicos da prisão civil (art. 528 do CPC) e o desconto em folha de rendimentos (art. 833, § 2º c/c 529, § 3º). A possibilidade da utilização apriorística desses meios – consideravelmente onerosos, vale ressaltar – não significa, entretanto, sua inevitabilidade.

Antes de avançar, um alerta: ainda que sejam utilizadas medidas coercitivas, a execução civil não visa punir o devedor (objetivo perseguido na seara penal); sendo seu desiderato alcançar a satisfação do crédito, a atividade executiva deve ser útil a tal mister. Assim, caso se verifique que determinado meio executivo não tem o condão de, direta ou indiretamente, fazer com que a obrigação seja adimplida, ele não deve ser empregado (já que se prestaria unicamente a castigar o devedor).

A prisão civil do devedor de alimentos é tema que, com alguma recorrência, se vê envolto em críticas e divergências; como não poderia deixar de ser, o assunto voltou a suscitar discussões de grande relevo em razão da pandemia do coronavírus.

Como apontado, a necessidade de distanciamento social fez com que o Conselho Nacional de Justiça, ainda em março, recomendasse “a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia” (art. 6º, Recomendação nº 62/20).

O STJ passou a decidir nesse sentido, conforme consta nas decisões proferidas: a) no HC 566.897/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, em 17/3/2020; b) no HC 568.021/CE, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, em 23/3/2020[3]; c) no HC 561.257/SP, rel. Min. Raul Araújo, em 7/4/2020, posteriormente confirmada por acórdão da 4ª Turma, à unanimidade, em 5/5/2020 (reproduzido no Informativo de Jurisprudência nº 671).

Após o avanço jurisprudencial, houve contemplação legislativa do tema: a Lei 14.010 (de 10/6/2020) trouxe mais segurança e previsibilidade  – ainda que temporariamente – para a situação ao tornar obrigatória (e não meramente recomendável) a prisão domiciliar do devedor de alimentos.

Se, de um lado, a determinação legal (que reverbera o teor de recomendação e decisões) é dotada de inegável mérito, especialmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana no contexto da pandemia, por outro lado a determinação de cumprimento da prisão em regime domiciliar dá ensejo a, no mínimo, dois questionamentos importantes.

A primeira questão diz respeito à inefetividade da medida: ao manter o preso em casa, como fica o objetivo de fazê-lo adimplir a dívida alimentar? Nessa nova configuração, a prisão não se afigura suficientemente coercitiva.[4]

O segundo questionamento refere-se ao problema da “temporariedade” do art. 15 da Lei 14.010/2020, já que segundo tal regra a prisão domiciliar seria modalidade de adoção exclusiva pelo magistrado até 30 de outubro de 2020. A partir desta data, estará o devedor de alimentos sujeito à prisão em regime fechado? Ou deverá o magistrado, em obediência à Recomendação 62 do CNJ, continuar empregando o regime domiciliar ao decreto de prisão?

O questionamento se justifica porque, quando da redação do presente artigo (em 30/10/2020), não havia notícia sobre a existência de projeto de lei para prorrogar o prazo – embora o motivo determinante para a edição do diploma normativo ainda subsistisse.

A pandemia ainda é um fato global a que todos estamos sujeitos, não havendo no horizonte uma previsão segura de imunização em massa.

Diante do quadro, vislumbra-se o risco iminente de proliferação de casos em que credores peticionem em juízo requerendo que devedores de alimentos sejam encarcerados ante a perda de vigência da norma sobre regime domiciliar.

Nada obstante, vislumbram-se algumas soluções. Apesar da falta de disposição legal, a partir do dia 30 de outubro os magistrados brasileiros poderão estender o emprego da modalidade domiciliar à prisão do devedor de alimentos com fundamento na já mencionada Recomendação CNJ N. 62/2020, que teve sua vigência prorrogada por mais 180 dias pela Recomendação CNJ N. 78/2020, “ante a subsistência da crise sanitária e da permanência dos motivos que justificaram a sua edição”.[5]

Outro caminho foi apresentado em julgado da 3ª Turma do STJ que, malgrado tenha negado o regime domiciliar, determinou a suspensão do decreto prisional do devedor de alimentos durante a pandemia[6]. Por esta via, embora não sofra, de imediato, os efeitos da medida coercitiva, saberá o devedor que, ultrapassado o período pandêmico, estará sujeito à prisão em regime fechado caso não tenha efetuado o pagamento do débito alimentar, nele incluídas as parcelas que se vencerem por todo o período.

Há, ainda, a possibilidade de reedição da norma contida no art. 15 da Lei 14.010/2020 por meio de adicional iniciativa legislativa.

Até lá, faria bem a provocação judicial do tema, pela via do Habeas Corpus coletivo, por impetração da Defensoria Pública ou outro legitimado à tutela de direitos coletivos com vistas a reconhecer expressamente a inviabilidade de prisão do devedor de alimentos em regime fechado? Esse foi o caminho buscado com êxito no início da pandemia; apesar da Recomendação n. 62 do CNJ ter vindo a lume, ela não se mostrava suficiente. Atrilha judicial precisará ser novamente percorrida? Causa espécie a impressão de que infelizmente novas iniciativas precisarão ser intentadas por atores já assoberbados em suas necessárias atuações; afinal, a Defensoria Pública vem sendo muitíssimo acionada diante do incremento no número de pessoas vulneráveis.

De todo modo, ao menos até surgirem condições seguras para contornar os efeitos sanitários da pandemia, o regime fechado não parece ser a modalidade adequada para o cumprimento da prisão do devedor de alimentos. Nessa medida, infelizmente credores que acreditaram na suspensão da prisão do devedor de alimentos até 30/10/2020 tenderão a se sentir frustrados diante da persistência do quadro. A criatividade para buscar novas técnicas executivas, decididamente, segue sendo desafiada no contexto pandêmico.

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[1] Recomendação Nº 62 de 17/03/2020, disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246, acessado em 30 out. 2020.

[2] ZANETI JUNIOR, Hermes. O processo de execução no Código de Processo Civil brasileiro de 2015 e o direito fundamental à tutela processual do crédito. In: Rogéria Dotti; Sergio Arenhart; Daniel Mitidiero. (Org.). O Processo Civil entre a Técnica Processual e a Tutela dos Direitos: estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, v. 1, p. 577-594.

[3] Concedida a tutela provisória, a Defensoria Pública da União pediu a ampliação do polo ativo do habeas corpus sustentando a necessidade de extensão dos efeitos da decisão proferida a outras pessoas em iguais condições, o que foi deferido pelo Min. Relator, “para determinar o cumprimento das prisões civis por devedores de alimentos em todo o território nacional, excepcionalmente, em regime domiciliar” (cf. decisão disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/monocraticas/decisoes/?num_registro=202000728103&dt_publicacao=30/03/2020, proferida em 26/3/2020, e acessada em 30 out. 2020).

[4] A reduzida efetividade “coercitiva” da medida parece decorrer logicamente do fato de que grande parte da população foi instada a permanecer em casa. Há, inclusive, quem defenda a possibilidade de se conjugar (com a prisão) outros meios atípicos de execução, tais como a interrupção de serviços de streaming (NetFlix, Spotify, AmazonPrime), internet e telefone (cf. “Justiça pode cortar internet e telefone de devedor de pensão em prisão domiciliar”, disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-06/justica-cortar-internet-devedor-pensao-prisao-domiciliar, acessado em 30 out. 2020).

[5] Recomendação n. 78, de 15 de setembro de 2020.  Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/09/Recomenda%C3%A7%C3%A3o-n%C2%BA-78-altera-e-prorroga-o-prazo-da-Recomenda%C3%A7%C3%A3o-62-2020-1.pdf, Acesso em: 30 out. 2020.

[6] Terceira Turma nega regime domiciliar, mas suspende prisão de devedor de alimentos durante a pandemia. Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Terceira-Turma-nega-regime-domiciliar–mas-suspende-prisao-de-devedor-de-alimentos-durante-a-pandemia.aspx#:~:text=%E2%80%8B%E2%80%8BA%20Terceira%20Turma,durante%20o%20per%C3%ADodo%20da%20pandemia. Acesso 30 out. 2020.

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