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Aporofobia e o Projeto de Lei nº 3.135/2020:  a criminalização da pobreza e a responsabilidade do Estado

APOROFOBIA

GEN Jurídico

GEN Jurídico

10/10/2023

Aporophobia and bill no. 3.135/2020: the criminalization of poverty and the responsibility of the State

RESUMO: O presente artigo abordará a questão da aporofobia, com enfoque na criminalização da pobreza e seus desdobramentos. Para tanto, refletir-se-á sobre o crescente discurso de ódio e aversão aos pobres, que potencializa a vulnerabilidade deles sob todos os ângulos, representando um duplo flagelo aos mais excluídos, que sofrem com a pobreza em si e com o preconceito advindo de sua situação de adversidade. Ademais, será debatida a temática da responsabilidade da sociedade e do Estado nesse processo, especialmente aludindo a questões de política criminal e social. Em seguida, analisar-se-á o Projeto de Lei nº 3.135/2020, que propõe a inclusão da aporofobia como circunstância agravante na prática de alguns crimes previstos no Código Penal, quais sejam: o artigo 121 – homicídio, o artigo 129 – lesão corporal e artigo 140 – injúria, quando estes forem cometidos em razão de sentimento de ojeriza pela condição de pobreza da vítima. Ao final, o escopo deste estudo pretende tecer considerações sobre como garantir uma existência digna e com reais oportunidades de autodeterminação a todos os indivíduos, num cenário em que o obstáculo vai além das questões econômicas, vez que envolve um contexto permeado por preconceitos alicerçados num histórico de tradição colonialista, escravocrata e capitalista, que remete a posições extremamente conservadoras, de viés elitista.

PALAVRAS-CHAVE: Aporofobia. Criminalização da pobreza. Dignidade humana. Responsabilidade do Estado. PL nº 3.135/2020.

ABSTRACT: This article will  discuss the issue of aporophobia, focusing on the criminalization of poverty and its consequences. To this end, a reflection will be made on the growing discourse  of hatred and aversion towards the poor, which enhances their vulnerability from all angles, representing a double scourge to the most excluded, who suffer from poverty itself and from the prejudice  towards their adversity situation. In addition, the theme of the responsibility of society and of the State in this process will be discussed, especially referring to issues of criminal and social policy. Then, we will analyse Bill of Law nº 3.135/2020, which proposes the inclusion of aporophobia as an aggravating circumstance in the practice of some crimes foreseen in the Penal Code, namely: article 121 – homicide, article 129 – bodily injury and article 140 – injury, when these are committed due to a feeling of disgust due to the victim’s condition of poverty. In the end, the scope of this study intends to consider how to guarantee a dignified existence with real opportunities for self-determination to all individuals, in a scenario where the obstacle goes beyond economic issues, since it involves a context permeated by prejudices based on a historical of colonialist, slavery and capitalist tradition, which leads to extremely conservative positions, with an elitist bias.

KEYWORDS: Aporophobia. Criminalization of poverty. Human dignity. State responsibility. Bill nº 3.135/2020.

SUMÁRIO: 1 Introdução: o duplo flagelo representado pelo incremento da situação de pobreza. 2 Aporofobia: a criminalização da pobreza e seus desdobramentos. 3 Justiça: o papel do Direito e do estado na ressignificação dos valores. 4 Projeto de Lei nº 3.135/2020: legitimidade e direito penal simbólico. 5 Considerações finais. Referências.

1 Introdução: o duplo flagelo representado pelo incremento da situação de pobreza 

Não há como negar que a grave crise econômica enfrentada no contexto atual, a cada dia mais evidencia o ponto crítico do regime capitalista e de economia de mercado, consubstanciado “na exclusão do circuito econômico, político, social e cultural de parcela substancial da humanidade, chegando ao ponto crítico de colocá-la à mercê do flagelo da pobreza”, compreendida como a “privação das condições dignas de vida pela pessoa humana” (SAYEG & BALERA, 2019, p. 67).

Sabe-se que essa situação não é novidade, pois faz parte de uma conjuntura histórica e mundial, e configura-se como uma preocupação recorrente. Em suma, a situação de pobreza subjuga a pessoa individualmente, ensejando grave prejuízo à sua autodeterminação, além de impedir sua integração, o que impacta não só o aspecto individual, mas visivelmente também toda a sociedade, inclusive o próprio sistema de economia de mercado.

Nessa perspectiva, não se pode olvidar que, entre os objetivos fundamentais elencados na Constituição Federal (BRASIL, 1988), consta, expressamente, no artigo 3º, inciso III: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, o que vai ao encontro do preceito também insculpido no artigo 1º, inciso III, referente à “dignidade da pessoa humana”. 

À vista disso, na tentativa de proporcionar algum equilíbrio, encontra-se disposto na Constituição brasileira um sistema que, mesmo pautado na livre iniciativa e na proteção da propriedade privada, vincula seu uso à função social, com a previsão de intervenções estatais no domínio econômico, além de várias obrigações e direitos no âmbito social, dentre os quais se destacam a previdência e a assistência social, com o escopo de garantir as condições mínimas de subsistência às pessoas e reduzir as desigualdades, vez que o próprio artigo 170 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) dispõe que a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. 

Nesse sentido, a doutrina reforça o entendimento de que:

[…] no campo econômico, a nossa Constituição Federal não adotou um modelo de Estado liberal, mas um modelo de Estado regulador/intervencionista. Assim, asseguram-se a livre-iniciativa e o livre exercício de atividade econômica, “salvo nos casos previstos em lei”. No mesmo sentido, garante-se a propriedade privada, submetendo-a, porém, ao cumprimento de uma “função social”. Outros princípios listados no art. 170 da CF/1988 também deixam clara a opção do legislador constituinte por um Estado regulador/intervencionista: a soberania nacional, por exemplo, fundamenta a implementação de política pública industrial (protecionismo) e embasa as regras que regulam, muitas vezes de forma restritiva, os investimentos externos no país (art. 172 da CF/1988: “a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros”); a redução das desigualdades regionais também é justificativa para intervenções estatais na economia, por meio da adoção de política pública redistributiva, da concessão de incentivos fiscais ou da criação de órgãos estatais encarregados de promover o desenvolvimento de certas localidades (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene); no mesmo sentido, a busca do pleno emprego também funciona como ferramenta de intervenção no mercado, chegando a embasar políticas públicas que proíbem as empresas de demitir funcionários, por exemplo. (RAMOS,2018, p. 1324)

Inclusive, observando essa linha de atuação, encontra-se em trâmite a PEC nº 208/2019 (BRASIL, 2019), que determina ser do Estado o dever de combater a pobreza, nos seguintes termos:

Art. 1º. A Constituição Federal passa a vigorar acrescida do seguinte art. 204-A:

“CAPÍTULO II-A DO COMBATE À POBREZA

Art. 204-A. O combate à pobreza é dever do Estado, que formulará e implementará políticas públicas para sua mitigação e erradicação, inclusive por meio de transferência de renda a unidades familiares em situação de pobreza e de extrema pobreza, nos termos da lei”.

Essa proposta expressa em sua justificativa a finalidade de “combater a desigualdade no Brasil e possibilitar que as pessoas atendidas consigam efetivamente exercer sua cidadania” (BRASIL, 2019), com foco em políticas públicas ativas, como, por exemplo, no caso da transferência efetiva de renda, que visa minimizar os efeitos deletérios da pobreza, com evidente papel redistributivo.

Porém, é inequívoco que, na prática, todo esse aparato legal não é suficiente para acabar com a pobreza, nem no Brasil, nem no mundo. Segundo estimativas realizadas recentemente pelo Banco Mundial, a respeito de uma primeira análise do panorama global após a pandemia, em 2020, cerca de 70 milhões de pessoas foram abarcadas pela situação de pobreza extrema, o que significa “o maior aumento ocorrido em um ano desde o início de seu monitoramento global em 1990”, levando “aproximadamente 719 milhões de pessoas a subsistirem com menos de US $2,15 por dia no final de 2020” (WORLD BANK GROUP, 2022). 

Nesse sentido, o relatório indica que: 

[…] 2020 foi o marco de uma reviravolta histórica – quando a era da convergência global de renda sucumbiu à divergência. As pessoas mais pobres pagaram o preço mais alto da pandemia: as perdas de renda atingiram 4% em média para os 40% mais pobres, o dobro das perdas dos 20% mais ricos em termos de distribuição de renda. Consequentemente, a desigualdade global aumentou pela primeira vez em décadas. (WORLD BANK GROUP, out. 2022)

Além da pandemia, é notório que também a guerra da Ucrânia e outros fatores regionais e internacionais contribuem para a inflação extrema, especialmente no que concerne à alta histórica do preço dos alimentos e da energia, fatores ensejadores de uma crise múltipla que culmina com o incremento significativo da lastimável estatística da pobreza mundial. 

No contraponto, revelando a desigualdade até na crise, relatório da Oxfam, elaborado também com base em projeções do Banco Mundial, indica que a riqueza bilionária aumentou, “as grandes corporações parecem estar explorando um ambiente inflacionário para aumentar os lucros às custas dos consumidores […], enquanto investidores esperam que empresas agrícolas se tornem rapidamente mais lucrativas à medida que o preço dos alimentos também dispara” (OXFAM, 2022). 

Desta forma, resta evidente, novamente, que os países mais pobres e as pessoas mais pobres são os que sofrem maior impacto, de maneira que a desigualdade só se amplia, consolidando um retrocesso aterrador na luta contra a pobreza. Essa situação reverbera como um sinal de alerta muito significativo tanto para o Estado como para a sociedade. 

Sendo assim, é inadiável que todos compreendam e internalizem que a erradicação da pobreza é uma necessidade premente para o bem de todos não apenas individualmente, mas também como sociedade global. Portanto, é urgente caminhar para um cenário em que: 

[…] todos estarão igualados no que tange aos níveis dignos de subsistência, via de consequência, a partir desta igualdade na base de uma vida digna, todos terão a real liberdade de promover suas potencialidades ao infinito. Com a erradicação da pobreza, a meta constitucional é que não haja limite para a prosperidade, contudo seja abolida a miséria, sendo que cada um é especialmente responsável por seu posicionamento entre tais níveis dignos de subsistência e a sua própria e pessoal condição. Erradicada a pobreza, o homem e todos os homens passam a ser senhores de seus próprios passos, todavia, imunes à miséria econômica. (SAYEG & BALERA, 2019, p. 74)

Nesse sentido, denota-se que é esse o fundamento do ambicioso planejamento firmado pela  Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015, conhecido como Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, o qual estabeleceu a “erradicação da pobreza” como o primeiro item na lista dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS): 

Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares

1.1 Até 2030, erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas em todos os lugares, atualmente medida como pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 por dia

1.2 Até 2030, reduzir pelo menos à metade a proporção de homens, mulheres e crianças, de todas as idades, que vivem na pobreza, em todas as suas dimensões, de acordo com as definições nacionais

1.3 Implementar, em nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo pisos, e até 2030 atingir a cobertura substancial dos pobres e vulneráveis

1.4 Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, particularmente os pobres e vulneráveis, tenham direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a serviços básicos, propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos naturais, novas tecnologias apropriadas e serviços financeiros, incluindo microfinanças

1.5 Até 2030, construir a resiliência dos pobres e daqueles em situação de vulnerabilidade, e reduzir a exposição e vulnerabilidade destes a eventos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres econômicos, sociais e ambientais

1.a Garantir uma mobilização significativa de recursos a partir de uma variedade de fontes, inclusive por meio do reforço da cooperação para o desenvolvimento, para proporcionar meios adequados e previsíveis para que os países em desenvolvimento, em particular os países menos desenvolvidos, implementem programas e políticas para acabar com a pobreza em todas as suas dimensões

1.b Criar marcos políticos sólidos em níveis nacional, regional e internacional, com base em estratégias de desenvolvimento a favor dos pobres e sensíveis a gênero, para apoiar investimentos acelerados nas ações de erradicação da pobreza. (ONU, s.d.)

Assim, verifica-se que o referido documento trouxe à baila metas diretas de esforço conjunto no sentido da erradicação da pobreza extrema até 2030; bem como a perspectiva de redução da proporção de pelo menos metade das pessoas que vivem em situação de pobreza, em todas as suas dimensões, de acordo com as definições nacionais; e por fim a previsão da criação de marcos políticos em níveis nacional, regional e internacional, com estratégias de desenvolvimento e incentivo de investimentos nesse âmbito.

Todavia, consoante consta do supracitado relatório do Banco Mundial, “é improvável que o mundo consiga atingir a meta de erradicação da pobreza extrema até 2030 na ausência de taxas de crescimento econômico que mudem o rumo da história até o final desta década” (WORLD BANK GROUP, out. 2022). 

Para tanto, o documento aponta que a intensificação da cooperação global e as reformas de políticas públicas são essenciais, com o propósito de proporcionar um aumento de transferências diretas de renda aos mais vulneráveis, bem como concentrar investimentos para crescimento de longo prazo, com base em infraestrutura, educação, pesquisa e desenvolvimento, com o escopo de minimizar as distorções na distribuição da riqueza, que promovem contradições e desigualdades históricas, que não têm origem simplesmente na escassez de recursos, consoante sintetizado a seguir:

[…] A origem da pobreza é anterior ao próprio surgimento do capitalismo, mas sua permanência, nos dias atuais, é diretamente atrelada ao desenvolvimento das forças produtivas e à não superação de suas contradições intrínsecas. Assim, tem-se que, nas

sociedades pré-capitalistas, sua existência remontava à escassez de produção decorrente da ausência de forças produtivas disponíveis e suficientemente desenvolvidas para produzir para todos. A crise era consequência da escassez de produção. O aparente paradoxo da atualidade é que, a despeito de toda a evolução científica, tecnológica e econômica, em pleno limiar do século XXI, ainda convivemos com altas taxas de pobreza e desigualdades sociais, não apenas no Brasil, mas em diversos cantos do planeta, revelando que tais fenômenos não têm origem simplesmente na escassez de recursos, mas em um padrão específico de desenvolvimento, marcado pela desigualdade estrutural na distribuição das riquezas social e coletivamente produzidas. Tal situação tem se mostrado, cada vez mais, insustentável, comprometendo a sobrevivência, a dignidade e o bem-estar sociais e, ao mesmo tempo, a própria reprodução do sistema como um todo e se configurando como uma crise no seio do padrão de acumulação. (CASTRO, 2021, p. 45)

Diante do exposto, denota-se um grande desafio inicial concernente à necessária redução da concentração de riquezas, ampliada pelo sistema capitalista de produção. Contudo, é extremamente complicado visualizar como atingir, na prática, as metas estabelecidas pelos ODS, aliviando realmente a situação dos mais pobres,  de maneira a garantir uma existência digna e com reais oportunidades de autodeterminação, num cenário em que o obstáculo vai além das questões meramente de ordem econômica, pois envolve um contexto permeado por um preconceito da sociedade que se alastra vertiginosamente, ensejando a ampliação assustadora de um discurso de ódio contra os pobres, o que potencializa sua vulnerabilidade sob todos os ângulos, representando um duplo flagelo aos mais excluídos, os quais sofrem com a pobreza em si e com o preconceito advindo de sua situação de adversidade. 

Nessa esteira, o objeto deste trabalho tem como desiderato abordar a questão da aporofobia, com enfoque na criminalização da pobreza e seus desdobramentos refletidos no discurso de ódio e aversão aos pobres, mas também trazendo ao debate a temática relativa à responsabilidade do Estado nesse processo, para ao final discutir a legitimidade do Projeto de Lei nº 3.135/2020, que inclui como circunstância agravante de alguns crimes o fato de serem praticados contra a pessoa em razão de sentimento de ojeriza por sua condição de pobreza. 

2 Aporofobia: a criminalização da pobreza e seus desdobramentos

Com efeito, a pretexto de implementar e sustentar um “modelo”, é comum afastar “peças” que não se encaixam nos requisitos predefinidos do “quebra-cabeça”. Assim, são padronizados perfis de comportamentos, expectativas, procedimentos e políticas, de maneira a garantir legitimidade para manutenção de determinado status quo

Todavia, é indispensável adotar um posicionamento atento e crítico para compreender a quem interessa a continuidade desse status, especialmente num contexto histórico de tradição colonialista, escravocrata e capitalista, que enseja um contexto social permeado por posições extremamente conservadoras, de viés elitista. 

Decerto, esse cenário naturaliza e institucionaliza determinadas espécies de violências, como mecanismos de controle dos “adversários”, selecionados por critérios relacionados ao gênero, raça, ideologia e perfil socioeconômico, para potencializar uma homogeneização e oprimir as “minorias” (CARAPIÁ, 2019, p. 1-2), de modo a excluí-las e invisibilizá-las. 

Esse movimento revela de que maneira as relações de assimetria são legitimadas por uma visão deformada de grupos dominantes (CORTINA, 2020, p. 21-22), os quais se consideram superiores e detentores do direito de desprezar e atacar frontalmente aqueles que julgarem inferiores, o que evidencia a fragilidade do direito à dignidade humana, vez que os mais vulneráreis ficam sujeitos à constante intolerância pelas mais diversas razões: racismo, xenofobia, homofobia, misoginia, e outros tantos tipos de preconceitos, com ou sem nomes específicos, que resultam em discriminação, violência e sofrimento recorrente.

Desta forma, além de relacionar os aspectos históricos envolvidos nessa problemática, é imprescindível considerar que manter essa adversariedade e o abismo social pode ser bastante conveniente para atender determinados interesses de grupos dominantes. Talvez essa seja a maior razão que sustenta, até hoje, a retroalimentação de um discurso com reminiscência lombrosiana para criação e manutenção de estigmas que, hodiernamente, elevaram a criminalidade ao ponto de maior problema da sociedade e, de maneira incongruente e reducionista, atrelaram essa crescente criminalidade à pobreza. 

Afinal, numa sociedade de consumo, não parece estranho estabelecer uma sinonímia entre a ideia do indivíduo pobre ser um sujeito marginal (BECHARA & FUZIGER, 2020, p. 95). Com efeito, é indiscutível que os mais pobres estão à margem, são excluídos social, cultural e economicamente, restando evidente como essa população é “marginalizada”, principalmente em razão da deficiência das políticas públicas, o que não indica que todas essas pessoas sejam “marginais”, no sentido de delinquentes ou criminosos contumazes. 

Essa concepção reduz sobremaneira a perspectiva de análise, simplificando erroneamente uma conjuntura demasiadamente complexa, que apresenta muitos pontos e contrapontos, cujo entendimento exige múltiplos olhares e atuações diversas em âmbito individual, social e institucional. 

Todavia, ao invés de todos, coletivamente, e cada um, individualmente, assumirem sua própria responsabilidade e, também, exigirem que as instituições públicas e privadas exerçam seus papéis, denota-se movimento, num sentido contrário, em que prevalece uma mídia tendenciosa, uma hostilidade constante, uma agressividade desmedida, um desrespeito crescente conceituado como liberdade de expressão, que assola os mais vulneráveis no mundo real e nas plataformas virtuais, onde os grupos preconceituosos atuam com ainda mais força e brutalidade.

Nesse ponto, releva mencionar notável consideração de CORTINA (2020, p. 25), que traz a convicção de que a “rejeição ao pobre é mais extensa e profunda do que os demais tipos de aversão”, vez que está na raiz de todos os demais preconceitos: 

[…] É o pobre, o áporos que incomoda, inclusive o da própria família, porque se considera o parente pobre como uma vergonha que convém deixar de lado, ao passo que é um prazer ter o parente triunfante, bem situado no mundo acadêmico, político, artístico ou no dos negócios. É a fobia do pobre o que leva à rejeição às pessoas, raças e etnias que habitualmente não têm recursos e, portanto, não podem oferecer nada ou parecem não poder fazê-lo. (CORTINA, 2020, p. 25)

Por isso, a autora ressalta como uma premente necessidade intitular essa patologia social a fim de “poder diagnosticá-la com maior precisão, para tentar descobrir sua etiologia e propor tratamentos efetivos”. Para tanto submeteu à Real Academia da Língua Espanhola a proposta de inclusão no dicionário do neologismo “aporofobia”, do grego á-poros (pobre) e fobéo (aversão), para designar “ódio, repugnância ou hostilidade ante o pobre, o sem recursos, o desamparado” (CORTINA, 2020, p. 26).

Assim, a expressão “aporofobia” deu visibilidade a esse mal tão antigo quanto contemporâneo, tirando do anonimato essa realidade incontestável e dolorosa, mas que não contava com o devido reconhecimento, nem com a necessária mobilização para viabilizar sua superação. 

Nesse sentido, almeja-se que a sociedade como um todo, a partir da tomada de consciência sobre o problema relativo à aporofobia, visualize uma real mensuração do desafio e estabeleça o necessário comprometimento na busca e na construção de soluções para reduzir a desigualdade e proporcionar a dignidade humana de maneira concreta para todos indistintamente, pois somente essa compreensão completa do pano de fundo é capaz de combater o discurso de ódio contra os pobres que cresce a cada dia. 

Ademais, revela-se imprescindível deixar de minimizar discursos violentos comumente justificados na base do argumento da liberdade de expressão, característica dos Estados democráticos, que vem sendo considerada como um direito quase absoluto, desconsiderando o fato de que:

[…] também é verdade que a liberdade de expressão tem limites quando lesa bens juridicamente protegidos, e os discursos de ódio podem causar dano a esses bens. Nesse caso, tornam-se crimes que devem ser conhecidos e penalizados, não apenas porque o Direito tem uma função punitiva e restaurativa, mas, sobretudo, porque exerce também uma função comunicativa. Indica o que uma sociedade não aceita porque não está de acordo com seus valores. (CORTINA, 2020, p. 51-53)

Sob outro enfoque, é imperioso desatrelar a ideia que vincula a pobreza como causa do crime. Essa configura-se como uma suposição injustificada, que coloca todos os desfavorecidos injustamente sob suspeita geral. Deveras, é uma inverdade pressupor que todos gerenciam sua escassez econômica partindo para a criminalidade, esquecendo toda a classe trabalhadora que luta diariamente pela sua subsistência com resiliência, bem como desprezando o fato de que há muitos delitos graves praticados por pessoas com grande poder aquisitivo.

Dessa forma, quando se menciona aleatoriamente a ideia estatística de que maior parte dos detentos no sistema carcerário pertence a classes menos favorecidas economicamente, imprescindível considerar vários outros fatores que podem influenciar esse resultado estatístico,  especialmente a excessiva criminalização pelo Direito Penal:

[…] Na contemporaneidade latino-americana, marcada pela violência radical das agências de punitividade que redunda no hiperencarceramento da juventude urbana pobre, a crítica criminológica é, cada vez mais, necessária. Todavia a violência ultrapassa as agências formais do sistema penal, representando importante fenômeno cultural a ser investigado. A cultura do punitivismo, do encarceramento, da violência institucional; a proliferação das imagens, dos símbolos e as representações das violências; a circulação, o consumo e o impacto destas experiências na vida cotidiana das pessoas, projetam novos campos a explorar pela crítica realista na cultura marginal. (CARVALHO, 2015, p. 101)

Nesse sentido, necessário compreender de que maneira a grande desigualdade alimenta uma cultura do medo, a qual, por sua vez, leva ao aumento da vigilância da polícia sobre os mais pobres, o que culmina também numa maior repressão e punição sobre eles. 

Ademais, deve-se considerar, ainda, que os menos favorecidos economicamente têm uma dificuldade muito maior para defender-se das acusações e buscar uma solução processual alternativa (NEUBACHER & BÖGELEIN, 2020, p. 55-56). Obviamente, todos esses fatores contribuem para um maior encarceramento da população mais pobre e vulnerável.

Porém, infelizmente, ao invés de assumir uma postura responsável, o que se vê por parte do Estado é a valorização da mencionada cultura do medo, que afeta não só hábitos individuais, relativos à mudança de comportamentos para prevenir a vitimização; mas também repercute socialmente, reduzindo a interação e provocando o abandono dos espaços públicos, além de criar uma demanda pela crescente presença e aplicação do Direito Penal, relevando o papel do Estado como causa dessa problemática e justificando os excessos cometidos pela polícia como “custos” inevitáveis para manter a “sensação” de segurança dos grupos dominantes (BECHARA & FUZIGER, 2020, p. 98-99).

3 Justiça: o papel do Direito e do Estado na ressignificação dos valores 

É notório que a superação da aporofobia exige que o ser humano não só se afaste de seu egoísmo individual, mas, outrossim, assuma uma postura ética de amor incondicional pela humanidade, de compassividade com as dores dos mais vulneráveis, de empatia genuína, que enseje verdadeiramente o reconhecimento dos direitos humanos como máxima universal, a fim de garantir a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, como preconizado nos objetivos fundamentais expressos no artigo 3º da Constituição Federal (BRASIL, 1988): 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Todavia, na sociedade hodierna, evidentemente focada no consumo e na força do capital, é fato que o pobre não goza de reconhecimento social. Assim, denota-se necessário percorrer um caminho que perpasse pela educação para  construir essa consciência ética com ideais igualitários. Para tanto, deve-se compreender que:

[…] o cultivo dessa ética é uma responsabilidade da sociedade em seu conjunto que deve ser transmitida através da educação formal e informal, através das escolas, famílias, meios de comunicação, exemplo de figuras relevantes e configuração das organizações e instituições. (CORTINA, 2020, p. 59)

Em suma, denota-se que existe não só uma responsabilidade individual, mas também existe um aspecto mais amplo, que exige o fortalecimento das instituições econômicas, políticas e sociais, com foco em capacitá-las para promover programas para garantir a dignidade humana para todos, por meio de uma consciência moral cooperativa e solidária.

Entretanto, ao contrário disso, divulga-se que há um bando de “vagabundos”, que não gostam de estudar, nem trabalhar, e que gostam mesmo é de “roubar”. Nesse sentido, 

[…] cria-se a falsa realidade de que as pessoas deixam de prosperar por motivos pessoais, “vende-se” a falsa ideia de que não melhoram suas vidas por falta de empenho, ou como dizem, falta de mérito pessoal, colocando a culpa da miséria no próprio miserável […]. A meritocracia, em uma sociedade liberal com bases em populações historicamente marginalizadas, faz com que não exista na verdade real competição para ascensão social, permanecendo as sociedades marginalizadas competindo apenas entre si mesmas, pelo melhor barraco, por duas refeições ao dia, por concluir o ensino fundamental, não existindo realmente e em escalas sociais a quebra do ciclo de miséria e marginalização. (GONÇALEZ, 2020)

Essa concepção fomentada nas famílias, nos clubes, nas escolas, nas mídias, torna perpétuo esse ciclo de miséria e marginalização, o qual corrobora para ampliar as desigualdades e fomenta o discurso de ódio pela ojeriza aos mais pobres. 

Contribuindo para a manutenção desse ciclo, observa-se que o Estado não constitui parte presente nas comunidades marginalizadas, não proporciona nem segurança, deixando a população à mercê de forças criminosas; muito menos garante boas condições de saúde, educação e bem-estar. Assim, em razão da inexistência de desenvolvimento social, não se concretiza uma real inclusão dos mais pobres na sociedade, o que limita a liberdade dessas populações, as quais não têm acesso às mesmas oportunidades e, portanto, não detêm um poder real de escolha. 

Contudo, além da total ineficiência no cumprimento do seu papel na promoção do desenvolvimento social igualitário, o Estado também peca ao utilizar o Direito Penal como instrumento de ampliação da segregação e marginalização:

[…] nesse contexto, a criminologia crítica nos leva a questionar não o que levou esses indivíduos a cometerem delito, mas por que a pobreza é criminalizada, por que os presídios se encontram saturados por uma classe e raça específica. Temos, portanto, um Estado Penal punitivista e aporofóbico, em sua essência, contrariando toda a gama de princípios que erigiram o Estado Social e Democrático de Direito. (BENTES, TORRE & AMORIM, 2021, p. 51)

Assim, o Estado se torna o principal abusador e violador de direitos humanos, que por meio do recrudescimento do Direito Penal reforça a associação histórica entre pobreza e periculosidade, em que a classe trabalhadora passa a ser considerada uma suposta ameaça à ordem social, com base em teorias eugênicas e comportamentos racistas de origem escravocrata. 

Se observado por esse prisma, o Direito Penal torna-se meramente um instrumento de controle social, repressivo e punitivista, cuja aplicação da pena se afasta da sua função social, abandonando o ideal de reabilitação e assumindo um evidente papel de segregação, que revela não só a desigualdade existente, mas também o papel do Direito Penal na produção e manutenção dessa desigualdade (BECHARA & FUZIGER, 2020, p. 103). Com isso, conclui-se pela tendência brasileira à construção de um Direito Penal máximo e não de intervenção mínima, como preconizado pela doutrina:

[…] o princípio constitucional da intervenção mínima, informado pela racionalidade dessa política criminal, no marco do Estado Democrático de Direito, substancializa o princípio da legalidade penal para, intradogmaticamente, impor ao legislador uma rígida predeterminação acerca do processo de qualificação do delito, somente autorizando-o a criminalizar condutas a partir das hipóteses de ofensas mais graves aos bens jurídicos com status constitucional (os mais importantes) e, ainda assim, quando outras respostas (v.g., civil, administrativa, mediação etc.) não forem satisfatórias para a solução do conflito (adequação e subsidiariedade). (LIMA, 2012, p. 134-135)

Como consequência, resta evidente a existência de um “modelo penal de aporofobia”, sendo urgente o entendimento de todos os atores sociais e operadores do Direito no sentido de que “o sistema penal tem que deixar de atacar os pobres por serem pobres” (SENA, 2022):

[…] em síntese, o pernicioso fenômeno do rechaço aos pobres tem nome e uma identidade bastante conhecida em nosso país. Para além do mero nominalismo, é fundamental que uma sinergia crítica das ciências criminais com a processualística permita detectar e denunciar de que forma o processo penal brasileiro serve como instrumento privilegiado na aporofobia, na materialização de um Estado que não provê, mas que persegue. (FUZIGER, 2019, p. 12)

Cumpre observar que a criminalização da pobreza não está presente apenas na seletividade penal e no encarceramento em massa da população mais pobre, mas também há o aspecto do abrandamento da pena dos delitos praticados por aqueles que detém maior poder aquisitivo, especialmente no que tange aos crimes de colarinho branco. 

Nessa perspectiva, com o pretexto da busca de segurança, o Direito Penal passa a exercer um papel de polarização, servindo à fomentação do critério de adversariedade entre as  classes, fator que enfraquece os laços de solidariedade entre elas, criando um estado de “exceção” permanente em razão do perigo iminente que exige o controle constante:

[…] Nesse contexto de ansiedade e sensação de insegurança, o Estado já não é visto como uma ameaça às liberdades individuais, mas também como um companheiro de armas dos cidadãos frente aos perigos e incertezas da vida social. A principal consequência de discutir sobre política criminal no contexto de uma situação social de medo generalizado e de pânico moral é que se torna extraordinariamente difícil e custoso discrepar. As decisões judiciais mencionam o caso como uma emergência, como um ponto fora da curva, a merecer uma resposta excepcional, abandonando princípios, normas e institutos penais fundamentais. Em suma, em um ambiente pós-moderno de crescente polarização social, o Direito Penal termina convertendo-se politicamente em um violento instrumento de guerra, também polarizado, que debilita a solidariedade e fortalece os vínculos de subordinação e os conflitos. Estabelece-se assim um estado de exceção permanente, que se converteu no paradigma dominante na política criminal e inclusive na dogmática penal, recuperando um modelo estrito e sempre expansivo de vigilância baseada na periculosidade. (BECHARA & FUZIGER, 2020, p. 99-100, tradução livre)

Nessa conjuntura, denota-se que nem o Direito, nem o Estado, exercem seus papéis para ressignificação dos valores no combate à aporofobia. E, nessa total inversão de valores, opta-se pela propositura de um projeto de lei para criminalizar a aporofobia, negligenciando, assim, o papel do Estado e da sociedade no combate a todas as causas desse problema.

4 Projeto de Lei nº 3.135/2020: legitimidade e Direito Penal simbólico

Consoante mencionado no resumo deste trabalho, é importante destacar que tramita na Câmara dos Deputados, aguardando análise da Comissão de Constituição e Justiça, o Projeto de Lei nº 3.135/2020, proposto pelo deputado federal Fábio Trad, cuja ementa “criminaliza atos violentos praticados contra pessoa em decorrência de sentimento de ódio por sua condição de pobreza, assim denominados como aporofobia” (BRASIL, 2020).

A proposta adota a já mencionada definição de aporofobia de Adela Cortina, relativa ao sentimento de ódio pela condição de pobreza, e inclui essa circunstância como agravante de alguns crimes previstos no Código Penal, quais sejam: o artigo 121 – homicídio, o artigo 129 – lesão corporal e o artigo 140 – injúria, nos seguintes termos:

Art. 1º. Esta lei tem por fim criminalizar atos praticados contra pessoa em decorrência da sua condição de pobreza, assim denominados como aporofobia.

Art. 2º. Os artigos 121, 129, 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 121…………………………………………………………………………

§ 2º ………………………………………………………………………………..

V-A – em decorrência de sentimento de ódio pela condição de pobreza da vítima.

………………………………………………………………………………………” (NR)

“Art. 129………………………………………………………………………….

§ 13 Se a lesão for praticada em decorrência do sentimento de ódio pela condição de pobreza da vítima, a pena é aumentada de um terço.” (NR)

“Art. 140………………………………………………………………………….

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência ou pela sua condição de pobreza:

……………………………………………………………………………………” (NR)

Art. 3°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

A justificativa do projeto ressalta que “a aporofobia é uma patologia social que existe em todo o mundo e o primeiro que se deve fazer é reconhecê-la, saber como ela acontece e trabalhar para desativá-la” (NOBRE, 2021). 

Nesse sentido, apesar do Projeto de Lei tratar do âmbito penal, denota-se o reconhecimento do próprio autor da proposta no sentido de que o aspecto principal é a compreensão do processo que enseja a aporofobia para viabilizar a resolução dessa problemática.

Para tanto, imprescindível compreender a dinâmica da sociedade, visualizando que:

[…] existe uma consciência moral social, uma ética cívica que dá sentido às instituições políticas, econômicas ou acadêmicas e é universalista, enquanto os juízos e as atuações pessoais são egoístas ou comunitaristas e pretendem favorecer os indivíduos ou os grupos. Por isso, a ética escrita e declarada, a ética pública que se transmite através da educação regulada nos programas escolares e universitários e que pretende orientar o juízo e as decisões nos códigos, comitês e comissões de bioética, de empresa, das administrações públicas, das universidades ou dos partidos políticos, proclame os direitos humanos, os valores do Iluminismo e, cada vez mais, o cuidado com a natureza. […] é preciso averiguar por que existe esse abismo entre as declarações e realizações, o que é o que nos ocorre que queremos um mundo e construímos outro. Por que se fala constantemente da necessidade de construir democracias inclusivas, porém continua existindo um grande número de excluídos? (CORTINA, 2020, p. 71-73)

Demonstrando esse aspecto contraditório, relativo à tendência do ser humano rejeitar tudo aquilo que o perturba, o autor do Projeto de Lei salienta em sua justificativa o exemplo da cidade de São Paulo que “registrou o maior número de notificações de violência motivada pela situação de rua da vítima em todos os anos analisados” com destaque para o caso em que:

[…] Nas redes sociais, moradores promoveram diversos ataques aos albergados e também ao padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua. O pároco da região tem conhecida ação com desabrigados na região da Mooca e do Belém, o que gera o ódio de parte dos moradores da região. Lancellotti já foi agredido por guardas e recebeu ameaças de morte, com a CIDH cobrando sua proteção por parte do estado brasileiro. (BRASIL, 2020)

Esse exemplo deixa claro como os mais abastados encaram não só a situação da pobreza, mas inclusive como rejeitam eventuais ações para ajudar os mais vulneráveis. 

Nessa perspectiva, muito relevante a observação do deputado autor do projeto no sentido de que toda pessoa pode fazer escolhas de como agir diante dessa perturbação concernente à situação cruel a que os mais desfavorecidos estão expostos, pois é não é necessário rejeitar  tornando-se indiferente ou repugnando os mais pobres com hostilidade. Dentre outras possibilidades, o sentimento de rejeição ao flagelo da pobreza pode ser transformado numa mudança de postura, numa atuação positiva para ajudar os mais vulneráveis e criar alternativas para que eles possam superar essa situação de adversidade. 

Entretanto, diante do cenário hodierno de flagrante violência contra os mais pobres, o parlamentar defende “a punição da prática com o argumento de que ela só tem aumentado no Brasil e deve crescer ainda mais em razão da pandemia de Covid-19, que tem lançado muitas pessoas na pobreza” (NOBRE, 2021).

É imprescindível reconhecer o valor da iniciativa legislativa, observando a linha interpretativa da doutrina e jurisprudência que costuma legitimar a validação do agravamento da pena em caso de vítimas mais vulneráveis, as quais não conseguem defesa. 

Além disso, o projeto reforça a mensagem sobre a censura do comportamento aporofóbico, demonstrando o reconhecimento legal de seu desvalor, o que é extremamente imperioso na medida em que amplia a visibilidade desse mal tão antigo e, ao mesmo tempo, tão contemporâneo.

Contudo, necessário compreender que essa criminalização não significa a solução da questão, configurando-se mais uma atitude simbólica do que efetiva. 

Nesse sentido, convém, outrossim, lembrar que, muitas vezes, algumas legislações penais celebradas como emblemáticas acabam sem qualquer instrumentalidade e ineficazes na prática, levando a questionar se essa função comunicativa do Direito Penal não tem um caráter duvidoso (FUZIGER, 2022, p. 87), vez que, por premissa, o “Direito Penal deve ser reservado como ultima ratio e que convém explorar outras vias repressoras de menor intensidade, mas que podem ter maior eficácia, como a indenização civil ou as sanções administrativas” (CORTINA, 2020, p. 54).

5 Considerações finais 

Diante do contexto apresentado, não há como refutar que a questão da aporofobia configura-se como uma problemática demasiadamente complexa e multifatorial, o qual envolve grandes desafios, não somente no âmbito do Poder Judiciário, mas precipuamente no que tange às políticas públicas de responsabilidade do Poder Executivo, bem como às iniciativas concernentes ao Poder Legislativo, de maneira a garantir que todo o aparato estatal esteja mobilizado no mesmo desiderato, qual seja a busca de soluções ativas para equacionar as desigualdades ensejadoras da aporofobia.

Dessa forma, é essencial reconhecer a profundidade do problema com o escopo de buscar a compreensão de suas causas e consequências, a fim de redesenhar e remodelar o papel do Estado por meio de um novo arcabouço legislativo, executivo e judiciário (BECHARA & FUZIGER, 2020, p. 109), que efetivamente proteja os mais vulneráveis dos constantes ataques sofridos em razão de sua condição e, assim, especialmente ofereça ferramentas para que essas pessoas tenham oportunidade de sair da pobreza e exercer sua liberdade de forma efetiva.

Para tanto, é preciso reconhecer que a solução não pode se restringir isoladamente à propositura de projeto de lei criminalizando a aporofobia, pois, na verdade, a criminalização é somente mais uma consequência da ineficiência do Estado, que constantemente se socorre do Direito Penal por não dar conta de cumprir suas atribuições de maneira satisfatória.

Sem dúvida, a lei penal tem por vezes um caráter simbólico e traz visibilidade ao problema. Contudo, no âmbito de Direito Penal, em termos de função social, o mais importante é buscar a construção de uma política criminal antiaporofóbica, implementando ferramentas que viabilizem uma aplicação mais justa do sistema aos que não tiveram acesso às oportunidades de bem-estar social, de maneira a mitigar os efeitos da atual política de criminalização da pobreza (SÁNCHEZ, 2022, p. 577), o que poderia envolver acordos de não persecução penal, estabelecimento de circunstâncias atenuantes ou redução de penas em razão do reconhecimento da aplicação da teoria da corresponsabilidade do Estado, como ferramentas para compensar a política social e criminal de exclusão, admitindo a parcela de culpa que a sociedade e o Estado carregam em relação à conduta criminosa do indivíduo, na medida em que não garantem os direitos sociais necessários para promoção da dignidade humana (FUZIGER, 2022, p. 91-92).

Nesse sentido, imprescindível reforçar que também não basta que o Estado exerça sua função por meio do Direito Penal para comunicar o desvalor e punir crimes de ódio contra os pobres. 

Trata-se justamente ao contrário, pois é indispensável ir muito além, e recalibrar essa balança, proporcionando um contexto em que o Estado tenha maior intervenção por meios de políticas sociais e menor intervenção por meio do Direito Penal, vez que apenas uma mudança de política criminal não é capaz de resolver a questão da desigualdade que se reflete na base do problema da aporofobia. 

Para isso denota-se imprescindível a aplicação de políticas públicas extrapenais, que envolvam as instituições públicas, privadas e a sociedade como um todo, para agir nas causas multifatoriais de exclusão e desigualdade, de maneira a garantir não só um comportamento passivo de respeito de todos como seres humanos, detentores do direito à dignidade de maneira igual; mas abrangendo a necessidade de um comportamento ativo para empoderamento de todos os grupos vulneráveis, com ações que efetivamente repercutam na redução da desigualdade social, materializando uma real igualdade de oportunidades para todos.

Vislumbra-se que não é suficiente apenas o Estado exercer suas funções na promoção de políticas públicas, a sociedade como um todo e cada um individualmente tem que assumir seu papel para superação da aporofobia e para construção da igualdade (CORTINA, 2020, p. 47). 

Desta maneira, conclui-se que, certamente, esse caminho perpassa pela educação, a qual precisa propiciar uma compassividade genuína, em que as pessoas não sejam somente capazes de olhar o mundo sob a perspectiva dos mais pobres que sofrem, mas principalmente se comprometam em exercer efetivamente uma postura ativa para reverter esse sofrimento e exclusão (CORTINA, 2020, p. 188).

Em suma, é patente que não se pode mergulhar num idealismo utópico, mas não há como fugir à reflexão relativa à cidadania ativa, indispensável para superação dos preconceitos.

É certo que essa mudança de perspectiva exige um novo olhar, um novo sentir para alcançar uma nova ação e reação. 

Nesse desiderato, é imperioso concluir que somente a educação é capaz de reverter os antecedentes histórico-culturais da nossa sociedade, recuperando de maneira equilibrada o ideal de igualdade que visa concretizar a dignidade humana para todos indistintamente (SOARES, 2018, p. 13).

Sobre a autora

Simone Savazzoni é professora de nosso Curso Online de Prática Penal e Processual Guilherme Nucci.

NOTAS

1  Consoante previsto no artigo 20 do Decreto nº 10.852/2021, regulamentador do programa “Auxílio Brasil”, vigente no momento no país, a linha da extrema pobreza caracteriza-se pela renda familiar mensal per capita  no valor de até R$ 105,00 (cento e cinco reais); enquanto a linha da pobreza engloba a renda familiar mensal per capita no valor entre R$ 105,01 (cento e cinco reais e um centavo) e R$ 210,00 (duzentos e dez reais). Releva destacar que esse valor não acompanha o previsto pelo Banco Mundial, conforme indicado na nota subsequente.

2  A quantia correspondente a menos de US$ 2,15 por pessoa por dia refere-se ao valor representativo da nova linha estabelecida pelo Banco Mundial para medir a pobreza internacionalmente. Esse valor era de US$ 1,90 por pessoa por dia e foi reajustado em 2022 para refletir de maneira paritária o poder de compra de 2017 (WORLD BANK GROUP, out. 2022).

3  A Oxfam é uma organização civil independente e sem fins lucrativos, criada em 2014, que faz parte de uma rede global com “20 membros que atuam em 90 países pelo mundo, por meio de campanhas, programas e ajuda humanitária”, cujo escopo é “contribuir com a construção de um país mais justo e menos desigual” (OXFAM, s.d.).

4  Em 2022, esse valor foi reajustado pelo Banco Mundial para US$ 2,15 por pessoa por dia, consoante já mencionado.

5  “Para contextualizar a explicação das bases do conceito de corresponsabilidade, é necessário conceituar a referida ferramenta de política criminal. Assim, a divisão da responsabilidade pela prática de crimes em circunstâncias específicas entre o autor do crime e o Estado é aqui chamada de corresponsabilidade jurídico-penal, devido à falha do Estado em oferecer direitos sociais necessários à dignidade das pessoas. Em virtude da corresponsabilidade, há diminuição da reprovação do agente (compartilhada com o Estado) que culmina na redução da pena aplicada ao particular” (FUZIGER, 2022, p. 91, tradução livre).

Referências

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CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: contracorrente, 2020.

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