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Revista Forense
CLÁSSICOS FORENSE
PENAL
REVISTA FORENSE
O Problema Da Pena, de Heleno Cláudio Fragoso
Revista Forense
22/01/2024
SUMÁRIO: 1. Direito Penal, Criminologia e Ciência Penitenciária. 2. O fundamento ético do Direito. 3. A sanção penal. 4. Caráter da pena. 5. A pena como retribuição. 6. A pena de morte. 7. A ciência penitenciária e o sentido da pena. 8. A Criminologia e a pena. 9. O problema atual.
1. Direito Penal, Criminologia e Ciência Penitenciária
Há entre a ciência do Direito Penal, a Criminologia e a chamada Ciência Penitenciária, por vêzes, certos flagrantes contrastes em suas proposições e conclusões, decorrentes do desconhecimento de certos princípios fundamentais, do método, objeto e fim de cada uma daquelas disciplinas.
Para logo deve estabelecer-se que se trata de ciências de natureza inteiramente diversa, insuscetíveis de estudo unitário, como pretendia FERRI, que as incluía tôdas como capítulos de uma Sociologia Criminal.1 Ao passo que a Ciência do Direito Penal é normativa e cultural, referida a valor e formal, cujo único método possível é o lógico-abstrato, a Criminologia e o que se poderia chamar a técnica penitenciária são disciplinas causal-explicativas, de índole naturalista, cujo instrumento de trabalho é o método indutivo por excelência.2
É necessário, todavia, que se assente o caráter tributário da Criminologia e da Ciência Penitenciária,3 em relação ao Direito Penal. A Criminologia tem por objeto o estudo causal-explicativo do fenômeno crime, isto é, pesquisa as suas causas, no indivíduo e na sociedade. Entretanto, o conceito de crime é um conceito normativamente estabelecido pelo Direito e, portanto, referido a valor e, por conseqüência, não pode ser reduzido a um fato natural. Inùtilmente tem-se procurado oferecer uma noção não-jurídica, natural ou sociológica de crime, sendo eloqüente o fracasso que se verificou no II Congresso Internacional de Criminologia, reunido em Paris, em 1950; no qual o assunto constituía um dos temas oficiais.
Portanto, o objeto da Criminologia é delimitado pelo Direito Penal, que define o fenômeno-base de todo o trabalho desta ciência.
A Ciência Penitenciária, por seu turno, visa ao estudo das condições de efetivação da sanção penal, ou seja, de sua prática realização, devendo, pois, orientar-se no sentido estabelecido pelo Direito Penal, para os fins gerais da pena e das medidas de segurança.
2. O fundamento ético do Direito
Embora sejam bem conhecidas as diferenças entre a Moral e o Direito, parece não caber dúvida quanto ao fundamento ético dêste último, pois o princípio básico que inspira tôdas as disciplinas jurídicas é o valor justiça, cujo conteúdo moral é manifesto.
É famosa a chamada teoria do mínimo ético, que remonta a JELLINEK4 e encontra em MANZINI o seu mais autorizado defensor. Aquêle mestre insigne do Direito Penal italiano afirma que o Direito Penal “in sostanza altro non è che quella parte della etica, che viene assicurata con la sanzione specifica della pena”.5
Posições mais extremadas encontram-se ainda em MAGGIORE6 e BETTIOL,7 segundo os quais o direito não é sòmente parte da ética, mas a própria moral cristalizada em dado momento.
E por ser a Ciência do Direito Penal, como a ciência do Direito em geral, construída com referência a valores, e especialmente ao valor justiça, impõe-se a concepção retributiva da sanção penal.8
3. A sanção penal
O Direito Penal é constituído pelo complexo de normas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de uma característica sanção penal. Visa, segundo a teoria dominante, a garantir as condições fundamentais e indispensáveis da vida social, distinguindo-se pelo meio especifico de coação e tutela com que atua e que é precisamente a pena.
Essa sanção característica da lei penal, ou seja, a pena, não consiste na execução coativa do preceito jurídico violado (praeceptum legis), mas na perda de um bem jurídico imposta ao autor do ilícito, isto é, um mal infligido ao réu, em virtude de seu comportamento antijurídico.9
4. Caráter da pena
Larga tem sido a discussão em tôrno ao caráter da pena. Lamentàvelmente, o estudo do Direito Penal, no curso de sua evolução histórica, tem sido prejudicado por influências de ordem filosófica, especialmente com a obra dos clássicos que eram partidários do direito natural, e, pois, situavam a sua elaboração doutrinária sôbre dados da razão, e portanto fora do terreno jurídico; e também pelos estudos naturalísticos e sociológicos sôbre o crime, com a obra revolucionária dos positivistas, que baralharam os conceitos jurídicos, procurando estudar o Direito Penal com o método positivo, inaplicável a ciências normativas.
Essas influências filosóficas e naturalísticas trouxeram grande confusão de idéias em tôrno ao conceito e razão da pena. Assim, sucessivamente, foi a pena entendida como vingança (HUME, PAGANO, VECCHIONI, BRUCKNER, RAFAELLI, ROMANO), primeira manifestação histórica da sanção penal, cuja máxima expressão é a retaliação primitiva; como vingança purificada (LUDEN), mero desvio da primeira e que afirma que a sociedade toma a si a vingança, para evitar que o ofendido se vingue; como represália (FRANCIS LIEBER), igualmente um simples disfarce da concepção primitiva; como conservação, teoria largamente difundida è segundo a qual a sociedade aplica a pena exercendo o direito de conservar-se (SCHULZE, BASATTI, MARTIN). Alguns autores afirmavam que a pena deve entender-se como defesa social indireta (ROMAGNOSCI, COMTE, RAUTER, GIULIANI), sendo o mesmo princípio entendido como necessidade política por FEUERBACH, KRUG e CARMIGNANI. Ainda foi a pena justificada pela utilidade (HOBBES, BENTHAM); entendida como correção (ROEDER, LANZA, DORADO MONTERO); como expiação (KANT, MENCHE), e como restabelecimento da ordem externa (CARRARA, PESSINA).
De um modo geral e sintético, pode afirmar-se a existência de duas correntes fundamentais: uma é a das teorias absolutas, outra, das relativas. Para as primeiras, a pena é um fim em si mesmo e se aplica quia peccatum est. Para as segundas, a pena é um meio para outros fins, e se aplica ne peccetur. Chamam-se teorias mistas as que admitem ambos os aspectos na pena, atribuindo-lhe uma justificação absoluta e a realização de outros fins.
Entre as teorias absolutas estão a da reparação, que considera o crime como algo reparável e a pena o agente dessa reparação moral (KOHLER); como retribuição divina, que é de natureza filosófica (STAHL); como retribuição moral (KANT), segundo a qual a pena é concebida como exclusivo princípio de justiça e como imperativo categórico; e, afinal, como retribuição jurídica (HEGEL), em que a pena aparece como negação do delito e como restabelecimento do império do direito.
As teorias relativas não consideram a pena um fim em si, mas sim meio necessário para a conveniência, para a segurança ou para a defesa social.
Entre as teorias relativas, estão a contratualista (ROUSSEAU), segundo a qual a pena se aplica para preservar o pacto social, de que o delinqüente é traidor; as teorias, da prevenção, seja mediante a execução, seja mediante a coação psíquica (FEUERBACH), que concebem a pena como meio de prevenir os delitos futuros; a da defesa indireta, em que a pena visa à defesa social através do temor que inspira (ROMAGNOSCI); a teoria correcionalista (ROEDER), que concebe a pena como meio de correção do delinqüente, e, finalmente, a teoria positivista, segundo a qual a pena é exclusivamente meio de defesa, tendo por fundamento não a culpa, porém a periculosidade do criminoso.
As teorias mistas10 são as mais difundidas e variadas, sendo dominantes na doutrina penal. Admitem, ao lado da necessidade da pena, a sua utilidade, ou seja, não obstante atribuírem à pena caráter essencialmente ético, e portanto um sentido de retribuição, afirmam que a pena não é um fim em si, mas visa à repressão e a outros fins utilitários (punitur quia peccatur et ne peccetur).
5. A pena como retribuição
Sem dúvida alguma, a moderna ciência do direito penal entende a pena como essencialmente retributiva, pois sòmente assim é possível concebê-la no mundo do Direito, sem prejuízo de outros fins utilitários, que, por igual, altamente interessam à ordem jurídica e à sociedade.
No dizer de MAX ERNST MAYER, a retribuição é a alma de tôdas as penas e do Direito Penal de todos os tempos. Sem nos determos nas doutrinas dos escritores católicos, cujo máximo representante foi SANTO TOMÁS, e que estabeleceram o princípio da retribuição divina (CATHREIN, DE MAISTRE, STAHL), podemos mencionar que o princípio da retribuição moral, segundo a qual o mal deve ser compensado, em igual medida, pelo mal, numa exigência fundamental da consciência ética, já se havia elaborado na antiguidade pelos pitagóricos e PLATÃO. KELSEN,11 aliás, demonstra que o princípio de retribuição inspirava a filosofia de todos os antigos filósofos gregos pré-socráticos, chegando WELLMANN a afirmar que “o princípio de retribuição como norma fundamental de tôda a ética era um bem comum do pensamento grego”.12
Na Idade Média, essa mesma concepção se encontra em DANTE, além de SANTO TOMÁS, e nos tempos modernos em GROTIUS, LEIBNIZ e VICO, culminando em KANT, que via na pena um imperativo categórico.
No campo pròpriamente jurídico, pode dizer-se que foi HEGEL que concebeu a pena como retribuição jurídica, ou seja, como negação do crime, tendo suas idéias desenvolvidas por ROSSI e PESSINA.13
Mas foi sòmente com o advento da moderna ciência do Direito Penal, vale dizer, com a obra extraordinária de ARTURO ROCCO, que se deu à pena o seu autêntico sentido jurídico: “Si vuol solo notare” – ensinava – “che nell’essere, appunto, la pena, la perdita di un bene giuridico per un bene giuridico violato, si ha secondo noi, il concetto della pena stessa come retribuzione giuridica”. Assim, a pena é um dano juridicamente impôsto pelo Estado à pessoa do réu, em conseqüência do dano por êle, injurìdicamente, causado à pessoa do ofendido, e, indiretamente, ao próprio Estado: um dannum iure datum por um dannum iniuria datum.“14
Êsse sentido jurídico da pena, como perda de um bem impôsto ao delinqüente, e, portanto, como um mal, é pôsto em relêvo por MEZGER,15 que a define como um mal acarretado e uma perda de bens jurídicos imposta ao agente, em conseqüência e na medida do crime cometido (“Strafe ist tatgemaess Uebelzufuegung, das heisst eine den Taeter treffende Entziehung von Rechtsguetern wegen und nach Mass der von ihm begangenen Straftat”).
Assim também WELZEL,16 reproduzindo o pensamento dos modernos penalistas alemães, doutrina: “A pena é um mal impôsto ao agente em conseqüência do fato culposo e responsável. Ela se refere ao postulado da retribuição justa, qual seja o de que se faça a cada um de acôrdo com o valor de suas ações (KANT)”. Nem diverso é o pronunciamento de SAUER, que assinala, que, em primeira linha, a pena é retributiva e aflitiva.17 HAPTER18 escreveu: “La pena è l’inflizione di un male. Il suo carattere – non lo scopo – è la giusta retribuzione. Tutti gli sperimenti per negare ciò sono faliti”. E BELING,19 com admirável precisão, reafirma: “A pena, como instituição jurídica, é um sofrimento que a ordem jurídica faz seguir a um determinado fato ilícito, ao seu autor… pena é textualmente retribuição (é retribuição in malam partem, assim como prêmio o é in bonam partem)”.
E entre muitos outros ilustres penalistas alemães, sempre invocados pela sua enorme autoridade, baste citar FRANK,20 VON HIPPEL,21 BINDING,22 MAX ERNST MAYER23 e MERKEL,24 que, entre muitos outros, se pronunciam no mesmo sentido sôbre o caráter da sanção penal.
Na Itália, destaca-se BETTIOL, insigne catedrático de Direito Penal na Universidade de Pádua, que chega a negar qualquer finalidade à pena que não seja a retribuição ético-jurídica,25 afirmando, com sua grande autoridade: “L’idea della retribuzione è l’idea centrale del diritto penale. La pena trova la sua ragione di essere nel suo carattere retributivo”.26
Assim também MAGOIORE:27 “Tutte le obiezioni contro la teoria della retribuzione non resistono alla critica”. STOPPATO: “La pena come sanzione è un castigo”.28 E tal idéia é tão generalizada, que seria fastidioso reproduzir aqui as inúmeras lições de grandes mestres, bastando invocar os nomes ilustres de ANTOLISEI,29 RANIERI,30 CARNELUTTI,31 FAUSTO COSTA,32 PETROCELLI,33 PANNAIN,34 G. PAOLI,35 VINCENZO CAVALLO,36 IMPALLOMENI,37 BATTAGLINI,38 MASSARI39 e VANNINI.40
Entre nós, vale lembrar três nomes, que são os de COSTA E SILVA, NÉLSON HUNGRIA e OSCAR STEVENSON, mestres insignes, figuras de primeira grandeza na ciência do Direito Penal em nosso país. COSTA E SILVA, em obra notável, ensinava que “a pena é, de sua natureza, retributiva. Têm-se negado ou pôsto em dúvida a verdade de semelhante asserto, mas sempre em vão”.41 NÉLSON HUNGRIA, com sua grande autoridade de emérito penalista, doutrina: “A pena é prevalentemente retributiva. A pena tem caráter necessàriamente aflitivo. A pena é essencialmente repressiva, devendo ser aplicada e sentida, primacialmente, como castigo ou expiação”.42 Finalmente, OSCAR STEVENSON, eminente professor da Faculdade Nacional de Direito e da Faculdade de Direito de São Paulo, afirma: “da pena, o seu escopo direto, primário, e principal, consiste na justa punição, na expiação da falta, no castigo, entendido como compensação ou retribuição ético-jurídica de um mal por outro mal”.43
A retribuição é, pois, a essência da pena, embora não seja o seu fim, e poderia parecer esfôrço desnecessário o que fizemos para demonstrá-lo, invocando a autoridade alheia. Mas, entre nós, recebe-se em geral com espanto a afirmação sôbre o caráter retributivo da pena, o que se reputa verdadeira heresia. Contudo, os partidários da pena medicinal, da pena como emenda, contam-se nos dedos da mão. Os pressupostos desta corrente são indefensáveis no campo do Direito, pois a razão de ser da pena situa-se além da possibilidade de emenda do delinqüente, devendo ela ser aplicada ainda que tal possibilidade não se verifique.
Por outro lado, é fora de dúvida que a nossa ordem jurídico-penal está construída sob o princípio da pena entendida como retribuição. Reconhece-o insuspeitamente FLORIAN,44 desde que a imputabilidade moral é adotada: “Sostanzialmente, se l’imputabilità si basa sul libero arbitrio, la pena ha carattere di espiazione e di castigo”. E que a responsabilidade moral é o princípio básico em que assenta a nossa legislação penal, reconhece-o expressamente a “Exposição de Motivos” do Min. FRANCISCO CAMPOS: “Sem o postulado da responsabilidade moral, o Direito Penal deixaria de ser uma disciplina de caráter ético para tornar-se um mero instrumento de utilitarismo social ou de prepotência do Estado. Rejeitado o pressuposto da vontade livre, o Código Penal seria uma congérie de ilogismos”.
Da mesma forma expressou-se o ministro ROCCO, na “Relazione” do atual Código italiano: “La responsabilità penale delle azioni umane che noi chiamamo reati, rimane anche nel nuovo codice, saldamente affidata al principio dell’imputabilità psichica o morale dell’uomo, fondato a sua volta sulla normale capacità e quindi sulla libertà d’intendere e di volere”.
Pode, assim, afirmar-se que, perante o nosso Cód. Penal e todos os mais que têm por base a responsabilidade moral, a pena é, em sua essência, retributiva.
É do mister, finalmente, assinalar que, perante a Ciência do Direito Penal, a pena só pode ser entendida como essencialmente retributiva. Trata-se, como acima já ficou dito, de ciência cultural e normativa, referia ao valor justiça,45 como de resto a ciência do direito em geral. E deve assim orientar-se segundo os critérios de realização ou negação dêsse valor, pois de outra forma não é possível resolver qualquer importante problema jurídico. É o que ensina MAGGIORE, quando escreve: “Non vediamo, insomma, alcun problema giuridico di un qualque rilievo, che possa risolversi, senza tener fiso lo sguardo al massimo ed eterno problema della giustizia”.46 Que a retribuição esteja na base do princípio de justiça, parece desnecessário referir, bastando lembrar que a balança é o símbolo da justiça pensada como igualdade e retribuição.
Enquanto fôr êste o sentido da ciência jurídico-penal – o que parece conquista definitiva – será vão tentar naturalizar o conceito de pena, seja para dar-lhe essência dominante defensiva, seja para atribuir-lhe função correcionalista. E o que proclama BETTIOL,47 demonstrando que sòmente o princípio de retribuição pode dar à pena sentido ético-juridico. A pena – escreve – é permeada por um critério de justiça, que só pode ser realizado com a idéia de retribuição, única que a situa no mundo moral, no mundo dos valores.
Assim, a pena, não é somente retribuição, mas fusta retribuição, como assinala ROCCO, embora seja peculiar o seu conceito de justiça: “poichè il reato è una azione contraria alle condizioni fondamentali e indispensabili della vita in comune e quindi ingiusta, e la pena, como reazione al reato è una azione conforme a queste condizioni, e quindi giusta, la pena come reazione e quindi come retribuzione, appare come una “giusta” retribuzione, come una retribuzione conforme alle esigenze della giustizia e, in altre parole, come una esigenze della giustizia distributiva“.48
Todavia, deve assentar-se que a retribuição é a essência da pena, o seu modo de ser, e não o seu escopo. A pena visa a assegurar a existência da ordem jurídica, impedindo a prática de crimes, tendo pois finalidade preventiva e repressiva. Inúmeros autores têm proclamado que o princípio da retribuição não é incompatível com os fins utilitários da pena.49
6. A pena de morte
Em relação ao grande e tormentoso problema da pena de morte, sôbre o qual já se tem escrito infindavelmente, podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, único que nos interessa no debate, é impertinente a indagação sôbre se o Estado tem direito à sua aplicação. Esta questão é fundamentalmente a mesma do chamado direito de punir, que, com acêrto observa MEZGER,50 não é um problema jurídico, mas metajurídico.
Pode afirmar-se que o caráter da pena em geral constitui uma autêntica questão de ordem, uma indagação preliminar de que depende qualquer conclusão com referência à pena máxima.
Assim, os partidários da pena correcional, da pena-remédio, emenda do delinqüente, certamente hão de manifestar-se contrários à pena de morte. Favoráveis a essa pena, ao menos em tese, hão de ser os que admitem o caráter prevalentemente ético-jurídico da sanção penal e portanto o seu caráter retributivo. Favoráveis, manifestam-se também os partidários extremados da concepção essencialmente defensiva da pena.
Ora, estabelecido, como ficou, o caráter retributivo da sanção penal, deve a pena de morte ser admitida em tese pelo jurista, e assim considerada lícita. Tal pena é justificada diante de crimes de tal sorte graves e sèriamente sentidos pela consciência social, diante dos quais a morte do culpado seja considerada retribuição adequada, e, pois, castigo devido.
Tranqüilamente, entretanto, pronunciamo-nos contra a aplicação da pena de morte, à vista de razões de ordem prática e sobretudo tendo em mira a realidade brasileira. É especialmente impressionante o argumento extraordinário da absoluta irreparabilidade, que é, como diz FLORIAN,51 “argumento formidabile e decisivo, tale da fugare i passati ed i nuovi dubbi”.
Há, também, os que entendem que o limite da pena é a necessidade, e que a pena de morte, conquanto legítima, não é necessária (OSCAR STEVENSON, JOÃO CHAVES).
7. A ciência penitenciária e o sentido da pena
Afirmado o caráter prevalentemente retributivo e aflitivo da sanção penal, em face dos princípios dominantes sôbre a matéria, e, em verdade, tendo em vista o próprio direito positivo, parece evidente que uma ciência penitenciária não pode pretender dar outro caráter e outro sentido à pena. A pena é um mal. Deve ser sentida pelo delinqüente como expiação e castigo.
Todavia, os penitenciaristas de todos os matizes procuram, por todos os meios e modos, transformar a prisão em casa de tratamento e custódia, esquecidos de que tais estabelecimentos só poderiam servir para aplicação das medidas de segurança, que absolutamente não têm caráter retributivo, mas meramente preventivo, visando à readaptação social ou reeducação do delinqüente, se fôr o caso.
As prisões, assim, têm sido concebidas como escolas e os detentos como reeducandos, proporcionando-se nelas um tratamento que ofende aos homens pobres e humildes que vivem miseràvelmente, mas são honestos. É o que observa agudamente FERRI.52 As prisões devem ser estabelecimentos ruins por definição, embora isto não signifique, de forma alguma, a degradação da pessoa humana do delinqüente, que deve ser sempre objeto do maior respeito.
Modernamente, há prisões em que se pode afirmar que só falta ao detento a liberdade, e há também prisões, as chamadas prisões abertas, em que nada falta ao criminoso, que vive como que hospedado pelo Estado.53
8. A Criminologia e a pena
Por seu turno, a Criminologia, em conseqüência de sua pesquisa causal-explicativa do delito, realizada com o método indutivo, procura libertar-se dos limites que lhe impõe o Direito Penal, e, em suas conclusões, não raras vêzes, vem contrariando certos princípios fundamentais da dogmática jurídico-penal, especialmente em relação à sanção penal.
Por sua índole naturalista, esta disciplina oferece ou procura oferecer explicações causais, e, assim, propugna soluções para o combate à criminalidade inteiramente despidas do sentido ético que inspira a sanção jurídica estabelecida pelo Direito Penal.54
Em contraposição ao sentido normativo de crime, único possível por se tratar de um conceito jurídico, a Criminologia procura estabelecer um conceito naturalístico de delito, e procura suprimir a pena como repressão jurídica, substituindo-a por um tratamento que corresponda à eliminação das causas atribuídas à criminalidade.
9. O problema atual
E temos, assim, diante de nós delineado o grave paradoxo em que se debate a ciência penal de nosso tempo.
Ao passo que, para o Direito Penal, a pena há de ser prevalentemente retributiva, para manter o seu caráter ético-jurídico, parece estar demonstrada a precariedade da sanção penal destarte concebida, para realizar uma eficaz e segura repressão à criminalidade.
A constatação de certas causas próximas e remotas da delinqüência, a miséria social, o álcool, a prostituição, a fome, o jôgo, os estados psicóticos, etc., estão a exigir, sob a própria inspiração da justiça, maior aplicação de medidas preventivas e mais restrita aplicação da pena, já que, como seguros fatôres da criminalidade, estão a indicar a sua causação, e, portanto, a sua solução.
Por outro lado, afirma-se a completa impossibilidade da recuperação social do delinqüente na prisão, que é, ademais, declarada fator criminógeno.
Estamos assim em que a pena, ao invés de promover a repressão, seria um elemento estimulante indireto no desenvolvimento da delinqüência, não obstante ser um elemento indispensável para a efetivação da sanção penal, concebida juridicamente como um mal e como uma perda de bens jurídicos imposta ao delinqüente.
Êste grave problema está a exigir a atenção dos estudiosos. Não seria certamente possível retirar à pena o seu sentido ético-jurídico, e, portanto, o seu sentido aflitivo e de expiação de um mal. Se o crime fôsse efetivamente uma moléstia ou o sintoma de uma moléstia, e se a pena fôsse um remédio, deveriam ser os tribunais substituídos pelos ambulatórios, os juízes pelos médicos, e o Direito Penal pela Medicina. Não nos parece que seja possível, sem completa subversão do Direito Penal, como disciplina jurídica, alterar o sentido retributivo da pena, que deve permanecer como fruto de justiça.55 É certo que interessa ao Estado, altamente, a repressão à criminalidade, que deve ser a mais eficiente possível, nos limites em que o permita a justiça da pena.
E o direito positivo permite aproveitar as profícuas. conclusões da Criminologia, com as medidas de segurança, que têm finalidade puramente preventiva, e, assim, permitem a realização daquelas providências que visem à readaptação ou à recuperação social do delinqüente, correspondendo à tendência correcionalista que modernamente domina a técnica penitenciária.
O nosso Código Penal, inspirado nas modernas legislações, adotou o sistema dualístico da pena e medida de segurança, sendo, assim, a um tempo, repressivo e preventivo, permitindo a aplicação da pena tendo por base a imputabilidade e a voluntariedade, e, portanto, com sentido retributivo, e as medidas de segurança, fundadas na periculosidade, ou seja na probabilidade de futuros delitos. Como bem nota BATTAGLINI,56 êsse critério dualístico integra o ponto de vista ético-jurídico com o científico-causal e garante mais enérgica tomada de posição diante do fenômeno da criminalidade.
A fim de que possa resultar eficiente êsse sistema repressivo e preventivo, cumpre harmonizar o regime penitenciário com os institutos de aplicação das medidas de segurança, que, não obstante estarem já disciplinados em lei, estão à espera de efetivo funcionamento. A casa de custódia e tratamento, que poderia funcionar como prisão aberta, os Institutos de trabalho e de reeducação, amparados por um eficiente serviço de assistência social, para aplicação prática das medidas de segurança, ao lado da pena, desde que verificada a periculosidade do agente, parecem oferecer a solução de nosso problema.
HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, Professor da Faculdade de Direito Cândido Mendes
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Notas:
1 FERRI, “Principios de Derecho Criminal”, Reus, 1933. pág. 93.
2 Cf., sôbre o assunto, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, “Direito Penal e Criminologia”, in “REVISTA FORENSE”, vol. 153.
3 A chamada ciência penitenciária, que todavia não é ciência, mas mera hipótese de trabalho, para usarmos designação corrente entre os autores alemães, é coisa inteiramente diversa do que se chama direito penitenciário. Como assinala JÚLIO ALTMAN, a ciência penitenciária está para o direito penitenciário, como a Criminologia para o Direito Penal. Cf. JIMENEZ DE ASCA, “Tratado de Derecho Penal”, Losada, I, pág. 136.
4 JELLINEK, “Die sozial ethische Bedeutung von Recht, Unrecht und Strafe”, pág. 42.
5 MANZINI, “Trattato di Diritto Penale Italiano”, UTET, 1950, I, pág. 34. Cf., ainda, FAUSTO COSTA, “Saggio Fllosofico sulla natura del diritto”, Milão, 1919, e WUNDT, “Ética”, Madri, III, pág. 212.
6 MAGGIORE, “Diritto Penale”, Bolonha, 1949, pág. 19: “Il diritto è la morale resa statica in una norma”.
7 BETTIOL, “Diritto Penale”, Palermo, 1945, pág. 66. Contra: ANTOLISEI, “Manuale di Diritto Penale”, 1947, pág. 3.
8 BATTAGLINI, “Diritto Penale”, CEDAM, Pádua, 1949, pág. 622: “La pena trova il suo fondamento nel principio etico di giustizia”.
9 Sôbre o caráter da sanção jurídica extrapenal e sua diferenciação da pena, cf. as opiniões de ORISPIONI, “Diritto Penale Italiano”, Milão, 1950, pág. 116, conforme o texto, e SEBASTIAN SOLER, Derecho Penal Argentino”, II, pág. 394, com discrepância irrelevante.
10 Para uma resenha das teorias mais importantes, cf. SEBASTIAN SOLER, ob. cit. (nota 9), II, págs. 388 e segs.
11 KELSEN, “La Aparición de la ley de causalidad a partir del principio de retribución”, in “La idea del derecho natural y otros ensayos”, Locada, Buenos Aires, 1946, págs. 54 e segs.
12 Cf. KELSEN, ob. cit. (nota 11), pág. 105, nota 104.
13 Cf. L. GUNTHER, “Die Idee der Widervergeltung in der Geschichte und Philosophie des Strafrechts”, e MAGGIORE, ob. cit. (nota 6), pág. 682.
14 ARTURO ROCCO, “Sul concetto del diritto subiettivo di punire”, in “Opere Giuridiche”, III, pág. 146, nota.
15 MEZGER, “Strafrecht”, Allgemeiner Teil, Biederstein Verlag, 1946, pág. 235.
16 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht”, Berlim, 1954, pág. 170: “Die Strafe ist ein Uebel, das gegen den Taeter fuer die schuldhafte Tat verhaengt wird. Sie ruht auf den Postulat gerechter Vergeltung, das ‘jederman das wiederfahrt, was seine Taten wert sind’ (KANT)”.
17 SAUER, “Allgemeine Strafrechtslehre”, Berlim, 1949, pág. 215.
18 HAFTER, “Per il cinquantanario delta Rivista Penale”.
19 BELING, “Esquema de derecho penal”, tradução SOLER, Depalma, 1944, pág. 3.
20 FRANK, “Vergeltungestrafe und Schutzstrafe”.
21 VON HIPPEL, “Deútsches Strafrecht”, I, pág. 496.
22 BINDING, “Grundriss des deutchen Strafrechts”, § 94.
23 MAX ERNST MAYER, “Der allgemeiner Teil des deutchen Strafrechts”, pág. 423.
24 MERKEL, “Vergeltungsidee and Zweckgedanke”, in “Gesammelte Abhandlungen”, II, página 687.
25 BETTIOL, “Il problema penale”, Palermo, 1948, pág. 117.
26 BETTIOL, ob. cit. (nota 7), pág. 471.
27 MAGGIORE, ob. cit. (nota 6), pág. 685.
28 STOPPATO, “La Scuola Giuridica Italiana”, pág. 15.
29 ANTOLISEI, ob. cit. (nota 7), pág. 353: “La parola pena è sinonimo di castigo: essa in generale indica il dolore, la sofferenza che viene inflitta a colui che ha violato un commando. Suo carattere essenziale è l’afflittività: una pena non afflittiva, infatti, è una vera contradictio in terminis”.
30 RANIERI, “Diritto Penale”, Milão, 1945, pág. 458.
31 CARNELUTTI, “El problema de la Pena”, Buenos Aires, 1947, pág. 14.
32 F. COSTA, “Delitto e pena nella storia del pensiero umano”. Turim, 1928, pág. 282.
33 PETROCELLI, “La funzione della pena”, in “Saggi di Diritto Penale”. Pádua, 1952, pág. 110.
34 PANNAIN, “Manuale di Diritto Penale”, UTET. 1950, pág. 674.
35 PAOLI, “Il diritto penale italiano”, I, 1936, pág. 199.
36 V. CAVALLO, “Diritto Penale”, Nápoles, 1948, pág. 33.
37 IMPALLOMENI, “Istituzioni di Diritto Penele”, UTET, pág. 88.
38 BATTAGLINI, ob. cit. (nota 8), pág. 520.
39 MASSARI, “Dottrine Generali”, pág. 246.
40 VANNINI, “Lineamenti di Diritto Penale”, pág. 215.
41 COSTA E SILVA, “Código Penal”, 1938, II, pág. 14.
42 NÉLSON HUNGRIA, “Comentários ao Código Penal”, ed. “REVISTA FORENSE”, vol. III. págs. 7 e 10.
43 OSCAR STEVENSON, “Funções da Pena e das Medidas de Segurança”, in “Verbum”, t. I, fascículo 3-4, dez. 1944, pág. 395.
44 FLORIAN, “Trattato di Diritto Penale”, Milão, 1934, II, pág. 758: e também PETROCELLI, ob. cit. (nota 33), pág. 103, nota: “Il principio della imputabilità morale e quello della proporzionata retribuzione sono strettamente connessi”.
45 RADBRUCH, “Filosofia do Direito”, Coimbra, 1947, I, pág. 308.
46 MAGGIORE, “Delitto naturale e delitto legale” in “Scuola Positiva”, 1948, fasc. 3-4, página 387.
47 BETTIOL, ob. cit. (nota 25), págs. 106 e segs.
48 ROCCO, “L’oggetto del reato”, Roma, 1932, pág. 487.
49 Cf. COTA E SILVA, ob. cit. (nota 41), pág. 14, nota.
50 MEZGER, ob. cit. (nota 15), pág. 235: “Dies ist kein juristisches, sondern ein metajuristisches Problem”.
51 FLORIAN, ob. cit. (nota 44), pág. 651.
52 PERRI, “La Sociologie Criminelle”, Paris, 1914, pág. 7.
53 Concebemos a existência das prisões abertas, após o cumprimento da pena, como medida de segurança, ou na fase final do cumprimento da pena.
54 BATTAGLINI, ob. cit. (nota 8), pág. 523: “Per il metodo naturalistico, che prescinde da giudizi di valore, la pena resta incomprensibile”
55 Como bem observa BATTAGLINI, ob. cit. (nota 8), pág. 520, nota, é interessante notar que no projeto de Código Penal soviético de 1935 abandonou-se o conceito de medida de defesa social (próprio do direito soviético vigente) e se retornou ao têrmo pena. E KRYLENKO admite expressamente que a pena se caracteriza por causar um sofrimento físico e moral, e também que o têrmo pena é mais compreensível por parte das massas. Cf., também, ANOSSOV, “I termini pena e misura di difesa sociale nel diritto penale sovietico”, in “Giustizia Penale”, 1936.
56 BATTAGLINI, ob. cit. (nota 8), pág. 633.
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