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A ilegalidade dos acordos de blindagem patrimonial na delação premiada
Víctor Gabriel Rodríguez
04/11/2020
Por Víctor Gabriel Rodríguez e Eduardo Saad-Diniz*
Tem sido constante nosso alerta para que os mecanismos de delação premiada encontrem um equilíbrio entre o utilitarismo e os pressupostos de equidade na reprimenda penal. Afinal, com o passar do tempo, a partir das primeiras aplicações do instituto, os exageros no prêmio ao delator trabalham contra os pressupostos de Justiça material, e disso derivam obstáculos para sua legitimação, que já é bastante frágil. Se bem é verdade que o sistema de Justiça premial demanda uma flexibilidade nas antigas regras de aplicação da Justiça, também é fato que se espera do Judiciário que imponha ao menos uma fronteira para as penas negociadas: o limite da legalidade.
O desrespeito aos limites legais à Justiça negociada em matéria penal, para o estudioso, já anunciavam a tragédia que se materializou: conforme matéria da ConJur [1], muitos dos delatores, por meio dos acordos de colaboração, preservaram patrimônio milionário ao confessarem participar de um esquema de corrupção que, por sua vez, desviou bilhões dos cofres públicos.
O centro do problema está em que, na prática, os acordos de delação premiada foram desvirtuados para se transformarem justo no oposto do seu objetivo primeiro: em lugar de serem instrumento de imediata constrição do patrimônio do delator, em nome do direito à reparação, mutaram-se em uma garantia absoluta de que parte de seus bens jamais serão atingidos pelo enforcement penal. Em outras palavras, o acordo de delação travestiu-se para ser um instrumento público de blindagem patrimonial do delator.
Se for assim, o “acordo de blindagem patrimonial” esvazia em definitivo a retórica da proteção do interesse público nas negociações. É apenas uma expressão aggiornata das práticas patrimonialistas, porém, com a cobertura moral para atender a causas mais elevadas ou a sentimentos mais nobres de Justiça e combate à impunidade. Com alguma facilidade, é possível demonstrar que o exercício do controle social pelas vias da negociação acaba sendo reduzido à acomodação de interesses privados. A leitura realista das estratégias de colaboração põe em evidência a exploração de ambientes fragilmente regulados ou mesmo captura do sistema de Justiça criminal em favor do próprio patrimônio.
Essa inversão vetorial está longe de ser autorizada pela lei, e esse é o centro de nosso texto. Comecemos pela norma especial: os artigos 3º e 4º da Lei 12.850/2013 restringem os benefícios do delator ao campo da aplicação da pena: sua diminuição em um teço a dois terços, alguma leniência em seu regime de cumprimento e, em caso de excepcionalidade, eventual perdão judicial ou não oferecimento de denúncia. Quando a acusação barganha diretamente com a preservação de patrimônio do criminoso-delator, está a negociar, já o dissemos [2], com uma moeda que não lhe pertence.
Isso porque o poder-dever do Estado de constranger o patrimônio do réu para fins de ressarcimento não é, em regra, pena. Trata-se dos efeitos da condenação do artigo 91 do CPB, encabeçado pela decorrência de “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime” (inciso I do artigo). O condenado tem de reparar o prejuízo que causou, amplamente entendido, e não há qualquer exceção aberta a tal consequência.
Note-se que, por ser uma obrigação de indenização, a regra do artigo 91, I, do CPB não se confunde com a perda, em favor da União, do proveito auferido pelo agente com a prática criminosa, efeito previsto em inciso diverso (artigo 91, II, b, do CPB). Portanto, para colocar um exemplo, se um agente-delator recebe uma herança após a delação, nada pode impedir que esse incremento de patrimônio venha a ser constrito pelo Estado ou por qualquer outro vitimado, para cobrir comprovados prejuízos causados pelo delito. Na operação “lava jato”, enquanto não houver ressarcimento de um bilionário [3] montante desviado, é muito difícil aceitar ideia diversa de que todos os envolvidos são devedores solidários nessa obrigação reparatória, ao menos naquela quantia que guarde relação de causalidade com seu comportamento delitivo.
Mas ainda nem conhecemos, não ao menos com alguma validação científica, o dano efetivamente gerado pelos crimes econômicos. A ausência de delimitação do dano afeta sensivelmente o rendimento da reparação, negligenciando quem deveria ocupar a posição de protagonista: a vítima dos crimes econômicos [4]. O histórico recente de colaborações é episódico e, por mais que tenha gerado certa volumetria de casos no sistema de Justiça criminal, trouxe avanços ainda pouco significativos para entender como de fato se dá a dinâmica da desgovernança e da criminalidade no Brasil.
Sequer serve, para sustentar a legalidade dos acordos de blindagem, afirmar que a parte geral do Código Penal esteja inadequada, por desatualização, ao espírito da justiça negociada. O pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) acaba de reformar exatamente esse Capítulo do CPB, para acrescentar à codificação o artigo 91-A. Nele, longe de haver qualquer exceção à medida restaurativa, apenas se incrementaram as medidas para fazer mais imediata a reparação do dano. O mesmo pacote “anticrime”, aliás, restringiu as possibilidades de benefício de regime de cumprimento de pena que violem as regras da Parte Geral do Código Penal [5], em mais uma assertiva contundente de que segue sendo esta, a parte geral, quem dita as regras quando ausente expressa flexibilização pelas normativas especiais de Justiça premial. Flexibilização que, por ser excepcional, merecerá interpretação sempre restritiva.
Parece muito salutar para a sociedade que o delator, no momento do acordo, entregue já grande parte de seus bens e, nessa entrega, naturalmente pode sobrar-lhe algum quinhão. Dizer que não tem de entregar todo seu patrimônio não significa, entretanto, uma garantia ad eternum ao descumprimento ao dever da Parte Geral do Código.
A única exceção seriam os casos de aplicação do perdão judicial, em que se extingue a punibilidade, ou de não oferecimento da denúncia, previstos na Lei 12.850/2013. Porém, eles não só importam em que a pena aplicada ao delator seja um zero absoluto, como também contaminam a legitimidade da barganha: um réu perdoado via o pagamento de quantia por seus próprios dinheiros estaria, bem antes que ressarcir o erário, aproveitando-se de seu poder econômico para comprar o perdão por seu pecado, o que equivale a colocar o Estado no infame papel de vendedor de indulgências. Isso direciona ainda mais os benefícios da delação a um direito consagrado a elites [6], novamente afastando-o da mínima sensação de Justiça que qualquer intervenção penal tem a obrigação de efetivar. Em um país em que a esmagadora maioria dos cidadãos não tem sequer um imóvel próprio, ver um corrupto autointitulado arrependido preservar seus milhões, ainda que a lei o autorizasse, é de duvidosa conveniência.
É em certa medida compreensível que os órgãos persecutores, no objetivo de ampliar o alcance do Direito Penal, busquem atrativos ao delator, entre os quais está a mais que adocicada proteção de suas riquezas. Quando o fazem ao arrepio da lei, abandonam a sentinela de fiscais da norma para serem agentes puros da acusação; algo inédito, mas há de se aceitar serem essas as novas posições do tabuleiro, no novo jogo da Justiça negociada. Impossível, entretanto, é admitir que o Judiciário homologue esses verdadeiros instrumentos de blindagem patrimonial, na contramão de todo o ordenamento jurídico. É dos juízes que se espera que jamais renunciem a proteger a esperança social de que o poder público sinalize, sempre que possível, que o “crime does not pay”, que o crime não compensa.
Assistir aos delatores distantes do cárcere e exibindo patrimônio oficialmente intocável, convenhamos, não está contribuindo para aumentar essa esperança de Justiça penal equitativa.
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*Víctor Gabriel Rodríguez é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), membro do Prolam/USP, autor do livro “Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado”, pela Editora Gen Forense, com versão íbero-americana pela Editora Temis (Colômbia e Argentina), e professor convidado pela Universidade de Granada (Espanha), financiado pela Fundación Carolina.
Eduardo Saad-Diniz é professor livre-docente de Criminologia da USP, membro do Prolam/USP e autor do livro “Ética Negocial e Compliance”, pela Editora Revista dos Tribunais, com versão íbero-americana pela Editora Hammurabi no prelo.
[1] “Orlando Diniz pôde manter US$ 250 mil no exterior; Dario Messer recebeu R$ 11 milhões de herança; Alberto Youssef inicialmente receberia R$ 1 milhão para cada R$ 50 milhões recuperados; Antonio Palocci manteve mais da metade de seu patrimônio de R$ 80 milhões”. Veja-se: https://www.conjur.com.br/2020-set-29/combater-corrupcao-lava-jato-preserva-patrimonio-delatores
[2] Veja-se: https://www.conjur.com.br/2019-jun-04/victor-rodriguez-direitos-delatado-ea-precipitada-posicao-stf
[3] O acordo de leniência da Braskem/Odebrecht alcançou 4,5 bilhões de dólares, o que dá um parâmetro para calcular os prejuízos da corrupção aos cofres públicos. Veja-se: “Odebrecht agreed that the appropriate criminal fine is $4.5 billion, subject to further analysis of the company’s ability to pay the total global penalties. In related proceedings, Odebrecht also settled with the Ministério Publico Federal in Brazil and the Office of the Attorney General in Switzerland”. Informe na página web del DoJ em: https://www.justice.gov/opa/pr/odebrecht-and-braskem-plead-guilty-and-agree-pay-least-35-billion-global-penalties-resolve
[4] Mais sobre, SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. São Paulo: Tirant, 2019, p. 151 e ss.
[5] Artigo 4º, § 7º, inc. II da Lei 12.850 de 2013, incluído pela lei 13.964 de 2019.
[6] Sobre a delação premiada como um Direito Penal de classe alta, veja-se nosso: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: limites éticos ao Estado, RJ: Gen Forense, 2019, p. 128