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O “novo” homicídio culposo na direção de veículo automotor e existência versus inexistência do dolo eventual – Parte II
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO TIPO PENAL
HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR
Francisco Dirceu Barros
19/02/2018
Por Francisco Dirceu Barros e Jefson Romaniuc*
DOLO EVENTUAL E HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR:
Diante das intensas alterações do Código de Trânsito Brasileiro, narradas linhas acima, o Poder Judiciário e o Ministério Público se depararam com situações que não poderiam ser enquadradas no tipo de homicídio culposo do art. 302 do CTB, apesar de, teoricamente, a subsunção em relação ao mencionado delito se mostrar mais adequada.
Casos concretos, nos quais agentes que se envolveram em acidentes de trânsito com vítimas fatais, em virtude de conduzirem veículos quando embriagados, levaram a doutrina a se questionar se a imputação por homicídio culposo seria a única possível, sobretudo nas situações de reincidência específica na conduta criminosa.
Diante desse quadro caótico, surgiu uma nova vertente doutrinária e jurisprudencial, imputando àqueles que cometem homicídios na condução alcoolizada de veículos automotores o delito de homicídio doloso, previsto no art. 121 do Código Penal, na modalidade dolo eventual. Tal solução visou dar tratamento desigual a situações que não poderiam ser enquadradas num mesmo dispositivo legal.
Desse modo, em casos específicos, nos quais restavam patente o desprezo do agente pela vida alheia, seria possível a imputação do delito de homicídio doloso, diante da configuração do dolo eventual. Repise-se que a doutrina e a jurisprudência não defenderam a inaplicabilidade absoluta do art. 302 do CTB; mas que, em situações pontuais, a aplicação do art. 121 do Código Penal se mostrava mais adequada.
Julgando a matéria, o STJ, em processo de relatoria do eminente ministro Rogerio Schietti Cruz, esclareceu a possibilidade de ocorrência do dolo eventual nos delitos cometidos na direção de veículo automotor. Vejamos um trecho do extenso Acórdão:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. HOMICÍDIO CONSUMADO E TENTADO. DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO. CRIMES DE TRÂNSITO. IMPOSSIBILIDADE. EMBRIAGUEZ. CONSTATAÇÃO TÉCNICA DO GRAU DE ALCOOLEMIA. OUTRAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE REVELAM A OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI. DILAÇÃO PROBATÓRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1. É admissível, em crimes de homicídio na direção de veículo automotor, o reconhecimento do dolo eventual, a depender das circunstâncias concretas da conduta.
(…)
3. A embriaguez não foi a única circunstância externa configuradora do dolo eventual. Assim, na espécie, a Corte de origem entendeu, com base nas provas dos autos, que “o recorrente não está sendo processado em razão de uma simples embriaguez ao volante da qual resultou uma morte, mas sim de dirigir em velocidade incompatível com o local, à noite, na contramão de direção em rodovia” (fl. 69).
Tais circunstâncias indicam, em tese, terem sido os crimes praticados com dolo eventual.
4. Infirmar a conclusão alcançada pela Corte de origem demandaria dilação probatória, iniciativa inviável no âmbito desta ação constitucional.
5. Habeas Corpus não conhecido.[6]
Nesse tom, o dolo eventual se caracterizaria quando o agente, ciente do risco que sua conduta gera para terceiros, decide continuar seu intento sem se importar com a possível ocorrência do resultado.
Assim, diante de cada caso concreto, o membro do Ministério Público, dominus litis da ação penal pública, avalia se a situação deve receber tratamento diferenciado em sua imputação; assim como o magistrado, quando da análise do mérito – já com elementos probatórios e defensivos para formar sua convicção –, decidirá se se trata de homicídio culposo, quando deverá ser aplicado o CTB, ou de homicídio doloso, submetendo o agente ao plenário do júri.
A VIABILIZAÇÃO DA INCIDÊNCIA PARALELA DO DELITO DE HOMICÍDIO COM DOLO EVENTUAL POR PARTE DE CONDUTORES DE VEÍCULOS ALCOOLIZADOS OU SOB EFEITO DE DROGAS.
Após o advento da Lei nº 13.546/17, sobretudo nos meios jornalísticos, houve manifestações no sentido de que as inovações legislativas teriam o objetivo de solucionar a polêmica jurisprudencial acerca do enquadramento da conduta daquele que ingere substâncias alcoólicas e comete crimes na direção de veículos automotores.
Alguns defenderam a tese de que a recente lei que alterou o CTB teve como principal característica inviabilizar a aplicação do art. 121 do Código Penal, posto que não mais seria possível enquadrar a conduta em tela como crime de homicídio doloso, considerando a presença do dolo eventual.
Tal conclusão mostra-se claramente equivocada, por confundir o princípio da especialidade com a norma penal e o elemento subjetivo do tipo. Inexiste a possibilidade de tal restrição em nosso ordenamento jurídico.
É preciso observar que, uma vez disciplinado legalmente um novo tipo penal, mesmo que exclusivamente culposo – como é o art. 302 do CTB – o tipo penal especial não pode afastar a incidência de norma geral, quando presentes os elementos necessários para sua subsunção.
Nesse sentido, apesar de a Lei nº 13.546/17 ter resgatado a figura do homicídio culposo no trânsito sob influência de álcool, dessa vez como forma qualificada do crime, não se pode concluir que a figura do dolo eventual tenha deixado de existir, sobretudo quando sua tipificação envolve outro dispositivo legal, o art. 121 do Código Penal.
Ressalte-se, ademais, que a conduta de matar alguém dolosamente – na modalidade de dolo eventual –, mesmo que na direção de veículo automotor e sob influência de álcool, não possui qualquer ligação com o art. 302 do CTB, mas com norma geral constante do art. 121 do CP.
Desse modo, como poderia o art. 302 do CTB, que trata da tipificação de hipótese culposa de homicídio no trânsito, influenciar na subsunção do homicídio doloso, com dolo eventual, previsto no art. 121 do CP?
É preciso observar que, em relação ao delito de homicídio culposo no trânsito, dúvida não há acerca da imputação do art. 302 do CTB. Entretanto, a partir do momento em que a conduta do agente deixa de ser culposa para ser revestida de dolo, mesmo que na modalidade de dolo eventual, referido artigo deixa de ser aplicável, passando a conduta a ser enquadrada em outra forma delituosa, qual seja, o homicídio doloso do art. 121 do CP.
Nesse sentido, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela impossibilidade de generalização da exclusão do dolo eventual independentemente das circunstâncias do caso concreto. Vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL GRAVE E HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. 129, §1º, E ART. 121, CAPUT (POR DUAS VEZES), AMBOS DO CP. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 619 DO CPP. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. NOVA PRONÚNCIA. REFORMATIO IN PEIUS INDIRETA E OFENSA AO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO CRIME DE HOMICÍDIO CONSUMADO PARA DELITO DIVERSO DA COMPETÊNCIA DO JÚRI. REVALORAÇÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. FATOS EXPLICITAMENTE ADMITIDOS E DELINEADOS NO V. ACÓRDÃO PROFERIDO PELO EG. TRIBUNAL A QUO. POSSIBILIDADE. PRONÚNCIA. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. INDEFERIMENTO DE PRODUÇÃO DE PROVAS PARA A DEFESA (SEGUNDO MOMENTO) ANTERIORMENTE DEFERIDAS PELO JUÍZO (PRIMEIRO MOMENTO). APONTADA PRECLUSÃO PRO JUDICATO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO DESPROVIDO.
(…)
V – Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese, em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece o acusado, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate.
VI – O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável.
VII – “A desclassificação da infração penal de homicídio tentado qualificado para lesão corporal leve só seria admissível se nenhuma dúvida houvesse quanto à inexistência de dolo. Havendo grau de certeza razoável, isso é fator o bastante para que seja remetida ao Conselho de Sentença a matéria, sob pena de desrespeito à competência ditada pela Constituição Federal” (AgRg no AgRg no REsp n. 1.313.940/SP, Sexta Turma, Relª. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 30/4/2013, grifei). (Precedentes do STF e do STJ).
(…)
Agravo regimental desprovido.[7]
Pelo exposto, resta claro que o posicionamento de nossa jurisprudência pátria está em conformidade com o que se defende no presente trabalho.
DAS CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS OBJETIVAS QUE DENOTAM O RECONHECIMENTO DE DOLO EVENTUAL
O reconhecimento do dolo eventual, no contexto prático, nem sempre é de fácil elucidação.
Nucci [8] defende que é impossível provar o dolo eventual, in verbis:
“Portanto, nas duas situações (culpa consciente e dolo eventual), o agente busca um determinado resultado (R1); ao persegui-lo, de acordo com a conduta assumida, percebe ser possível atingir também outro resultado (R2); o autor quer apenas o primeiro resultado (R1), não desejando diretamente o segundo (R2). Emerge, agora, a diferença: na culpa, ele diz para si mesmo que não vai acontecer o segundo resultado (R2), enquanto no dolo ele vê esse segundo resultado (R2) de modo indiferente. Essa distinção é tecida pela doutrina, pois a lei penal não a indica em nenhum dispositivo. A criação doutrinária, com reflexo na jurisprudência, traz a grave falha de gerar insegurança no campo penal. Em sã consciência, distinguir entre culpa consciente e dolo eventual é uma tarefa de pura adivinhação. Na maioria dos casos, inexistem provas certas do que se passa na mente do agente, no momento de sua conduta. O que será que ele disse para si mesmo? Esperava que não acontecesse ou lhe era completamente indiferente? Haver-se-ia de buscar a confissão do sujeito, admitindo que assumiu o risco do segundo resultado. Mas ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”.
Data venia, equivoca-se o renomado autor ao perquirir o dolo eventual na mente do agente ativo. Ora, após a “tragédia”, em anos de atuação profissional, quer seja como Promotor de Justiça, quer seja como Advogado, estes autores nunca presenciaram alguém afirmando que assumiu o risco de produzir o resultado morte.
Caso o dolo fosse perquirido da mente do agente ativo, poderíamos dizer que era impossível um inimputável (adolescentes, ébrios e portadores de transtorno mental) agir com dolo, pois os mesmos são por disposição legal (artigo 26 do CP) “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
O dolo direto ou eventual não é extraído da mente do autor, mas sim das circunstâncias práticas circundam os fatos. Marcello Finzi procurou fornecer um critério científico e seguro para a determinação da intenção de matar (la intenzione di uccidere), sistematizando-a em dois grupos: o primeiro infere-se da modalidade do próprio fato (meio empregado, direção, número e a violência dos golpes, as condições de espaço, tempo e local, e as circunstâncias conexas com a ação); o segundo liga-se às circunstâncias valorizadoras ou não de uma hipótese de matar (conduta do agente anterior e posterior ao crime, a causa de delinquir, a índole do culpado). Os critérios apontados servem apenas de diretriz, pois o dolo será aferido pelo somatório de todo o apurado, e sobre ele o juiz formará o seu livre convencimento.[9]
Pierangeli explica que “a prova do dolo, como fato interno que é, na impossibilidade de ingressar no terreno interior do agente, deve ser extraído de circunstâncias, conjecturas, indícios e até de simples presunções”[10].
Paulo Queiroz[11], elucida bem a prova do dolo quando disserta:
Apesar de definirmos dolo como consciência e vontade de realização dos elementos do tipo, o dolo não é, a rigor, um estado mental do sujeito, mas uma imputação a esse título (doloso), a partir da valoração dos elementos de prova, aí incluída a própria versão do imputado.
Dizer isso, significa, mais precisamente, o seguinte:
a) que compete a um terceiro (o juiz, em especial), e não ao imputado, decidir se este agiu ou não dolosamente, razão pela qual a imputação a esse título não fica na dependência da interpretação que o próprio sujeito faz de seu ato;
b) que se trata, essencialmente, de uma valoração a partir da prova produzida nos respectivos autos;
c) que esse juízo de valor poderá eventualmente contrariar a própria versão do imputado, por mais verossímil, sobretudo nos crimes contra a honra (calúnia etc.);
d) que, para a apuração do dolo, é essencial a consideração do contexto em que os fatos se passaram;
e) que o dolo não preexiste à interpretação, mas é dela resultado (não é previamente dado, mas construído), motivo pelo qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto, ora afirmando, ora negando a existência de dolo;
f) que o dolo é um conceito – logo, uma metáfora –, razão pela qual pode designar e compreender casos bastante díspares;
g) por encerrar uma imputação, é possível falar (em tese) de dolo mesmo em relação a adolescentes, ébrios e portadores de transtorno mental.
Usando a lição de Finzi, chegamos à conclusão de que, se houver ligação entre o primeiro grupo de condições (meio empregado, direção, número e a violência dos golpes, as condições de espaço, tempo e local, e as circunstâncias conexas com a ação) com o segundo grupo (conduta do agente anterior e posterior ao crime, a causa de delinquir, a índole do culpado), haverá impreterivelmente dolo direto ou eventual.
Neste sentido o Min. Felix Fischer vem se posicionando há bastante tempo:
STJ: “O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas que a aceitação se mostre, no plano do possível, provável” (REsp 247263-MG, 5.a T., 05.04.2001, m. v., DJ 20.08.2001, p. 515).
STJ: “O Superior Tribunal de Justiça tem decidido que o dolo eventual não é extraído da ‘mente do agente’, mas das circunstâncias do fato …..” (HC 301295-SP, 6.a T., rel. Sebastião Reis Júnior, 28.04.2015, v.u.).
Um bom exemplo de circunstância fática objetiva que denota o reconhecimento de dolo eventual é esse julgado do STF:
“A conduta social desajustada daquele que, agindo com intensa reprovabilidade ético-jurídica, participa, com o seu veículo automotor, de inaceitável disputa automobilística realizada em plena via pública, nesta desenvolvendo velocidade exagerada – além de ensejar a possibilidade de reconhecimento de dolo eventual inerente a esse comportamento do agente –, ainda justifica a especial exasperação da pena, motivada pela necessidade de o Estado responder, grave e energicamente, à atitude de quem, em assim agindo, comete os delitos de homicídio doloso e de lesões corporais” (HC 71.800-1-RS, 1.a T., rel. Celso de Mello, RT 733/478).
Ademais, desde a evolução da teoria causal para finalista e, posteriormente, funcionalista, tem-se observado uma mudança paradigmática dos elementos do tipo penal, sobretudo no que diz respeito ao dolo. Não se mostra mais possível, sob o prisma da teoria funcional do delito, a observação do dolo como elemento exclusivamente psíquico do agente.
Para entendermos melhor essa mudança, vamos demonstrar o que houve com o elemento imputabilidade, da culpabilidade, durante o processo evolucionários da teoria do delito.
Inicialmente, conforme a teoria naturalista, a culpabilidade era compreendida como estritamente psicológica. Nesse sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt que:
Dentro dessa concepção psicológica, o dolo e a culpa não só eram as duas únicas espécies de culpabilidade como também a sua totalidade, isto é, eram a culpabilidade, na medida em que esta não apresentava nenhum outro elemento constitutivo. Admitia, somente, como seu pressuposto, a imputabilidade, entendida como capacidade de ser culpável.[12]
Sendo assim, a imputabilidade era compreendida dentro de um sistema completamente psicológico, a ponto de se falar em teoria psicológica da culpabilidade.
Com a evolução das teorias do delito, sobretudo após o finalismo, o dolo e a culpa se deslocaram da culpabilidade para a tipicidade. Naquela, restaram como seus elementos constitutivos: imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude. Com essa modificação se inaugurou a teoria normativa pura da culpabilidade. Nesse sentido assevera Bitencourt que:
Os elementos que integram a culpabilidade, segundo a teoria normativa pura (a concepção finalista), são: a) imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato; c) exigibilidade de obediência ao Direito.[13]
Nesse tom, com o surgimento da teoria finalista, a imputabilidade deixou de ser pressuposto prévio da culpabilidade (psicológico) para ser condição central da reprovabilidade (normativo).
De modo análogo, o dolo, a partir de Welzel deixou de ser visto como elemento puramente psicológico para ser compreendido como algo decorrente das circunstâncias fáticas e valorativas do caso concreto.
Dessa forma, sendo o dolo extraído das circunstâncias do caso concreto, jamais poderia ter sua incidência em determinado tipo penal doloso impedida por força exclusivamente da redação de outro dispositivo legal.
A TOTAL INEFICÁCIA DAS ALTERAÇÕES REALIZADAS PELA LEI Nº 13.546/17
Então, resta a seguinte dúvida: qual a finalidade da Lei nº 13.546/17?
Como dito no tópico referente ao histórico das alterações legislativas, a Lei nº 13.546/17 teve por escopo tentar corrigir a grave lacuna deixada pela Lei nº 13.281/16, que removeu a previsão de maior reprovabilidade da conduta delituosa daquele que tira a vida de terceiros na direção de veículo automotor, sob influência de álcool.
Tanto é verdade que a reinserção dessa modalidade específica de homicídio culposo veio sob a forma de qualificadora do delito constante do art. 302 do CTB. Com a modificação em tela, o legislador brasileiro queria demonstrar maior reprovabilidade por parte daquele que pratica tal delito.
Ex positis, o aumento da pena base, que passa a ser de cinco a oito anos de reclusão, foi uma tentativa frustrante de:
a) Afastar a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direitos;
b) Evitar que o regime inicial da pena seja aberto;
c) A fiança não seja concedida pelo(a) delegado(a).
Facilmente, percebe-se que a intenção do legislador foi totalmente frustrada, porque:
a) Primeiro: ineficácia do afastamento da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direitos;
Segundo o inciso I do artigo 44 do Código Penal, as penas restritivas de direitos substituem as privativas de liberdade de liberdade, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
Vide inciso I do artigo 44 do Código Penal, in verbis:
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
Há uma vedação da substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direitos quando o crime for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, mas a violência localiza-se na conduta e não no resultado, isto porque no crime culposo o agente não persegue resultado algum. No contexto da culpa, o resultado típico atingido deve ser sempre involuntário, portanto, se o crime é culposo, não poderá haver violência na conduta.
Presente os motivos que pressionam ao cometimento do delito na conduta, haverá preponderância de vontade. In casu, estaremos falando de dolo direto.
No mesmo sentido é a lição de Dante Busana:
“Neste último caso, a violência que atinge o sujeito passivo não é querida pelo agente, o que impede afirmar tenha sido o delito cometido, isto é, praticado, realizado, perpetrado, com violência, pois esta aparece no resultado e não na conduta”[14].
Repetimos, por ser importante, a vedação da substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direitos ocorrerá quando o crime for cometido “com conduta violenta” e no crime de homicídio culposo a violência localiza-se no resultado.
No mesmo sentido é a lição de Nucci:
“Todos os delitos culposos podem receber o benefício da substituição, qualquer que seja a pena, bem como os crimes dolosos, desde que a pena não ultrapasse 4 anos e não houver violência ou grave ameaça à pessoa”.
b) Segundo:ineficácia do óbice ao regime inicial da pena ser aberto;
Aprendemos no Tratado Doutrinário de Direito Penal-Parte Geral[15] que:
“As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:
1. se o réu for condenado a pena superior a 8 (oito) anos, deverá começar a cumpri-la em regime fechado;
2. se o réu, não-reincidente, for condenado a pena que seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;
3. se o réu, não-reincidente, for condenado a pena que seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá desde o início, cumpri-la em regime aberto”.
Ao estabelecer a pena mínima no patamar de 05 anos, o legislador queria evitar que o réu, não-reincidente, pudesse desde o início, cumprir a pena em regime aberto, esqueceu apenas que o regime inicialmente fixado será o semiaberto, mas a pena será substituída por medida restritiva de direitos, portanto, a alteração legislativa não aferiu a mínima eficácia.
c) Terceiro: ineficácia do óbice da fiança ser concedida pelo(a) delegado(a).
Ao estabelecer para o homicídio culposo na direção de veículo automotor a pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos, o legislador desejou evitar o preconizado no artigo 322 do Código de Processo Penal, in verbis:
“A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos”.
Entendemos que a previsão do mencionado artigo é totalmente inaplicável, seja em virtude da Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça, que trata das audiências de custódia, seja em virtude da incidência da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Sendo estabelecido para o preceito secundário do homicídio culposo na direção de veículo automotor a pena de reclusão, de cinco a oito anos, o legislador quis evitar que a fiança fosse arbitrada pelo(a) delegado(a) de polícia, esqueceu apenas de dois detalhes:
Primeiro: dispõe o parágrafo único do artigo 322 do Código de Processo Penal, in verbis:
“Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.”
Segundo: determina a norma supralegal, o art. 7º., 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
A lei nº 13.546/17 evitou a concessão da fiança pelo(a) delegado(a) de polícia, mas a alteração legislativa também não obteve a mínima eficácia, pois a fiança será apreciada no procedimento da audiência de custódia que foi delineado na resolução nº 213 do CNJ.
Ad conclusio, percebe-se que a modificação legislativa implementada pela Lei nº 13.546/17, é:
a) totalmente ineficaz, pois qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo, será possível, atendidos aos demais requisitos do artigo 44 do Código Penal, a substituição da pena privativa de liberdade por medida restritiva de direitos.
b) não inviabilizar a incidência paralela do delito de homicídio com dolo eventual por parte de condutores de veículos alcoolizados ou sob efeito de drogas.
[6] HC 303.872/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 02/02/2017.
[7] AgRg no REsp 1579818/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017.
[8]NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 14a edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2015.
[9]Apud PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Especial. São Paulo: Editora RT. p. 55.
[10]PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Especial. São Paulo: Editora RT. p. 55
[11]no artigo “Dolo”, postado no http://www.pauloqueiroz.net/dolo/, acesso em 30 de dezembro de 2017.
[12] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva. 2012
[13] op. cit.
[14](cf. Waléria Garcelan Loma Garcia, arrependimento posterior, p. 105).
[15]Tratado Doutrinário de Direito Penal, Francisco Dirceu Barros, Editora JH Mizuno, edição 2018.
Veja também:
- O “novo” homicídio culposo na direção de veículo automotor e existência versus inexistência do dolo eventual – Parte I
- Os novos requisitos para observância do foro por prerrogativa de função e a possibilidade de aplicação imediata
- Estudo completo do acordo de não-persecução penal e o novo procedimento investigatório criminal (Parte II)
- Estudo completo do acordo de não-persecução penal e o novo procedimento investigatório criminal (Parte I)
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