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Infanticídio e co-autoria, de Joaquim Jorge de Sousa Filho

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PENAL

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Infanticídio e co-autoria, de Joaquim Jorge de Sousa Filho

REVISTA FORENSE 164

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19/06/2024

1. À I Conferência de Desembargadores, reunida no Rio de Janeiro em 1943, compareceram dois distintos juízes do Ceará, integrantes do seu Tribunal de Justiça.

2. Quem compulse os anais daquele conclave perceberá que os delegados cearenses tiveram participação ativa nos debates, esforçando-se por oferecer contribuição proveitosa à exegese da legislação penal, havia pouco recodificada. As teses propostas versaram matéria do maior alcance para a aplicação do direito positivo, no âmbito dos propósitos da reunião, dissipando-se dúvidas e controvérsias, através de bem lançadas conclusões, que passaram a constituir a interpretação mais autorizada dos textos do Cód. Penal e do Cód. de Proc. Penal.

3. Dentre as proposições levadas ao estudo e exame da Conferência, sugeriu o desembargador JOSÉ DUARTE, membro da representação do Distrito Federal, que se definisse o plenário sôbre a pena a ser aplicada ao partícipe do crime de infanticídio: se a sanção prevista no art. 123, se a cominação constante do art. 121 do Cód. Penal. O magistério de NÉLSON HUNGRIA, tendendo para a segunda hipótese, fizera proselitismo, e entre os seguidores de sua opinião enfileiraram-se os dois delegados do Ceará. O desembargador FRANCISCO LEITE DE ALBUQUERQUE externou-se, dizendo: “Acho que deve ser a pena do crime de homicídio, a não ser quando se trate da própria mãe, que praticou o crime sob a influência do estado puerperal” (“Anais”, pág. 193). OLÍVIO CÂMARA estendeu-se mais, fazendo declaração de voto, na qual deixou escrito: “Se duas ou mais pessoas, por qualquer modo, concorrem para o infanticídio, sòmente a progenitora da criança, se tiver agido sob a influência do estado puerperal, incidirá na penalidade abrandada cominada pelo art. 123 do Cód. Penal, enquanto as demais responderão pelo delito de homicídio, de vez que os têrmos da lei e o conceito do crime não permitem outro modo de entender”. E conclui: “Não sei como atribuir ao terceiro que participa do infanticídio a influência do estado puerperal, que é condição peculiar à parturiente” (ob. cit., págs. 197 a 198).

Ora, nessa ordem de considerações, o instituto da co-autoria havia de ser banido do sistema penal, subvertida a teoria do concursusdelinquentium, em que se inspirou o Código, a desandar o julgador da noção da unicidade e da indivisibilidade do crime, abraçada pelo legislador de 1940, para o quotpersonaeagentestotcrimina. A admitir-se essa tese pluralística, defendida pelos representantes cearenses contra os próprios princípios informadores do estatuto repressivo, perderia todo o sentido a disposição do art. 25, nos explícitos têrmos em que se acha formulada, – “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a êste cominadas” – e, em resultado, se desnaturaria, por exemplo, a co-delinqüência, para efeito de tratamento penal, daquele que não revestisse a qualidade de funcionário público, mas cooperou na realização de qualquer dos delitos catalogados no cap. I, Título XI, do Código.

Entender que se trata de “penalidade abrandada cominada pelo art. 123”, como se lê da declaração de voto do desembargador OLÍVIO CÂMARA, é desaviso de técnica, porque o infanticídio, na sistematização do Código, é uma espécie do gênero crimes contra a vida, tão autônoma quanto o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio e o abôrto provocado, dos quais, no entanto, não se dirá que se lhes comine penalidade abrandada do homicídio.

Sobre o crime de infanticídio

4. Para que de tal maneira se pudesse pensar, era mister que o infanticídio, em vez de inscrito como figura autônoma, com noção própria, na sistemática penal, estivesse relegado a causa de diminuição de pena, caracterizada pelo estado da agente, ao impulso da puerperalidade; era mister que se desprezassem dois princípios basilares do direito penal: a existência do crime por sua própria definição e a estrita legalidade da pena correspondente e a priori; era, ainda, necessário que a disposição primeira do Cód. Penal não vedasse a interpretação analógica e extensiva. O Código de 1880 era peremptório ao dispôr nesse tocante:

“Art. 1º A interpretação extensiva por analogia ou paridade não é admissível para qualificar crimes, ou aplicar-lhes penas”.

O legislador de 1940 consagrou, no pórtico do estatuto punitivo, o postulado de garantia do direito individual, entalhado, aliás, na tradição dos povos democráticos: Nullum crimen, nulla poena sine lege. Calha a advertência que PAULA BATISTA já fazia, em “Compêndio de Hermenêutica Jurídica”: “Um fato criminoso ou é êste mesmo crime segundo sua individuação textual, ou não é crime algum”.

5. A exegese perfilhada pelos dois magistrados cearenses escapou o elemento sistemático. Não se informaram êles na real interpretação, que bastara simplesmente gramatical, do art. 25 do Código, que é remissível ao crime in concreto. É da sua letra que, quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a êste cominadas”. Quidind? É que, se se configurou um crime de infanticídio, não pode o co-autor incorrer em outra sanção, senão naquela cominada para o mesmo fato, o mesmo delito, a que emprestou participação. Não há refugiar-se no inadmissível argumento de paridade, e nem colhe a invocação do art. 26 do Cód. Penal, para que se derive a responsabilidade do co-autor, em procura de outra entidade criminal, a pretexto de que não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal. O equívoco emana da confusão entre circunstânciaspessoais e o elemento que se incorpora à própria noção de infanticídio – a influência do estado puerperal. FRANCISCO CAMPOS, na clássica “Exposição de motivos”, disse, com clareza, do sentido de circunstâncias de caráter pessoal: “As circunstâncias subjetivas que influem sôbre o nomenjuris da infração penal, ainda que inerentes a um só dos partícipes, estendem-se, necessàriamente, aos co-partícipes”. Isso, òbviamente, para o efeito de definir o crime e dar a medida da responsabilidade penal do co-autor.

6. Elementar noção de hermenêutica induz à evidência de que, se, no crime de infanticídio (art. 123), nas penas a êste cominadas não incidisse o co-autor (preceito de ordem geral), teria a lei consignado exceção ao princípio do art. 25. Não interfere, na espécie, o art. 26, porque as circunstâncias de caráter pessoal, aí compreendidas, são accidentaliadelicti, e nunca aquelas que resistem no próprio nomen, na denominação legal do crime, como a influência do estado puerperal; são as contingências, e não elementos da mesma definição do ato incriminado; são fatôres estranhos e desnecessários à existência do evento criminoso, e não requisitos da sua integração.

Se a lei objetivasse as circunstâncias genèricamente consideradas, lato sensu, compreendidos, nessa hipótese, os elementos essenciais do delito, não teria significação o restritivo pessoal. Atente-se para esta observação de M. RUMPF, citado por MAXIMILIANO: “O abandono da fórmula explícita constitui um perigo para a certeza do Direito, a segurança jurídica; por isso é só justificável em face de mal maior, comprovado: o de uma solução contrária ao espírito dos dispositivos, examinados em conjunto. As audácias do hermeneuta não podem ir a ponto de substituir, de fato, a norma por outra” (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, pág. 142).

NÉLSON HUNGRIA alinha como circunstâncias incomunicáveis a reincidência, o motivo torpe, o êrro de fato, a embriaguez fortuita, a menoridade e outras qualidades inerentes ao co-réu – ser funcionário público, ser ascendente ou descendente da vítima. Observe-se, de passagem, que não merece acolhimento na opinião geral dos direitistas a incomunicabilidade do motivo torpe, não obstante ser circunstância subjetiva.

7. A regra é que se interpretam estritamente os preceitos de lei punitiva, bem ao contrário do que sucede em matéria de direito civil comum, o qual, nos casos omissos, se socorre da analogia, dos costumes e dos princípios gerais (art. 4º da Lei de Introdução ao Cód. Civil). A prevalecer o ponto de vista, evidentemente contralegem, dos delegados cearenses à I Conferência de Desembargadores ao partícipe de qualquer dos crimes praticados por funcionário público, e previstos nos arts. 312 e segs. do Cód. Penal, aplicar-se-iam, a êste, a pena cominada em espécie e, àquele, por via de conseqüência, as sanções correspondentes, conforme o caso, aos delitos de furto, dano, apropriação indébita, estelionato, etc.

Os propuganadores da metamorfose em homicida do co-autor de infanticídio podem obtemperar, em última análise, que o art. 26 do Cód: Penal não autoriza a aplicação da pena do art. 123 ao co-delinqüente no ato da mãe que mata o filho durante o parto ou logo após, por faltarem àquele as condições de ordem psíquica geradas pelo estado puerperal. Mas, ainda que assim entendam, não lhes será plausível asseverar que o citado preceito geral, obsta, inequìvocamente, a interpretação em sentido contrário. Em tal conjuntura, uma hermenêutica melhormente orientada conduziria a resultado mais conseqüente: “Prefira-se, ao interpretar as leis, a inteligência favorável ao abrandamento das penas em vez da que lhes aumenta a dureza ou exagere a severidade” (apud CARLOS MAXIMILIANO, ob. cit., pág. 391 a 392).

8. A dúvida, porém, mais se dissipará se o julgador recorrer ao elemento histórico, indo colher na índole do direito penal brasileiro a tendência para a imputação do delito não sòmente à mãe, senão também a quem quer que fôsse responsável pelo assassinato de recém-nascido. Não cuidará o magistrado de emprestar à norma positiva vigente o sentido e o alcance do texto revogado, mas se valerá do subsidio histórico, para, confrontando com êste as disposições dos arts. 25, 26 e 123 do Código atual, bem enquadrar o direito ao caso concreto. Dispunha o Cód. Penal de 1890:

“Art. 298. Matar recém-nascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias do seu nascimento quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando à vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte”.

Já o Cód. Criminal de 1830 apenas nestas palavras definia e compreendia o infanticídio:

“Art. 197. Matar alguém recém-nascido”.

CARLOS MAXIMILIANO, discorrendo em tôrno da utilidade do elemento histórico na operação exegética, e depois de advertir que pode êsse método conduzir a dois extremos opostos e perigosos – o excessivo aprêço e o completo repúdio do direito anterior, escreve: “Do repúdio sistemático do passado resulta um grande mal: o salto nas trevas, o excesso de modernismo, abandono da tradição compatível, pelo menos até certo ponto, com as normas em vigor. A conseqüência lógica de tal processo há de ser introduzir à fôrça, nos textos, um espírito ou sentido “, que aos mesmos é estranho” (ob. cit., pág. 175). E. invocando TRIGO DE LOUREIRO, SAREDO e SUTHERLAND, parece dirigir-se aos conferencistas de julho de 1943: “O que hoje vigora abrolhou de germes existentes no passado; o direito não se inventa; é um produto lento da evolução, adaptado ao meio; com acompanhar o desenvolvimento desta, descobrir a origem e as transformações históricas de um instituto, obtém-se alguma luz para o compreender bem” (ob. cit., página 171).

9. Não aplaudimos o raciocínio daqueles que, admitindo a existência de um crime de infanticídio, integrado, em relação a um dos agentes, de todos os elementos da sua definição legal, entendem deva o co-autor dêsse mesmo delito ser inculpado por outra figura criminal, de conceituação diversa daquela para cuja realização colaborou. Nesse caso, que sentido teria o texto do art. 25 do Código, preceituando que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a êste cominadas? Por via de conclusão, em vez de um concurso de agentes, e nesse caso não cabia falar em co-autoria, estaríamos em face de delitos e de autores distintos. A exceção não está prevista na lei e nem o art. 26, como demonstramos, se adequa à espécie.

10. Não assiste razão, pois, aos dois magistrados cearenses, delegados à I Conferência de Desembargadores. Nem a êles, nem aos que os acompanharam nesse passo.

Jamais, diante de qualquer caso em nosso Juízo, deixaríamos de pronunciar o co-autor em infanticídio, como incurso na pena a êsse crime cominada pelo art. 123 – detenção, de dois a seis anos. Sòmente assim não decidiremos, se se desfigurar o infanticídio em relação também à parturiente, pela demonstração de que o estado puerperal não interferiu com a sua capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acôrdo com êsse entendimento. Em tal hipótese e em tais condições, derivará a pronunciatio para o homicídio, sem distinção na imputabilidade, senão quanto às condições pessoais incomunicáveis (art. 26).

Joaquim Jorge de Sousa Filho, juiz no Estado do Ceará.

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