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A droga da Lei de Drogas
Guilherme de Souza Nucci
11/11/2016
Completando 10 anos de existência, a Lei 11.343/2006 não oferece nenhum motivo para comemoração, pois ela, se vantagem trouxe, foi somente para substituir outras leis ainda mais decadentes e confusas (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/2002). Enquanto muitos juristas debatem os 10 anos da Lei Maria da Penha (Lei 10.340/2006), verificando os seus pontos fracos, com o objetivo de aprimorá-la, as discussões em torno da Lei de Drogas são raras, quase inexistentes. De outro lado, o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de 50% do volume de trabalho. Desse imenso universo de réus, há os que estão preventivamente presos, o que propicia o aumento descontrolado da população carcerária — e pior, formada por pessoas ainda acusadas, sem condenação.
É preciso operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegos da legislação antidrogas. Não se pode mais aguardar que a situação política do Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal.
O primeiro fator a ser levado em conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual tangencia, deixando o critério diversificador em mãos dos operadores do direito. Preceitua o artigo 28, parágrafo 2o , da Lei 11.343/2006 o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas, geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.
Tarda, há muito, a mão do legislador para corrigir esse distúrbio interpretativo, que provoca, sim, consequências drásticas. Há que se tomar duas medidas urgentes:
a) inverter o elemento subjetivo do tipo específico, retirando-o do artigo 28 para inserir outro no art. 33. Em outros termos, o crime previsto no artigo 33 deve conter uma finalidade especial: para o fim de comercializar, negociar, transmitir a terceiros, mesmo sem fim lucrativo imediato. Afinal, traficante não vive de caridade; as drogas são dadas a certas pessoas, num primeiro instante, para viciá-las; depois, tudo é cobrado. Traficante de drogas é pessoa abastada economicamente, podendo adquirir imóveis, móveis e, principalmente, armas pesadas. Do outro lado, está o consumidor, que deveria simplesmente ser assim considerado, quando o Estado-acusação não conseguir demonstrar a finalidade do transporte de droga para transferência a terceiros. Nesse prisma, quem carrega consigo 2 gramas é, em primeiro plano, consumidor; somente se essa presunção se desfizer (presunção relativa), pode-se acusá-lo de tráfico. Há quem diga não existir essa inversão do ônus da prova. Sugiro a quem assim pense uma consulta na jurisprudência nacional – o que já fizemos – encontrando vários julgados com expressa menção à referida inversão, pois o elemento subjetivo específico concentra-se no artigo 28 – e não no artigo 33 – demonstrado na expressão para consumo pessoal;
b) por mais que, num primeiro momento, pareça uma reforma para engessar a atividade judicial, antes assim do que vislumbrar as imensas diferenças de critérios capazes de apontar o tráfico de drogas, para uns juízes e consumo para outros. É fundamental que o Legislativo estabeleça uma quantidade para o porte de cada espécie de drogas, a fim de que se possa presumir (presunção relativa) o caráter de consumidor de quem a carrega consigo. Outros países assim fizeram, variando de 20g de maconha até 200g da mesma droga. Nada impede que o portador de 20g seja um traficante, travestido de usuário, motivo pelo qual, desmascarado pelas provas efetivamente produzidas nos autos – e não pelo achismo de qualquer operador do direito – assim será condenado.
Outro ponto essencial é incentivar, cultuar e encerrar com uma conclusão a famosa discussão em torno da legalização do porte de drogas para uso próprio. O debate oficial teve início em julgamento, no Plenário do STF, já existindo três votos pela despenalização e/ou descriminalização do porte de maconha. No entanto, de nossa parte, cremos ser inviável que o próprio Pretório Excelso, por maior boa vontade que possua, estabeleça, sem lei, uma quantidade para ser considerada fato atípico (caso vença a tese da descriminalização ou despenalização total). Essa é uma tarefa do Legislativo, que deve exercitá-la de pronto, em face do caos instalado na interpretação diferenciadora entre o art. 28 e o art. 33. Afinal, o Brasil será um dos países que legalizará a droga (qual?) para consumo pessoal? Respondida essa questão, outras irão surgir para adequar a lei atual à realidade.
Não basta. É fundamental, ainda, estabelecer critérios mais objetivos e rigorosos para a concessão do redutor previsto pelo artigo 33, parágrafo 4o: “Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Observe-se a parte riscada (oficialmente) em virtude do julgamento proferido pelo STF, considerando a referida vedação inconstitucional. Além disso, o Pretório Excelso autorizou a aplicação de qualquer regime para o traficante, embora a maioria fixe, sempre, o fechado. O STF autorizou o uso de penas alternativas, dentro do perfil estabelecido pelo artigo 44 do Código Penal, embora a maioria imponha pena privativa de liberdade. O Supremo Tribunal Federal autorizou a liberdade provisória para traficantes, quando preenchidos os requisitos para tanto, mas a maioria decreta ou mantém a prisão provisória.
Ao menos quanto ao redutor é indispensável a participação legislativa para estabelecer um quantum (critério objetivo, formador de presunção relativa), servindo de limite ou base para a aplicação da causa de diminuição. É fundamental retirar a expressão “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, pois tem dado margem a interpretações elásticas, a ponto de considerar qualquer um como traficante dedicado a atividades criminosas. Afinal, convenhamos, a expressão em si não diz absolutamente nada. Se o sujeito é primário e tem bons antecedentes, como regra, não se dedica à vida criminosa. E não será com a sua primeira condenação por tráfico que dentro desse perfil possa ser considerado. Ademais, se o indivíduo é integrante de organização criminosa, aplica-se o rigor da Lei 12.850/2013 e nem é preciso falar em redutor.
A par de todas essas mazelas, há uma parcela de responsabilidade do Judiciário, no tocante à extensão da prisão provisória, sem que se analise, com o devido rigor, o binômio razoabilidade e proporcionalidade. Um acusado por tráfico de drogas, cuja quantidade seja pequena ou média, não pode jamais ficar sujeito a prisão preventiva de meses, por vezes atingindo mais de ano. Fere a razoabilidade, mormente sendo primário, com bons antecedentes. E temos constatado que tal situação acontece. Por outro lado, todo magistrado deveria checar, também, a proporcionalidade da prisão, fazendo um prognóstico, ou seja, naquele caso concreto, em tese, será viável aplicar o redutor? Se a resposta for afirmativa, significa uma diminuição considerável da pena e a prisão preventiva poderá tornar-se visivelmente desproporcional em relação à futura sanção. Lembremos que será aplicada a detração (art. 42, CP), descontando na pena todo o período de prisão provisória. Não se trata de “juízo de adivinhação”, mas de prudência judicial. Estuda-se, em todos os níveis – da graduação à pós graduação – consistir a prisão provisória a exceção, no sistema legislativo brasileiro, enquanto a liberdade do sujeito inocente, a regra. Por piores que sejam os tempos, focando-se o aumento da criminalidade, não se pode olvidar a base e a estrutura do processo penal almejado como ideal.
Estas linhas representam algumas breves considerações acerca da Lei de Drogas, que já não é atual, encontrando-se em franco desalinho em face da realidade. Há que se aplicar a uma reforma nesse cenário baseada na política criminal eleita pelo Estado Democrático de Direito. Com a palavra, o legislador.
Veja também:
- A decisão do STF acerca do cumprimento da pena após o julgamento de 2º grau de jurisdição e a presunção de inocência
- Bandido bom é bandido morto?
- Prostituição é ato lícito e o Superior Tribunal de Justiça reconheceu isso
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