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Homicídio etário e suas consequências jurídicas
Renee do Ó Souza
26/08/2022
Neste artigo, Renee do Ó Souza, Luiz Fernando Rossi Pipino e Andrea Walmsley Soares Carneiro discorrem sobre as alterações no texto jurídico referentes ao homicídio etário, decorrentes da Lei Henry Borel. Acompanhe!
Homicídio etário e suas consequências jurídicas
Publicada no dia 25 de maio de 2022, a Lei Federal nº 14.344/2022, já batizada popularmente como “Lei Henry Borel”, dentre outras modificações, acrescentou o inciso IX ao § 2º do art. 121 do Código Penal, tornando qualificado o crime de homicídio cometido contra menor de 14 (quatorze) anos de idade, pouco importando, vale anotar, que o crime tenha sido ou não praticado em contexto de violência doméstica ou familiar.
Além do aumento da pena, a criação da qualificadora, ao menos na perspectiva do Estado brasileiro, visa auxiliar a colheita de estatísticas de homicídios contra pessoas menores de 14 anos. Isso restou consignado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, que registrou: “Na prática, criou-se um dispositivo legal no Código Penal que qualifica o homicídio simples sempre que o fato der origem ao óbito de alguém com menos de 14 anos, aumentando a pena de reclusão, que ficará no patamar entre 12 e 30 anos. Assim, a partir do início da vigência da legislação, as mortes com vítimas menores de 14 anos serão obrigatoriamente contabilizadas em uma única categoria. Sem entrar no mérito sobre qual é a efetividade do aumento de pena no que diz respeito à prevenção da criminalidade, é possível prever que, após o período de adaptação das polícias em relação ao registro desse novo tipo penal, caminhe-se para uma maior padronização das estatísticas criminais oriundas desses fatos”. (Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. p. 232)
Neste breve estudo, procuraremos abordar os principais aspectos jurídicos da alteração legislativa.
Qualificadora de natureza objetiva
Trata-se de qualificadora de natureza objetiva, relacionada à qualidade da vítima, absolutamente conectada com as disposições constitucionais inscritas no art. 227 da Carta Magna, cujo dispositivo veicula como dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida. Assim sendo, a majoração da pena se justifica, não apenas em razão de circunstâncias fáticas que naturalmente aumentam a reprovabilidade do homicídio praticado em face de pessoas de tenra idade, mas também por causa da força normativa daquele mandamento constitucional.
Naturalmente, para a incidência da nova qualificadora, é necessário que o agente tenha ciência a respeito da idade da vítima por ocasião do cometimento do crime, já que o Direito Penal é regido pelo princípio da responsabilidade subjetiva (ou princípio da culpabilidade), não havendo falar-se, assim, em responsabilidade penal objetiva. Se o agente não tiver ciência a respeito da idade do ofendido, haverá erro de tipo e a qualificadora não poderá incidir ao caso.
É importante destacar, por oportuno, o entendimento consolidado pela jurisprudência no sentido de que as qualificadoras objetivas são compatíveis com o dolo eventual. É inclusive a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (AgRg no AgRg no REsp nº 1836556/PR – 5ª Turma – Relator Ministro Joel Ilan Paciornik – Julgamento em 15.06.2021 – Publicação em 22.06.2021). Portanto, incidirá a qualificadora no caso em que o agente, apesar da dúvida a respeito da idade da vítima (se é ou não menor de 14 anos), ainda assim comete o delito doloso contra a vida com a aceitação da possibilidade dessa idade.
A idade da vítima deve ser verificada no momento da prática da conduta, por força da adoção da teoria da atividade (CP, art. 4º). Nessa perspectiva, na hipótese em que o agente dispara arma de fogo contra um adolescente na véspera do dia em que completa 14 anos, ainda que o óbito ocorra uma semana depois, deverá a qualificadora incidir, vez que no momento da conduta homicida, a vítima ainda era menor de 14 anos.
Muito embora haja entendimento em sentido contrário, somos da opinião de que a prova da idade da vítima pode se dar por qualquer meio idôneo admitido em Direito, pois a lei não impôs, aqui, um sistema da tarifação ou da prova tarifada (sistema adotado apenas excepcionalmente pelo direito processual penal pátrio, a exemplo do art. 62 do Código de Processo Penal). Logo, por força do sistema do livre convencimento motivado (persuasão racional), é prescindível a certidão de nascimento da vítima se outros meios probatórios puderem revelar a idade do ofendido, a exemplo dos elementos de informação contidos em auto de prisão em flagrante, boletim de ocorrência, declarações prestadas perante a autoridade policial, laudo de exame de corpo de delito, termo de identificação cadavérico etc.
De mais a mais, diferentemente de alguns, pensamos que a inclusão desta qualificadora revogou tácita e parcialmente a segunda parte do § 4º do art. 121 do Código Penal, que assim dispõe: “Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos”. Trata-se de revogação tácita, pois a prática do crime de homicídio contra menor de 14 anos, a partir da alteração legislativa, passou a qualificar o delito doloso contra a vida (alteração do balizamento punitivo), e não mais pode servir como causa de aumento de pena. Naqueles casos em que concorrerem mais de uma qualificadora, é certo que uma das circunstâncias será utilizada para qualificar o delito, ao passo que as demais serão valoradas na segunda fase da dosimetria (caso correspondam a uma agravante) ou na primeira etapa da aplicação da pena como circunstância judicial desfavorável (caso não correspondam a uma agravante). É esta, por sinal, a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (HC nº 308.331/RS – 5ª Turma – Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca – Julgamento em 16.03.2017 – Publicação em 27.03.2017). É bom deixar alerta, contudo, que a revogação não alcançou a segunda parte da norma que majora a pena no caso de crime de homicídio praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos.
Lei Henry Borel e a Lei Federal nº 8.072/1990
É importante também assinalar que a Lei Federal nº 14.344/2022 (“Lei Henry Borel”) alterou expressamente a Lei Federal nº 8.072/1990, cujo diploma normativo passou a prever, em seu art. 1º, inciso I, que o crime de homicídio cometido contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos é hediondo.
Por fim, cumpre registrar que a Lei Federal nº 14.344/2022 (“Lei Henry Borel”) ainda inseriu uma nova majorante aplicável exclusivamente ao crime de homicídio praticado contra menor de 14 anos de idade. Trata-se do § 2º-B do art. 121 do Código Penal, que assim dispõe:
“§ 2º-B. A pena do homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos é aumentada de: I – 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade; II – 2/3 (dois terços) se o autor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela. |