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A Prática de Upskirting é Crime no Brasil?
Joaquim Leitão Júnior
15/02/2019
Em que pese não termos, em nosso vernáculo, algo para exprimir a tradução de upskirting, trata-se de uma prática (ou fetiche) de fotografar e registrar imagens, em locais públicos ou privados, por debaixo da saia, vestido ou pelas entranhas de peças de roupa de uma pessoa sem o seu consentimento.
Geralmente, os adeptos dessa prática abominável e ultrajante ficam monitorando suas vítimas (alvos) até o momento de distração para captar e registrar essas imagens, inclusive com exposição do rosto da vítima e do local da prática do upskirting.
Após a captação ou o registro dessas fotos, com a nítida violação da imagem e da dignidade da pessoa humana, é comum que sejam disponibilizadas gratuitamente ou comercializadas na internet tais imagens.
Sem sombra de dúvida, essa prática de upskirting causa angústia, dor, humilhação, exposição indevida da intimidade da vítima, sofrimento emocional, depressão e até mesmo suicídio. Portanto, em nossa concepção, a prática de upskirting deve ser abrangida pela violação de intimidade (art. 7.º, inciso II, da Lei Maria da Penha, por força do advento da Lei n.º 13.772/2018, que acrescentou essa novel disposição).
Desse modo, pensamos que, após a vigência da Lei n.º 13.772/2018, quem realizar a prática de upskirting estará sujeito às penas do art. 216-B do CP.
No entanto, antes mesmo do advento da Lei n.º 13.772/2018, a Lei Maria da Penha já previa a violência sexual (art. 7.º, inciso III, da aludida lei), violência entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (art. 7.º, inciso III, da mencionada lei). O problema é que, apesar dos esforços hercúleos da doutrina em procurar conferir um injusto penal dentro da nossa legislação[1], em regra, não havia um tipo penal específico para a situação, diante da lacuna do ordenamento jurídico.
Retomando a discussão, a expressão “violação de sua intimidade” trazida pelo art. 7.º, inciso II, da Lei Maria da Penha, por força do advento da Lei n.º 13.772/2018, que acrescentou essa novel disposição, provocará grandes embates por ser ampla demais.
Afinal, o que devemos entender por “violação de sua intimidade” da vítima? Qual o seu alcance?
Essa tutela abrangeria apenas e tão somente a violação da intimidade da mulher vítima no âmbito doméstico no “aspecto sexual”, ou também a violação da sua intimidade no “seio familiar”, por exemplo, como exposição de brigas de família, humilhações, vexames etc. sem cunho sexual, mas que de certa forma viesse implicar a violação da intimidade?
Em resposta a essas inquietações, seguindo a linha de interpretação (e exegese) sempre com observação da mens legis, pensamos que o legislador ordinário, por meio da alteração legislativa em comento, quis ampliar o âmbito de proteção da mulher, vítima de violência de gênero, mas apenas no campo da intimidade sexual. Tanto é verdade que, na parte da lei incriminadora, trouxe também um dispositivo legal sob a rubrica “registro de imagem não autorizada de intimidade sexual” (o que reforça nosso ponto de vista do viés apenas de a violação de intimidade estar relacionada com a intimidade sexual). Esse referido dispositivo veio para suprir uma lacuna no ordenamento jurídico penal, em que não criminalizava o registro não autorizado da intimidade sexual de dimensão sexual, lacuna apontada há tempos pela doutrina e agora suprida – como será abordado adiante.
Assim, a interpretação mais adequada e em conexão com a mens legis a ser dada, em nossa singela opinião, é aquela que prestigie a maior amplitude e alcance possível dessa proteção à intimidade sexual propriamente dita, para se evitar a proteção deficiente diante do bem jurídico tutelado – embora não descartemos o surgimento de opiniões em sentido contrário, sob o argumento de que o Direito Penal como instrumento para tutelar a mulher, vítima de violência de gênero, deve ser dada à interpretação mais abrangente possível para outras situações que causem de certa forma violação da sua intimidade [saindo do enfoque propriamente sexual] (por exemplo, exposição de brigas de família, humilhações, vexames etc. sem cunho sexual, mas que de certa forma implique a violação da intimidade), não devendo o intérprete cingir a letra fria da lei. Mais um argumento para essa outra possível corrente é que a violação sexual[2] já estaria prevista no art. 7.º, inciso III (pelas expressões: “qualquer conduta”; “qualquer modo” e ou que “limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”), da Lei Maria da Penha, logo, com essa inovação legislativa não faria sentido o legislador trazer palavras inúteis no texto da lei, assim o novo conceito da “violação da intimidade” (art. 7.º, inciso II, da Lei Maria da Penha) teria maior amplitude e não se limitaria à violação de intimidade de cunho sexual, uma vez que já existiria a violência sexual expressamente prevista, querendo o legislador, com isso, dar uma interpretação mais elástica à Lei Maria da Penha, no tocante à expressão “violação da intimidade”.
Sob essa perspectiva, o art. 7.º, inciso III (pelas expressões: “qualquer conduta”; “qualquer modo” e/ou que “limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”), da Lei Maria da Penha poderia alcançar atos de conotações sexuais de violência ao gênero feminino, mas fato é que agora temos um novo inciso que não deixa mais margem para dúvidas.
De qualquer forma, caberá à doutrina e à jurisprudência formar o entendimento sobre o tema.
De outro lado, avançando nas análises, caso estejamos diante das condutas de oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática –, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia pensamos ser plenamente possível, a depender do contexto, que incida o art. 218-C do CP.
Confronto entre o art. 216-B (inclusive a prática do upskirting) e o art. 218-C, ambos do CP: os núcleos do art. 216-B do CP estão relacionados a registro, produção do vídeo, fotografia etc. Por outro lado, os núcleos do art. 218-C do CP estão associados à divulgação do vídeo, fotografia etc. de cena de sexo, nudez ou pornografia, também sem o consentimento da(s) vítima(s). Veja o quadro a seguir para melhor ilustração:
Art. 216-B, CP | Art. 218-C, CP |
Registro não autorizado da intimidade sexual Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo. | Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática –, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. Aumento de pena § 1.º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. Exclusão de ilicitude § 2.º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos. |