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Entrevista ao Conjur “Direito Internacional Público tem falhado em garantir paz e estabilidade no mundo”

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VALERIO MAZZUOLI

Valerio Mazzuoli

Valerio Mazzuoli

17/05/2017

Com 26 livros publicados, o advogado e professor de Direito Internacional Valerio Mazzuoli não disfarça o pessimismo com que vê uma das áreas à qual já dedica duas décadas estudo: para ele, o Direito Internacional Público é lindo na teoria e ineficiente na prática.

A avaliação se confirma em um cenário em que líderes voltam-se para as preocupações domésticas de seus públicos e novas tendências de isolacionismo emergem. Crises de refugiados chocam o mundo ao mesmo tempo em que se renova o risco de um confronto nuclear.

“Os países são cínicos e não se preocupam com os vizinhos. Não há preocupação alguma, essa é a verdade. A ONU não dá conta de coibir atos de extrema violência, de auxiliar os milhares de refugiados pelo mundo afora, e suas longas reuniões resolvem sempre pouco ou quase nada”, diz.

Seu ceticismo com o ramo público do Direito Internacional para solucionar grandes questões globais é inversamente proporcional ao entusiasmo com que fala do ramo privado da disciplina: “Tem um potencial enorme em tolerar a diversidade, aceitar as diferenças e unir as pessoas. Basta conhecer mais a fundo o seu sistema e aplicá-lo coerentemente”.

Valério Mazzuoli concluiu recentemente o livo Curso de Direito Internacional Privado (editora Forense, já na 2ª edição), com o qual pretendeu passar a matéria a limpo. Seu Curso de Direito Internacional Público está hoje na 10ª edição.

“Fiz um diálogo com os mestres de ontem e de hoje, aqueles que realmente fizeram o Direito Internacional Privado no Brasil, aqueles a quem devemos a disciplina. Só citei especialistas, e os que estão vivos vão gostar de ver como compreendi e dialoguei com o seu pensamento no texto.”

Das relações familiares aos contratos comerciais, Mazzuoli vê uma profusão de áreas que reclamam uma resposta do Direito Internacional Privado atualmente. “Todos esses assuntos aparecem no dia a dia de um escritório de Direito Internacional e nós, advogados, temos que levá-los aos tribunais para resolver.”

O autor é pioneiro do controle de convencionalidade nos tribunais brasileiros. Segundo essa técnica, os tratados internacionais de direitos humanos são parâmetro de controle da produção e da aplicação das normas de Direito interno, de acordo com a interpretação mais favorável à pessoa.

Foi a partir dessa doutrina que a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastou, em 2016, a aplicação do crime de desacato, por estar na contramão do Pacto de San José da Costa Rica. Pelos mesmos fundamentos, o Supremo Tribunal Federal impediu, em 2008, a prisão de depositário infiel. Mazzuoli foi citado em ambos os julgamentos.

Se a aplicação dos direitos humanos ainda anima e divide opiniões nos poderes Legislativo e Executivo, é no Judiciário que ela tem encontrado melhor tratamento. “Os juízes brasileiros têm, cada vez mais, aplicado bem as normas internacionais, especialmente as de direitos humanos”.

Leia a entrevista:

ConJur — O mundo assiste a uma escalada do isolacionismo, uma tendência que vai na contramão do que se construiu e se pregou no século XX. Isto o surpreende?
Valerio Mazzuoli —
Na verdade, o mundo não está tão isolado assim. As pessoas vão ao exterior, contratam com empresas estrangeiras, negociam produtos, casam-se e têm seus filhos lá fora, domiciliam-se no exterior… Pelo menos no plano do Direito Internacional Privado, esse isolacionismo não existe tanto assim. Agora, se a gente for pensar na conduta de alguns Estados, não todos, é possível, aí sim, notar certo isolamento, como aqueles que pretendem lançar armas nucleares independentemente de qualquer controle ou de qualquer diálogo. Esses países ficam à margem do Direito Internacional e podem causar um caos mundial. Não têm consciência do que estão fazendo e podem gerar verdadeira catástrofe. Mas esse já é um problema do Direito Internacional Público, que tem sido bem menos eficaz do que o Direito Internacional Privado na resolução de situações desse tipo.

ConJur — Reino Unido, EUA e França não são países à margem do Direito Internacional. Mas o Brexit e as promessas de campanha de Trump ainda causam controvérsia no mundo, que respirou aliviado com a derrota de Marine Le Pen. O que explica estes movimentos?
Valerio Mazzuoli —
Seria uma leviandade dizer que esses países estão “à margem” do Direito Internacional. Por Deus! Jamais! Percebe como é a visão externa relativamente ao Direito Internacional? É que quando o país não aceita determinada regra ou tratado, falam que ele está à margem do Direito. Negativo. Ele está exercendo o seu poder, que o próprio Direito Internacional lhe dá, de não aceitar as “regras do jogo”. Os Estados, pelo Direito Internacional, são absolutamente livres para não entrar no jogo e, se entraram, para sair do jogo quando quiserem. O Brexit é exemplo disso: eu consulto o meu povo e posso sair do jogo se eu quiser, simples assim. Ninguém contestou esse direito do Reino Unido de decidir internamente, por referendo, se fica ou sai da União Europeia. Agora, se isso causa ou gera problemas para outros países, é outra história. Aí será o jogo político que irá resolver. O Direito Internacional autoriza e os Estados podem fazer.

ConJur — Há também a crise de refugiados.
Valério Mazzuoli —
No que tange à crise dos refugiados, também não podemos dizer que a Europa tem violado o Direito Internacional. Temos visto tentativas voluntárias de recepção dos refugiados em toda a Europa, mas as catástrofes continuam acontecendo. Quase 200 mil refugiados entraram por Lampedusa, na Itália, e várias mortes se concretizaram. E os que não morreram desembarcaram com total falta de informação sobre os seus direitos e do que seria o seu futuro dali para frente. Perceba como é realmente é difícil a tarefa de organizar essa situação, e o Direito Internacional não tem ajudado muito. A Alemanha, por exemplo, também recebeu milhares de refugiados, mas tem feito severa triagem para decidir quem fica e quem será deportado, dando a impressão de que não tem um plano bem definido de recepção dessas pessoas. São dificuldades dos dois lados, evidentemente. Mas aqui, como está em jogo a vida dessas pobres pessoas, que fogem normalmente de guerras, como é o caso dos refugiados da Somália, o Direito Internacional deveria estabelecer mais métodos, com menos retórica. Daí se percebe que o intento dos Estados de “fechar” suas portas não tem sido combatido pela ordem internacional. Onde está a ONU neste momento?

ConJur — Neste contexto, o Direito Internacional falhou de alguma forma?
Valério Mazzuoli —
É notório que o Direito Internacional Público tem falhado e muito, especialmente no seu escopo de garantir a paz e a estabilidade das relações internacionais. Ele não tem garras para trazer para si a regulação desses aspectos mais complexos da vida internacional, e estamos sempre a depender do cinismo dos Estados e de seus dirigentes. Os países são cínicos e não se preocupam com os vizinhos. Não há preocupação alguma, essa é a verdade. A ONU não dá conta de coibir atos de extrema violência, e suas longas reuniões resolvem pouco ou quase nada. Veja, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional, que até agora só serviu para julgar chefes de Estado de países pobres africanos. Essa é a situação do Direito Internacional Público. Lindo na teoria, mas ineficiente na prática. Desanimador. Não se pode, porém, dizer o mesmo com o Direito Internacional Privado. Ainda que pouco compreendido e pouco aplicado, ele tem um potencial enorme em tolerar a diversidade e aceitar as diferenças. Basta conhecer mais a fundo o seu sistema e aplicá-lo coerentemente.

ConJur — O que acha da ideia de uma constituição global? É algo viável?
Valério Mazzuoli —
Ideia totalmente equivocada, inexequível, além de ineficiente. Será motivo de mais discórdia ainda. No plano internacional ninguém abre mão de todos os seus interesses. No plano interno já não abrimos, imagine no plano internacional. As diferenças é que têm que ser respeitadas, e essas diferenças não vão se “igualar” por uma Constituição global. A ideia é o contrário: é respeitar as diferenças. Aí sim dá certo. Pode até criar um texto de uma Constituição “global”. Só que nenhum, ou quase nenhum Estado assinaria e ratificaria. Mas claro que, repito, no plano teórico poderia até ser aceito. Seria a paz perpétua, de Kant. Mas não acredito em nada disso. Acredito em fomentarmos a cultura, do respeito e da tolerância, isso sim. Verdade que depois de tantos anos trabalhando com o Direito Internacional Público eu acho que me tornei um pouco pessimista (risos).

ConJur — Como fazer para que países cumpram decisões de tribunais internacionais?
Valério Mazzuoli —
Primeiro temos que entender que não há sanções propriamente jurídicas, com peso, para Estados que não respeitam as decisões de tribunais internacionais. Há sanções mediatas e indiretas, não imediatas, diretas. Há “sanções” que vão desde um puxão de orelha (quando se informa, por exemplo, ao secretário-geral de uma organização internacional que o Estado não cumpriu a decisão e este Secretário publica no Annual Report da organização uma nota sobre este comportamento) até um diálogo diplomático mais profundo. Mas isso, porém, não é sanção jurídica. A verdade é que não há como constranger um Estado a cumprir uma decisão de tribunal internacional, sem contar com enorme dose de boa vontade desse Estado. Há como constranger a pessoa física, o chefe de Estado, que pode ser preso por ordem do Tribunal Penal Internacional, por exemplo. Isso se pegarem ele, lógico. Até nesses casos é muito difícil a efetividade do Direito Internacional. Mesmo os tribunais de direitos humanos, que lidam com temas mais sensíveis, têm dificuldade de supervisionar o cumprimento das decisões, que dependem muito mais da sociedade civil organizada que da vontade do próprio Estado. Se fosse depender da vontade do Estado, pode esquecer…

ConJur — Por que a Corte da Haia consegue ter o prestígio internacional que a CIDH não tem? O que as diferenciam?
Valerio Mazzuoli —
Eu não sei se a Corte Internacional de Justiça tem tanto prestígio assim. Eu acho que ela tem glamour, isso ela tem de sobra. Mas glamour não resolve todos os problemas. Claro que a CIJ tem um papel fundamental no plano internacional em geral, e no Direito Internacional, em especial, mas ela, assim como todos os tribunais internacionais, julga poucas causas por ano, em processos que se alongam há décadas, e não resolve todos os problemas do mundo. As relações entre Estados têm muito mais problemas, numericamente falando, do que se decide na Corte Internacional de Justiça todos os anos. Mas é um tribunal importante e o maior que temos hoje no mundo. Já os tribunais de direitos humanos têm papel relevantíssimo, apesar de também julgarem poucas causas no ano. No nosso entorno regional temos ainda a criticada Comissão Interamericana, que “peneira” muito os assuntos, escolhendo sempre grandes temas, até mesmo pela sua estrutura, que é falha e nem dinheiro tem para os gastos com pessoal. É triste. Só grandes temas vão à Corte Interamericana: temas macro, como de gênero, relativo a anistias, à demarcação de terras indígenas etc. Alguém que sofreu uma violação individual de direitos humanos no Brasil e não logrou êxito em ser reparado na jurisdição interna, muito dificilmente conseguirá chegar à Corte Interamericana, porque vai ter a “peneira” da Comissão. Por isso é que na Europa aboliu-se essa peneira, fechando a Comissão Europeia de Direitos Humanos por meio do Protocolo 11 à Convenção Europeia de Direitos Humanos, em 1998.

ConJur — É isso possível de acontecer com a CIDH?
Valerio Mazzuoli —
No nosso modelo, as coisas não são tão simples assim. É exatamente por esse motivo que o próprio sistema interamericano, sabedor de que não dará conta de responder às demandas apresentadas, exige dos juízes internos que controlem, em primeiro lugar, a convencionalidade das leis. Daí a explicação do por quê ser o controle de convencionalidade uma obrigação primária do Judiciário interno, não do tribunal internacional. Este só atuará em segundo plano, de forma complementar, se a situação não for aqui dentro resolvida. Daí o equívoco gravíssimo de alguns poucos que insistem que o verdadeiro controle de convencionalidade é o internacional. O próprio preâmbulo da Convenção Americana deixa claro que ela só atua de forma coadjuvante e complementar, então não tem como o controle internacional ser o primário se o próprio instrumento internacional diz que não é. Por isso temos que reforçar essa primariedade do controle de convencionalidade interno, dar força aos juízes internos. Isso é o que precisa ser feito.

ConJur — O ex-presidente Lula recorreu à ONU para denunciar perseguição a ele. Qual o potencial desse tipo de ação?
Valerio Mazzuoli —
É praticamente zero. Só se com ele for diferente. Para se reclamar ao Comitê de Direitos Humanos da ONU precisa esgotar os recursos da jurisdição interna. Eu tenho dúvidas se ele fez isso. O artigo 2º do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é claríssimo ao afirmar que apenas indivíduos que “tenham esgotado todos os recursos internos disponíveis podem apresentar uma comunicação escrita ao Comitê para que este a examine”. No caso da petição do ex-presidente ao Comitê, parece certo que não houve esgotamento dos recursos internos. Todos têm direito de ir à ONU para reclamar aquilo que entendem por direito seu, mas há regras técnicas (formais) nos tratados internacionais que devem ser observadas. O prévio esgotamento dos recursos internos é um deles. Assim, se ele quer reclamar contra o juiz Sergio Moro, deveria esgotar os meios de reclamação internos para tanto…  E parece que isso não foi feito. Assim, não vejo como o Comitê dar guarida à reclamação.

ConJur — A Justiça brasileira tem aplicado os tratados internacionais em suas decisões de forma adequada?
Valerio Mazzuoli —
Esse é um ponto que me traz prazer em falar. O relativo aos tribunais internacionais, não. Me traz prazer porque sou um dos que durante anos e anos bateu duro, e ainda bato, na obrigação de juízes e tribunais aplicarem bem os tratados internacionais de que o Brasil é parte. E depois de vários anos tenho visto que temos avançado e que os juízes brasileiros têm, cada vez mais, aplicado bem as normas internacionais, especialmente as de direitos humanos. É óbvio que temos muito que avançar. Mas fica aqui o meu elogio ao Judiciário brasileiro, que têm dia a dia controlado mais a convencionalidade das leis, aplicado os tratados de forma mais coerente e não meramente retórica, só para ficar bonito na decisão. Isso não significa, repito, que não tenhamos que avançar mais. Vários tribunais regionais federais me convidam, e eu vou, para falar para juízes federais sobre técnicas de aplicação de tratados. Isso me deixa muito feliz.

ConJur — Enxerga algum desdém em relação aos tratados de direitos humanos, apesar de se equipararem a Emenda Constitucional?
Valerio Mazzuoli —
Não. Eu acho exatamente o contrário. Pelo menos no Judiciário brasileiro não vejo nenhum desdém. Pode ter desdém por parte de alguns setores, que acham que ratificar tratados de direitos humanos serve para proteger bandido, essas coisas. No Judiciário, tenho visto uma vontade enorme dos juízes brasileiros em aplicar os tratados de direitos humanos. Recebo esse feedback diariamente de vários juízes, amigos e muitos que nem conheço. Todos me dizem da sua vontade de aplicar, cada vez mais e melhor, os tratados de direitos humanos em vigor no Brasil. É uma saída interessante para proteger direitos dessa grande e carente massa popular que aí está. Em outros países, tem sido igual. Não precisamos ir longe. Tenho visto vários países vizinhos, como Argentina, Chile e Uruguai, respeitar esses tratados e aplicá-los corretamente.

ConJur — Com base em sua doutrina, o desacato a autoridade deixou de ser crime por não estar de acordo com tratados de direitos humanos. A lei contra abuso de autoridade pode ter o mesmo fundamento?
Valerio Mazzuoli —
Não tem nada a ver uma coisa com a outra. O desacato viola, sim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e não há dúvidas que é inconvencional, portanto, inválido à luz da ordem internacional de proteção dos direitos humanos. Aí se trata de uma conduta do cidadão, que “desacata” uma autoridade, que age em nome do Estado. E esse cidadão paga imposto ao Estado e tem o direito de se insurgir contra ele, não podendo ser criminalizado por isso. Nada de similar existe com a Lei de Abuso de Autoridade, que é voltada aos agentes públicos, que, como se sabe, devem agir nos limites da ordem jurídica, da Constituição e das leis, não podendo ir além. O abuso de autoridade é coibido em todos os Estados democráticos do mundo.

ConJur — O professor Canotilho diz que, com a globalização, a Economia superou o Direito. Isso quer dizer, segundo ele, que hoje os acordos econômicos valem mais que os direitos fundamentais das constituições. Concorda?
Valerio Mazzuoli —
Ele não está errado. E isso sempre foi assim. As questões econômicas sempre superaram o Direito, desde sempre. Os Estados estão mais preocupados com as relações comerciais, econômicas ou financeiras que mantêm entre si do que em proteger direitos das pessoas. Isso nunca mudou, e talvez nunca mude. Os tratados de direitos humanos vêm justamente para equilibrar mais isso, porém eles ainda dependem de ser ratificados pelos Estados, o que demora a ocorrer. O Direito Internacional, salvo raras exceções, como o TPI, não vale para Estados que não ratificaram os tratados. Ainda há voluntarismo no Direito Internacional, por mais que se pretenda acabar com ele e objetivar cada vez mais as relações internacionais. Mas isso é muito difícil.

ConJur — O senhor concluiu recentemente um livro sobre Direito Internacional Privado. Qual foi seu objetivo?
Valerio Mazzuoli —
Parece ousado o que vou dizer, mas eu pretendi, e acho que consegui, “reescrever” o Direito Internacional Privado no Brasil, ou seja, passar a limpo a matéria, que até então estava, me parece, desorganizada nos compêndios da disciplina no Brasil. Creio que só assim uma obra nova de Direito Internacional Privado pode somar à doutrina brasileira da área. Sempre entendi, e continuo entendendo, mesmo porque sou advogado nessa área, que o que realmente o juiz quer saber quando abre um livro de Direito Internacional Privado não é a história detalhada da vida de Savigny. Talvez isso interesse ao historiador. O que o juiz brasileiro quer saber é qual lei ele aplica quando alguém domiciliado na Estônia, que está de passagem pelo Brasil, recebe aqui um bem móvel em penhor. Ele quer saber se aplica a lei da Estônia, do domicílio do credor pignoratício, ou a lei brasileira, do lugar da transferência do bem móvel. Ele quer saber qual lei ele aplica para regular a guarda ou a visita de uma criança residente com um dos pais no exterior. Ele quer saber como se qualifica o noivado, se é matéria de direito de família ou é tema do direito das obrigações, para poder aplicar a lei competente verificar se pode ou não ter indenização para a quebra da promessa de casamento. Então, eu escrevi um livro que esgota a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para dar respostas concretas, sem titubeios ou floreios históricos aos problemas de Direito Internacional Privado apresentados dia-a-dia perante o Poder Judiciário.

ConJur — Quais as principais áreas de atuação no Direito Internacional Privado hoje?
Valerio Mazzuoli —
São imensas. No Direito Internacional Privado você atua no direito de família, no direito das obrigações, no direito das sucessões, no que se refere aos bens e tantos outros temas. Os contratos internacionais, em especial, têm crescido muitíssimo, assim como as relações de família e a nova configuração da família no Direito Internacional Privado também… Todos esses assuntos aparecem no dia-a-dia de um escritório de Direito Internacional e nós, advogados, temos que levá-los aos tribunais para resolver.

ConJur — Há alguma tese específica em seu livro novo que você vê com potencial para se tornar solução doutrinária e influenciar a jurisprudência?
Valerio Mazzuoli — Creio que a parte chave do livro novo é a que trata da aplicação do direito estrangeiro pelo juiz nacional, tema pouquíssimo versado nas obras de processo civil e que ainda gera muita confusão na cabeça do juiz. No livro eu ajudo o magistrado passo a passo a aplicar corretamente a lei estrangeira indicada pela regra brasileira de Direito Internacional Privado e explico como se interpreta o novo CPC a esse respeito.

ConJur — O que achou da recente decisão do STJ, inédita, de não homologar a sentença arbitral estrangeira?
Valerio Mazzuoli —
Esse caso é relativo à venda de ativos de cana-de-açúcar do usineiro Adriano Ometto à multinacional espanhola Abengoa, e foi julgado em Nova York em 2007. Ao que consta, descobriu-se depois da sentença que o árbitro presidente era sócio de um grande escritório americano, e essas informações ele camuflou, uma vez que o seu escritório recebeu US$ 6 milhões da parte contrária. Lá nos Estados Unidos entenderam que não estava demonstrada a ligação direta entre as somas recebidas e a decisão arbitral. O STJ, por sua vez, entendeu que era desnecessária a comprovação do nexo, pois só o fato de ter havido recebimento de valores pelo escritório daquele que atuava como árbitro já era suficiente para violar a ordem pública brasileira. Para mim, a decisão foi correta, pois se utilizou do corte de efeitos da ordem pública para não homologar a decisão estrangeira prolatada nessas condições. Ou seja, o STJ entendeu inidônea a decisão estrangeira para operar efeitos no Brasil, e entendeu que essa “transposição” da decisão internacional para o plano interno não é automática. Está correto nesse entendimento.

ConJur — Acha que esta decisão enfraquece a opção por cortes arbitrais?
Valerio Mazzuoli —
Eu acho que dá mais força. Isso mostra que há regras para que se homologuem decisões estrangeiras e que o STJ está de olho no que está acontecendo. Isso traz segurança jurídica para as partes. Além do mais, isso foi uma mostra que no Brasil há ordem a operar, e que não pode uma decisão proferida no exterior violar a nossa ordem pública, que representa o principal corte de efeitos a leis ou decisões estrangeiras no nosso Direito Internacional Privado. Ademais, a homologação de decisões estrangeiras não é mero ato protocolar. É ato que leva em conta inúmeros fatores, como, por exemplo a já referida ordem pública. Não se pode homologar decisão estrangeira que autoriza dar chibatadas em pessoas, todos sabem disso. Então, essa decisão do STJ não enfraquece os tribunais arbitrais. Pelo contrato, mostra pra eles que há regras no Brasil para que a decisão seja homologada, o que desperta nos juízos arbitrais maior preocupação em fazer a coisa certa, sempre.

ConJur — Como avalia a recente decisão do Supremo que declarou a perda da nacionalidade de uma brasileira porque ela naturalizou-se norte-americana?
Valerio Mazzuoli —
Não houve extradição de nenhuma cidadã brasileira… Houve extradição de cidadã norte-americana, de alguém que se um dia foi brasileira hoje já não é mais, porque se naturalizou voluntariamente nos EUA. Se ela “era” brasileira, isso pouco importa. As manchetes de jornais diziam que o Supremo extraditou “brasileira nata”. Que bobagem. Ela foi um dia brasileira nata. O STF extraditou uma estrangeira. Corretíssima a decisão. Percebe como a gente tem que ter cuidado com essas informações, não? Juridicamente, houve extradição de uma estrangeira. E é assim que deve ser. Senão, não haveria na Constituição um dispositivo inteiro dizendo que “será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que… adquirir outra nacionalidade”. Era o caso dela.

ConJur — Qual é a grande questão que deve preocupar os operadores de Direito Internacional nos próximos anos?
Valerio Mazzuoli —
Há inúmeras questões. Uma das que reputo principais diz respeito à intimidade das pessoas na internet, os crimes cibernéticos e o consumo internacional. São questões debatidas, mas com poucas soluções. Há também, evidentemente, o terrorismo, difícil de se combater. A verdade é que o Direito Internacional fica de mãos atadas para muitas situações que estão todos os dias acontecendo. E o seu avanço é lento. Quando o Direito Internacional avança e regula certo tema, o tratado regulador já está desatualizado. Depois de 20 anos negociando, quando vai ratificar os métodos e práticas já mudaram e aí se percebe a sua ineficácia. O Direito Internacional Privado tem soluções melhores para os problemas que o Direito Internacional Público. Essa é a verdade.

Fonte: Conjur


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