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Responsabilidade, imputação e culpabilidade
09/11/2020
Ainda que intimamente relacionadas responsabilidade-imputabilidade e culpabilidade não são expressões equivalentes ou sinônimas. Na realidade, são conceitos que devem ser distinguidos e bem determinados.
Na verdade, é impossível bem compreender a noção de culpabilidade e suas variações sem se ater à questão terminológica e conceitual relativamente à responsabilidade e à imputação.
No Direito romano, a noção de responsabilidade designava o dever de responder a uma acusação, de restabelecer uma ordem ou de reparar um dano sem que tenha sido necessariamente seu autor, e mesmo sem que existisse culpa.
É a moral e o nominalismo cristão que vão fazer da responsabilidade “imputação de um ato”, reconstruindo o direito em torno da liberdade individual.[1]
A responsabilidade vem definida pelo dever de reparação do dano, no âmbito civil, e pelo dever de suportar a punição ou sofrer a pena, no penal. Portanto, vincula-se à ideia de punição, de castigo, sendo que ao autor, ser responsável, se atrela a culpabilidade. Diz-se então que uma pessoa é responsável quando está obrigada a responder por seus próprios atos. Responsável é todo aquele que está sujeito ao dever obrigacional, responde por seus atos, presta contas de suas ações. Seu fundamento reside na liberdade de vontade, na liberdade de autodeterminação.[2]
Alude Kelsen que, “não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. Imputação e liberdade estão, de facto, essencialmente ligadas entre si”.[3]
Parece que o sentimento de responsabilidade supõe a civilização, com as noções de lei, ordem, sanção.[4]
Antes então de se afirmar a responsabilidade, vem à tona o conceito de imputação, por meio do qual se atribui a alguém a prática de uma conduta como seu verdadeiro autor. Na ideia de imputação se assenta relação primitiva com a obrigação (reparar o dano ou sofrer a pena), e que precede, de certa forma, a de responsabilidade. Esta última, segundo o dicionário Aulete, traduz-se na “obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros; caráter ou estado do que é responsável ou do que está sujeito a responder por certos atos, e a sofrer-lhes as consequências”. Em outros termos, “exprime a obrigação de responder por alguma coisa. Quer significar, assim, a obrigação de satisfazer ou executar o ato jurídico”.[5]Portanto, retrata um dever jurídico.
Já a imputação, do latim imputatio, imputare (levar em conta, atribuir), tem o significado de atribuir a alguém, como a ele pertencente, a responsabilidade de algum ato. Designa a ação ou o efeito de imputar, atribuir, a responsabilidade de um fato (negativo) a uma pessoa, como obra sua, de sua autoria. Nesse sentido, significa “o ato pelo qual se declara que alguém, como autor ou causador de uma ação, como efeito, de que é causa, deve responder pelas consequências dessa ação”.[6] Importa então em uma relação normativa, de dever-ser.
Desse modo, parece haver uma relação que vai do juízo de imputação ao de retribuição, e o reverso da retribuição à atribuição, diz Ricoeur. Não é outro o pensar kelseniano quando se reporta ao tema: “retribuição é a imputação da recompensa ao mérito, da penitência ao pecado, da pena ao ilícito”. [7] Sem dúvida, a imputação se liga à retribuição, e vice-versa.
No dicionário Trévoux (1771) consta a exata definição do termo imputação: “imputar uma ação a alguém é atribuí-la a esse alguém como a seu verdadeiro autor, lançá-la por assim dizer à sua conta, e torná-lo responsável por ela”.[8] Pode-se dizer que o conceito de imputação é essencial à responsabilidade, e consiste em se determinar o sujeito que está “detrás” do ato, a pessoa implicada pelo fato.
Nessa perspectiva, a ideia de imputabilidade enquanto capacidade para a imputação já vinha norteada em Kant, quando assinala que a “imputação (imputatio), no sentido moral, é o juízo pelo qual alguém é considerado como autor (causa libera) de uma ação, que então se chama fato (factum), e que se acha situada sob leis”. Define pessoa “como o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação” e coisa “como o corpo não suscetível de imputação”.[9]
Como se vislumbra, na seara da antropologia filosófica, a intrincada noção de culpabilidade costuma ser apresentada sob a forma de culpabilidade teológica, moral, política e jurídica.
A elaboração de um conceito de culpabilidade a partir da experiência jurídica começa tão somente com a representação grega de penalidade, e se consubstancia na racionalidade lógica do sistema jurídico romano.
Na busca da proporcionalidade entre a pena e o delito, no campo penal, e na lógica da compensação entre o dano causado, e a reparação, no civil, bem se demonstra esse esforço de racionalidade em que se funda o juízo de culpabilidade jurídica.
Em termos genéricos, a culpabilidade diz respeito ao indivíduo capaz de responder pelas consequências decorrentes de seus atos. Daí a metáfora “contas a prestar” bem qualificar esse processo de imputação do agir humano ilícito. É este determinado em razão de leis preestabelecidas e conta com a interposição de um terceiro, externo ao sujeito. Nessa sequência, “a imputação designa o culpável: é ele o autor, e nenhum outro”[10] No aspecto jurídico-penal, exprime reprovabilidade pessoal pela realização da conduta típica e ilícita, quando poderia ser de modo diverso.
Contrariamente, a culpabilidade moral concerne ao foro íntimo da pessoa, mas agasalha também uma dimensão retrospectiva de responsabilidade.[11]Aliás, e sobre esse ponto, afirma-se que noção de responsabilidade se apresenta sob duas perspectivas principais: sob um ponto de vista interno, como relação da vontade à suas determinações (responsabilidade moral); e sob um ponto de vista externo, como relação exterior à consciência, que liga as consequências de uma ação à pessoa de seu autor (responsabilidade legal). O homem se concebe como moralmente responsável em relação à própria consciência, que lhe obriga o respeito ao dever.[12] Diz respeito apenas ao indivíduo, releva ao foro interior da pessoa, sendo a consciência seu único juiz. Assim, aprofunda-se a ideia de culpa e de responsabilidade pessoal, onde há um enfrentamento entre remorso e redenção. A consciência da culpa é uma consciência dividida, atormentada, sendo o sentimento de culpabilidade expressão dessa discórdia interna. Relaciona-se com o nascimento da subjetividade e a promoção da consciência como medida da punição. O que está em jogo com o conceito moral de culpa é a imputação da sanção a alguém considerado como autor.[13]
De outro lado, a culpabilidade teológico-metafísica relaciona-se com o indivíduo como membro da comunidade, e repousa sobre o princípio de solidariedade. Introduz-se uma compreensão da culpabilidade a partir da categoria do trágico que ilumina o sentido da finitude e da imperfeição humanas – o fundamento insondável da liberdade do homem. Esta dimensão da culpabilidade leva a distinção essencial entre culpa e pecado. A noção deste último representa a ruptura de uma aliança com Deus que coloca o homem numa situação de dívida para com o seu lugar, dívida de morte e de amor. Ela confere à culpabilidade uma significação trágica: a terrível culpabilidade do justo que não responde nunca aos apelos do outro sofredor. Desse modo, permanece aberto à promessa de graça e de redenção que começa com o arrependimento do homem culpável.[14]
Por fim, tem-se que a noção jurídica moderna, inclusive constitucional, de responsabilidade como imputação resta indissociável da noção de pessoa como ser livre e responsável, sujeito de direitos e obrigações. Tão somente a pessoa assim concebida se constitui em “um sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação”.[15]
O surgimento da ideia de pessoa no Ocidente, com a tradição cristã, vem a ser indissociável da experiência da culpabilidade, e com ela imputação e responsabilidade.
Assinala-se, corretamente, que a evolução do Direito contemporâneo e o desenvolvimento da responsabilidade objetiva (sem dolo ou culpa), bem como o recurso cada vez maior às noções de risco e de solidariedade têm contribuído para potenciar ainda mais a incerteza e a ambiguidade que envolve a ideia de culpabilidade.
Então, a verdadeira indagação é saber se a substituição da ideia de culpa pela de risco não vai levar à total desresponsabilização da conduta. Com a crescente disseminação do risco, as responsabilidades tornam-se cada vez mais fluidas, invisíveis e anônimas.[16]
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[1] Cf. Viley, M. Esquisse historique sur le mot responsable. Archives de Philosophie du Droit, 22, 1977, p. 45 e ss.
[2] Para Lévy-Bruhl, a responsabilidade emerge ao mesmo tempo como consequência da liberdade e condição da moralidade ( L’idée de responsabilité, 1884, p. 3-5).
[3] Kelsen, H. Teoria pura do Direito, p. 148, 140.
[4] Aparentemente não há ideia mais clara que a de responsabilidade, “nós sabemos que somos responsáveis como sabemos que somos livres, por uma intuição direta”. A noção de responsabilidade é imediatamente sugerida pela consciência, diz o citado autor (Lévy-Bruhl, L. Op. cit., p. 2-3).
[5] De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico, 29 ed., p. 1218.
[6] Ibidem, p.719.
[7] Kelsen, H. Op.cit., p. 140
[8] Cf. Ricoeur, P. Le concept de responsabilité. Essai d’analyse sémantique. Esprit, 206 (11), 1994, p. 28 e ss.; Ricot, J. Remarques philosophiques sur la responsabilité. Revue générale de Droit, 33, 2, 2003, p. 293 e ss.
[9] Kant, I. Introducción a la teoría del Derecho, p.73-74.
[10] Sarthou-Lajus, N. La culpabilité, p.11, 36, 44.
[11] Ibidem, p. 65.
[12] Lévy-Bruhl, L. Op. cit., p.27-28, 74.
[13] Sarthou-Lajus, N. Op. cit., p. 55, 57-58.
[14] Sarthou-Lajus, N. Op. cit., p. 12.
[15] Kant, I. Op. cit., p.65. Vide infra.
[16]Sarthou-Lajus, N. Op. cit .p. 11,46,103 e ss.