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PENAL
Aspectos jurídicos do gênero true crime
Anderson Schreiber
19/01/2024
Está marcado para 6 de dezembro o lançamento mundial de “John Lennon: Murder Without A Trial”, série documental sobre o assassinato de John Lennon por Mark David Chapman, ocorrido em dezembro de 1980. A produção é uma grande aposta da Apple TV+, que a descreve como a investigação mais exaustiva já feita sobre o crime.[1] O gênero true crime, aliás, está em alta no Brasil.[2] O longa-metragem “A menina que matou os pais: a confissão”, que trata do assassinato dos pais de Suzane von Richthofen, rapidamente ficou entre os mais assistidos do streaming após seu lançamento no final de outubro.[3]
True crime
O gênero true crime baseia-se, como se sabe, na veiculação de relatos, depoimentos ou encenações de crimes reais. Tais programas desempenham uma função híbrida, situada entre a reportagem, a análise histórica e o entretenimento. Por vezes, agrega-se a isso um propósito investigativo, como se vê na recém-lançada 6ª temporada do podcast “Projeto Humanos”, de Ivan Mizanzuk, que se propõe a investigar o assassinato do menino Leandro Bossi, ocorrido em 1992, na cidade de Guaratuba, litoral do Paraná, que nunca foi devidamente esclarecido pelas autoridades públicas.[4]
Por vezes, o true crime também se presta a fomentar o debate público sobre temas relevantes, como ocorreu com o podcast “Praia dos Ossos”, da Rádio Novelo, que, ao contar a história do assassinato da socialite Ângela Diniz por seu então namorado, se debruçou sobre contexto vivido nos anos 70 no Brasil, debatendo com profundidade temas como a desigualdade de gênero, a violência contra a mulher a chamada “legítima defesa da honra”.[5]
Naturalmente, o gênero também enfrenta resistências. O filme “Ângela”, lançado em setembro de 2023, que também narra as circunstâncias do assassinato de Ângela Diniz, tem sido criticado pelo público por “explorar a tragédia pela tragédia”.[6] As reações mais adversas a produções do gênero true crime, porém, costumam vir por parte de pessoas que viveram o episódio relatado, especialmente familiares de vítimas e de acusados pelo crime. Instala-se, muitas vezes, um conflito jurídico entre, de um lado, a liberdade de expressão e informação e, de outro lado, a proteção à privacidade e à intimidade familiar.
True crime e a Lei
Exemplo emblemático tem-se no caso Aída Curi, no qual familiares de uma vítima de feminicídio ocorrido em 1958 ajuizaram ação de indenização por danos morais em face de emissora de TV, alegando que a exibição de documentário sobre o caso os fez reviver dores e encenou, sem autorização prévia, cenas da sua intimidade familiar, ocorrida há mais de 50 anos. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Recurso Extraordinário 1.010.606, em que a Corte fixou a seguinte tese:
“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.[7]
A tese do STF rejeita a ideia de que a passagem do tempo, por si só, poderia amparar uma pretensão de obstar a divulgação de fatos verídicos, mas ressalva a possibilidade de um juízo casuístico acerca da licitude da invocação de fatos pretéritos à luz de parâmetros bastante genéricos (“proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral”).
Em razão disso, a tese não chega a servir de norte muito seguro para a solução dos casos concretos. Melhor teria sido que a Corte tivesse aproveitado aquela oportunidade para indicar parâmetros para a ponderação, ao menos nas hipóteses de programas de true crime, tais como: (a) a existência ou não de efetiva repercussão histórica do fato; (b) a existência ou não de risco à identidade pessoal dos envolvidos; (c) a retratação ou não de aspectos sensíveis, como encenação de violência sexual contra a vítima ou encenação da reação da família à notícia do crime; (d) a ausência ou não de notoriedade prévia dos envolvidos, e assim por diante.
A aplicação desses e outros parâmetros objetivos pode ajudar a dar um norte à atuação judicial, atribuindo alguma segurança e uniformidade às decisões proferidas em conflitos envolvendo o gênero true crime. É preciso transcender o superficialismo das preferências e privilégios apriorísticos entre direitos fundamentais, mais dados a disfarçar as colisões entre eles que propriamente a resolvê-las.
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NOTAS
[1] Ver as reportagens “Apple TV+ announces definitive new documentary series, ‘John Lennon: Murder Without A Trial’ narrated by Emmy Award winner Kiefer Sutherland” (apple.com, 26.10.2023) e “Série documental sobre assassinato de John Lennon ganha trailer; assista ao video” (O Globo, 28.11.2023).
[2] “Na onda dos filmes sobre Suzane von Richthofen, ‘true crime’ está em alta no Brasil” (Folha de S. Paulo, 7.10.2021).
[3] “Carla Diaz agradece fãs após sucesso de novo filme sobre caso Richthofen” (Splash UOL, 30.10.23).
[4] “Projeto Humanos: Desaparecimento de Leandro Bossi e conexões com caso Evandro são tema de nova temporada do podcast” (G1, 24.10.2023).
[5] O tema continua atual. Em agosto desse ano, o Supremo Tribunal Federal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres (ADPF 779).
[6] “Filme de Ângela Diniz envereda pelo pior caminho ao retratar feminicídio” (Veja, 7.9.2023).
[7] Tema 786 (STF, Tribunal Pleno, RE 1.010.606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 11.2.2021).