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Coisa julgada – Locação – Compra e venda de imóvel

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REVISTA FORENSE 145

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11/11/2021

REVISTA FORENSE – VOLUME 145
JANEIRO-FEVEREIRO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

  • Instituto do Açúcar e do Álcool – Fixação de sobrepreço – Inconstitucionalidade – Mílton Campos
  • Coisa julgada – Locação – Compra e venda de imóvel – Antão de Morais
  • Sociedade por ações – Subscrição de ações novas – Pedido, causa ou questão e lide – M. Seabra Fagundes
  • Terras devolutas – Registro paroquial – Fé pública e presunção do registro imobiliário – Pontes de Miranda
  • Banco do Brasil – Inquérito administrativo – Certidão – Ação popular – Carlos Medeiros Silva
  • Cheque sem fundos – Emissão para garantia de dívida – Efeitos gerais – Roberto Lira

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A nacionalidade e a condição dos apátridas – Francisco Campos; José Joaquin Caicedo Castilla; Georges H. Owen; Osvaldo Vial; Mariano Ibérico
  • Expulsão de sócio de sociedade civil e controle jurisdicional – Miguel Reale
  • Do dever de declarar-se falido no prazo legal e suas relações com o requerimento de concordata preventiva – Rui Carneiro Guimarães
  • O Executivo e as leis inconstitucionais – Antônio Carrillo Flores
  • Encargos do Ministério Público no ramo civil – H. da Silva Lima
  • Variações sôbre recursos – L. A. Costa Carvalho
  • Maioria nas eleições presidenciais norte-americanas – Matos Peixoto
  • Sociedades por ações – Substituição de diretores por membros do Conselho Fiscal – Aloísio Lopes Pontes
  • Em defesa do Prof. Rafael Bielsa – Editorial Revista Forense
  • Entidades de direito privado ou de direito público, que recebem ou aplicam contribuições para fiscais – Prestação de contas – Bilac Pinto
  • Sôbre um veto (matéria constitucional) – Alcino Pinto Falcão

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

  • Jurisprudência Civil e Comercial
  • Jurisprudência Criminal
  • Jurisprudência do Trabalho

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Antão de Morais, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Coisa julgada – Locação – Compra e venda de imóvel

– A identidade de pessoa, que concorre para formar a coisa julgada, não é a identidade física, mas a identidade jurídica, isto é, que intervenha nutra e noutra ação na mesma qualidade.

 PARECER

Por escritura de 14 de março de 1946, F. B. se comprometeu a comprar, nesta capital, um prédio residencial. Êste prédio estava alugado a N. T. M. por contrato escrito. Por isso, o promitente-vendedor, ao transmitira F. B. a posse do imóvel, transferiu-lhe também todos os direitos do contrato de locação.

A êsse tempo F. B. morava em casa própria. Mas, como ia vender essa casa, notificou ao inquilino N. T. M. de que necessitava para uso próprio do prédio em que êste residia. A notificação, requerida em 4 de abril de 1946, obedeceu ao prescrito no art. 8°, letra e, do dec.-lei nº 6.739, de 26 de julho de 1944.

Como N.T.M. não atendeu a essa notificação, F.B., em 13 de setembro de 1946, isto é, já no regime do dec.-lei número 9.669, de 29 de agôsto de 1946, propôs contra êle uma ação de despejo, salientando a sua qualidade não apenas de promitente-comprador, senão também de cessionário do contrato de locação. A ação foi, afinal, julgada improcedente, sob fundamento de não ter o autor, quando promoveu a notificação, necessidade do prédio.

Entretanto, duas circunstâncias se verificaram: F. B. recebeu escritura definitiva do prédio e, de seu turno, efetivou a venda do prédio em que residia. Entrou, em conseqüência, com segunda ação de despejo, alegando que, não mais residia em prédio próprio e, como proprietário, necessitava para seu uso do prédio alugado a N. T. M. Êste entrou com exceção de coisa julgada, acolhida em segunda instância.

Pela documentação completa, referente às duas ações de despejo, verifica-se que houve ainda outros incidentes e recursos. Mas, para apreciar a questão principal, que é a que se refere à coisa julgada, o essencial é o que foi exposto.

Pergunta-se, portanto, no único quesito submetido a exame:

“Como promitente-comprador de um imóvel e cessionário dos direitos de locação do promitente-vendedor, F. B. propôs contra N. T. M. uma ação de despejo, julgada improcedente por não ter ficado provada a alegada necessidade do prédio. Tornando-se, depois, proprietário do prédio e já não tendo outro em que resida, F. B. estava impedido de intentar segunda ação de despejo, renovando a argüição de necessidade? Na hipótese negativa: é nula a sentença que assim o decidiu?”

A questão não oferece dúvida alguma e admira como, em matéria tão simples, se haja admitido uma coisa julgada que, na verdade, não existe. As duas ações de despejo são absolutamente independentes e uma não pode, sem quebra de regras jurídicas incontestáveis, ser identificada com a outra. Na primeira ação, o autor figurou nesta qualidade: como promitente-comprador e cessionário dos direitos de locador que o promitente-vendedor tinha. Isto foi claramente reconhecido no acórdão de 12 de agôsto de 1947, proferido na apelação n° 32.798, de São Paulo, referente à primeira ação de despejo:

“Quanto ao agravo no auto do processo, conforme jurisprudência citada pelo autor na inicial, já em face da legislação anterior admitiram Câmaras dêste Tribunal que o promitente-comprador fôsse equiparado ao proprietário para o efeito de poder pedir o despejo de locatários. Com o advento do dec.-lei número 9.669, que revogou tôda a legislação anterior, foi evitada a palavra proprietário e empregada, em seu lugar, locador. No caso em aprêço, o promitente-vendedor cedera ao promitente-comprador os seus direitos de locador, de modo que ainda mais se reforçou a situação do autor, que era, portanto, parte legítima, de modo que o agravo não merece provimento”.

Na segunda ação de despejo, o autor compareceu em qualidade diferente, isto é, como proprietário do prédio. E já agora não mais como cessionário dos direitos do locador, mas por direito próprio decorrente da propriedade que adquiriu, ou seja, o direito de pedir para seu uso o prédio alugado, independente de mostrar, a necessidade, uma vez que não tinha outro em que residisse.

Sendo assim, não havia entre as duas ações, para possibilitar a existência, de uma coisa julgada, o requisito indispensável da identidade de partes. De fato, a identidade de pessoas, que concorre para formar a coisa julgada, não é a identidade física mas a identidade jurídica. Na hipótese da consulta, não se contesta que em ambas as ações a mesma pessoa física figurou como autor. Contudo, na primeira, como promitente-comprador e cessionário da locação; na segunda, como, proprietário, por direito próprio. Portanto, em qualidade jurídica diversa.

Identidade jurídica e não a identidade física

Êste princípio é universalmente admitido: a identidade jurídica e não a identidade física é que se leva em conta no apreciar os elementos formadores da coisa julgada. Comecemos pelo direito italiano. É o que estatuía o art. 1.351 do Cód. Civil de 1865:

“A autoridade da coisa julgada não se verifica senão relativamente ao que constituiu o objeto da sentença. É necessário que a coisa demandada seja a mesma e que a demanda se funde na mesma causa, seja entre as mesmas partes e proposta por elas e contra elas na mesma qualidade”.

Eis como a jurisprudência italiana interpretou êsse texto (“Prima raccolta completa della giurisprudenza sul Codice Civile”, vol. 7°, nº 2.666, pág. 529)

“A lei, requerendo para a formação da coisa julgada que a demanda seja proposta entre as mesmas partes, ou por elas ou contra elas na mesma qualidade, não se refere à qualidade de autor ou de réu, que as partes tenham no juízo, mas à sua personalidade jurídica“.

MATTIROLO, “Trattato”, quinta edizione, vol. 5º, nº 91, pág. 97, ensina: “Consoante o art. 1.351 do Cód. Civil, para que caiba a exceção de coisa julgada, requer-se, como último requisito, que “haja a eadem conditio personarum, isto é, que as partes figurem no novo juízo na mesma qualidade que revestiram no juízo em que se deu a decisão objeto da exceção.

“Como para a identidade da coisademandada, a lei, em tema de exceção reijudicatae, não exige a identidade física, mas a jurídica das pessoas litigantes; de “modo que a exceção de coisa julgada pode propor-se contra uma pessoa que, materialmente, não interveio no juízo, mas que, todavia, foi nêle legìtimamenterepresentada; e, em sentido contrário, a mesma exceção não cabe contra uma pessoa que tomou parte efetiva no juízo. mas que, no atual, age em qualidade diversa da que assumiu na causa anterior”.

Não difere dessa lição CHIOVENDA, “Principii”, terza edizione, § 12, pág. 280: “Identidade de pessoas (eadempersonae). Duas ações são diversas pela só circunstância de se não referirem à mesma pessoa ou não serem contra a mesma pessoa. Compreende-se que a identidade da pessoa física nem sempre produz a identidade subjetiva das ações: a mesma pessoa pode ter diversas qualidades; e duas ações são subjetivamente idênticas só quando as partes se apresentam na mesma qualidade. Vice versa, a mudança da pessoa física como sujeito de uma ação não tem por conseqüência. que o direito trate a ação como diversa: pode haver sucessão na ação, a titulo universal como particular…”.

Nas “Istituzioni”, seconda edizione, vol. 1°, nº 109, pág. 325, CHIOVENDA repete a lição: “S’intende che ler identità delta persona física non produce sempre identità soggettiva d’azioni: la stessa persona può avere diverse qualità, e due azioni sono soggettivamente identiche solo quando le parti si presentano nella medesima qualità”.

Em têrmos idênticos manifesta-se ETTORE CASATI, “Nuovo Digesto Italiano, Regiudicata Civile”, vol. 11, pág. 304: “A mesma pessoa deve ser entendida em sua identidade jurídica (não física), porque a mesma pessoa pode ter diversas qualidades, e duas ações sãosubjetivamenteidênticas só quando as partes se apresentam na mesma qualidade”.

Coisa julgada no entendimento do Cód. Civil italiano

O Cód. Civil italiano vigente não contém disposição idêntica à do Código anterior. O art. 2.909 limita-se ao seguinte:

“L’accertamento contenuto nella sentenza passata in giudicato fa stato a ogni effetto tra le parti, i loro eredi o aventi causa”.

Mas a doutrina é a mesma como ensina CARLO ZAPPULI, “Della tutella dei diritti”, Soc. Editrice Libraria, 1943, número 1.075, pág. 686: “O Código ab-rogado, no art. 1.351, estabelecia todos os extremos constitutivos do julgado; o novo Código, no artigo em exame, limita-se a fixar-lhe a eficácia subjetiva, estabelecendo que aquêle vigora, para todos os efeitos, entre as partes e seus herdeiros ou sucessores. O julgado tem eficácia entre as mesmas pessoas que participaram do processo e seus herdeiros ou sucessores.

“A mesmapessoa deve entender-se em sua identidade jurídica (não física), porque a mesma pessoa pode ter diversas qualidades…”.

Coisa julgada no entendimento do Cód. Civil Francês

Da Itália para a França, o direito não varia. O Cód. Civil francês, artigo 1.351, está vazado nestes têrmos:

“A autoridade da coisa julgada não recai senão sôbre o que constituiu objeto da sentença. É mister que a coisa demandada seja a mesma; que a demanda se baseie na mesma causa; que seja entre as mesmas partes e intentada por elas ou contra elas na mesma qualidade“.

Comentando êste artigo, escrevem FUZIER-HERMAN, DEMOGUE ET JOSSERAND, “Code Civil Annoté”, Paris, 1938, vol. 4°, nº 1.412, pág. 402: “Para que as pessoas sejam jurìdicamente as mesmas, acarretando a autoridade da coisa julgada, nos têrmos dêste artigo, não basta que as partes, entre as quais se feriu a nova instância, hajam figurado na primeira instância pessoalmente ou mediante representação; é preciso, ainda, que estas partes procedam, na nova instância, na mesma qualidade que na primeira”.

BAUDRY ET BARDE, “Obligations”. vol. 4°, n° 2.693, assim se manifestam: “2° Que as partes procedam na mesmaqualidade. Assim, quando uma pessoa funcionou em uma instância precedente como administrador da fortuna de outrem ou como mandatário, a sentença dada contra ela nesta qualidade não se opõe à que institua de novo a mesma demanda em seu próprio nome.

“Assim, ainda, a sentença proferida contra uma pessoa, que agiu por direito próprio e diretamente, tão tem autoridade de coisa julgada contra a mesma pessoa, que se movimente segunda vez, para os mesmos fins, mas como cessionário dos direitos de terceiro”.

No caso da consulta, deu-se o inverso, que não altera, evidentemente, a solução jurídica: o consulente, como cessionário, agiu primeiro; só na segunda ação é que figurou por direito próprio.

Continuemos a ouvir BAUDRY ET BARDE, n° 2.694: “Quando uma pessoa, após haver figurado em um primeiro processo em uma qualidade, figura, em um segundo processo, em outra qualidade que não existia no momento em que se propôs a primeira ação, concorda-se em reconhecer que a autoridade da coisa julgada nem lhe pode ser oposta nem pode ser oposta por ela”.

Foi escrito para a hipótese da consulta. Só na segunda ação apareceu o consulente com uma qualidade que não existia quando da primeira: a qualidade de proprietário.Teoria diferente não se lê em AUBRY ET RAU, cinquièmeédition, volume 12, § 769, pág. 429: “Enfim, uma sentença dada contra uma pessoa, que “agiu por direito próprio e em seu próprio nome, não tem autoridade de coisa, julgada contra ela, quando procede uma segunda vez para os mesmos fins, mas como cessionário dos direitos de terceiro“.

BARTIN acrescenta que a solução não varia, se desse o contrário, como no caso da consulta: “Il en est do même dans l’hypothèse inverse”.

Também PLANIOL-RIPERT ET GABOLDE, vol. 7°, nº 1.557, pág. 896, salientam que, sôbre deverem ser jurìdicamente as mesmas, as partes devem ainda, na segunda ação, apresentar-se na mesma qualidade. Mas, como tal não se apresentam, se, como na espécie da consulta, o autor primeiro apareceu como cessionário e depois como proprietário. Não pode haver coisa julgada em casos como êste: “Une partie agissant en son nom, puis comme cessionaire des droits d’un tiers ou inversement”.

Finalmente, LACOSTE, “Chose Jugée”, baseado em várias decisões e autoridades, assinala o seguinte, que tanto se prende à dúvida da consulta: “Se uma pessoa figura em uma ação numa qualidade, depois em uma segunda noutra qualidade, que não existia por ocasião da primeira, tôda a gente admite que não se lhe pode opor nem ela pode opor a autoridade da coisa julgada”.

Coisa julgada no entendimento do Cód. Civil português

Em Portugal é o que se sustenta à semelhança do art. 2.503 do Cód. Civil, diz, lapidarmente, o art. 502 do Cód. de Proc. Civil:

“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista de sua qualidade jurídica”.

Entendimentos no Brasil

No Brasil assim também pensam, entre outros, GUSMÃO, “Coisa Julgada”, pág. 56, e JOÃO MONTEIRO, § 243. Êste último cita, em nota, a seguinte passagem de DEMOLOMBE: “Peu importe que les personnes, qui ont figuré dans le premier litige, scient physiquement les mêmes que celles que figurent dans le second si elles ne sont pas les mêmes juridiquement.

Réciproquement, en sens inverse, si elles sont les mêmes juridiquement, peu importe qui elles ne soient pas physiquemente les mêmes”.

Fica, assim, respondida a primeira parte da pergunta: F. B. não estava impedido de intentar segunda ação de despejo contra N. T. M., pois, nesta nova ação, figurava em qualidade absolutamente diferente, isto é, por direito próprio, como proprietário, e não, como na primeira, no caráter de mero promitente-comprador e cessionário dos direitos do promitente-vendedor.

Autoridade da coisa julgada e a falta da identidade jurídica de pessoas

Resta indagar se é nula a decisão que, apesar de não haver identidade jurídica de pessoas, reconheceu, na segunda ação, contra o consulente, a autoridade da coisa julgada. O art. 798, I, c, do Cód. de Proc. Civil prescreve que será, nula a sentença quando proferida “contra literal disposição de lei”. Nem o Cód. Civil nem o Cód. de Processo definem o que seja coisa julgada. Arte essa lacuna, a matéria terá que ser resolvida nos termos do art. 4° da Lei de Introdução ao Cód. Civil brasileiro (dec.-lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942)

“Quando a lei fôr omissa, o juiz decidirá o caso de acôrdo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Disposição análoga não existe. Tampouco há que apelar para os costumes. Só restam os princípios gerais de direito. Um dêsses princípios, como acabamos de ver, é que, para integrar a coisa julgada, se faz necessário que haja identidade jurídica de pessoas, isto é, que intervenham numa e noutra ação na mesma qualidade. Ora, no caso em estudo, falhou essa identidade. A pessoa física era a mesma, mas a qualidade jurídica diversa. Foi ofendida, portanto, essa norma. Considerou-se coisa julgada o que, por direito, não é. É passível de ação rescisória o julgado que afrontou essa norma jurídica? Sem dúvida nenhuma. É o que se vai ver.

ODILON DE ANDRADE, “Comentários ao Código de Processo Civil”, volume 9º, nº 60, pág. 81, escreve: “A locução usada pelo Código restringe a ação rescisória à violação do direito escrito. Desde que o direito não esteja consubstanciado no texto da lei, a sua violação só pode ser corrigida por meio dos re”cursos ordinários, e não pela rescisória”.

O professor LUÍS EULÁLIO, na bela monografia que escreveu, a “Ação Rescisória”, nº 69, pág. 64, observa: “Evidentemente, no entanto, para nós que limitamos, pelas razões expostas, o campo de aplicação da letra c, I, do art. 798 aos erros cometidos pelo juiz, in judicando, não seriam nulas as decisões que violassem o art. 4° da vigente Lei de Introdução, porque a violação dêsse artigo, que se destina direta e explìcitamente ao juiz, constitui êrro in procedendo e não in judicando.

“Aliás, como argumento final a favor da interpretação restritiva que estamos defendendo, deve lembrar-se que, se ela não fôr aceita, difìcilmente se encontrará uma decisão errada que não seja suscetível de anular-se por ação rescisória…

“Portanto, não são rescindíveis os julgados proferidos contra o costume, a analogia, os princípios gerais de direito “e a jurisprudência dominante”.

Contra estas doutas manifestações opinam JORGE AMERICANO e PONTES DE MIRANDA. JORGE AMERICANO inclui entre os casos de ação rescisória a violação dos princípios gerais de direito (“Ação Rescisória”, 2ª ed., nº 70, pág. 152): “Onde houver uma sentença “passada, em julgado que fuja à aplicação do direito pátrio, definido no art. 7º do Cód. Civil, aí terá, lugar a ação rescisória…”.

PONTES DE MIRANDA (“Ação Rescisória”, págs. 169-206, passim) explica o que seja direito expresso, incluindo na compreensão dessas palavras os princípios gerais de direito. A pág. 194 escreve: “Viola-se o direito, deixando-se de aplicar princípios que dêle fazem parte, escrito ou não, ou aplicando outro que lhe seja contrário, modificativo ou excludente…

“Certamente é improcedente a ação rescisória em cujo processo o autor não cita o princípio ofendido ou a lei violada; mas isso não quer dizer que não possa invocar direito não-escrito, desde que seja direito segundo foi definido”.

A razão está, sem dúvida, com JORGE. AMERICANO e PONTES DE MIRANDA. Do âmbito da ação rescisória, o Cód. de Proc. Civil só exclui as nulidades que digam com o direito da parte, segundo está expresso no art. 800. Tôdas as mais nulidades constantes do art. 798 dão lugar à ação rescisória. Viola ou não literal disposição de lei o juiz que, em caso omisso, deixa de aplicar o princípio de direito que disciplina o assunto? É inconcusso que viola, porque para essas hipóteses é que o legislador estatuiu o prescrito no art. 4° da Lei de Introdução. Se se deixa de atender à regra jurídica, que deve regular o assunto, infringe-se o art. 4°, que determina o contrário. Assim no caso da consulta, sendo a lei omissa, pois não define a coisa julgada, fôrça é recorrer ao art. 4° para saber quais os elementos que conformam essa exceção de direito substancial. Se o juiz se recusa a fazê-lo, ou se o faz desconhecendo um cânon essencial do instituto, viola esse artigo e aí temos, sem violência alguma de raciocínio, uma sentença proferida contra literal disposição de lei.

O argumento de que aí se trata, de êrro in procedendo, que não dá margem à ação rescisória, não tem apoio na doutrina. A inobservância de um princípio geral de direito é por todos considerada êrro in judicando e não in procedendo. ANDREOLI (“Commento al Codice di Procedura Civile”, 2ª ed., vol. 2°, página 354), depois de salientar que as “violazione o falsa applicazione di norme di diritto” “sono i classiei errores in judicando“, acrescenta (pág. 355): “O positivismo não foi, porém, levado até o excesso de excluir o recurso de Cassação pela violação ou falsa aplicação dos princípios gerais de direito, que a doutrina (cf., por último, BOBEIO, ob. cit., 120; CRISAFULLI, “Riv. internaz. fil. diritto”, 1941) sustentou, e justamente, porque negar o contraste da Cassação quanto aos princípios gerais de direito equivaleria a subtrair ao exame do Supremo Colégio a parte mais delicada da pesquisa interpretativa”.

ZANZUCCHI (“Diritto processuale civile”, 4ª ed., vol. 2°, pág. 241) também inclui entre as normas de direito cuja violação dá lugar à Cassação os princípios gerais de direito.

CALAMANDREI, no ensaio que escreveu para o “Nuovo Digesto Italiano” sôbre a CassazioneCivile, também inclui a violação e falsa aplicação da lei entre os erros in judicando, que dão margem à Cassação, compreendendo também os princípios gerais de direita entre os casos dêsse recurso (nº 28): “Tendo em vista os critérios acima designados, vejamos agora quais são, em concreto, os errores in jndicando classificáveis sob a denominação de “violação e falsa aplicação da lei”.

“E, antes de tudo, em que significado se deve entender, para, os efeitos da Cassação, a palavra lei?

Após enumerar vários casos, acrescenta: “Reentra sob o conceito de lei qualquer norma jurídica que, embora “não formulada em artigo próprio, seja, contudo, dessumível do sistema até alçar-se aos princípios gerais do mesmo: “sob êste aspecto pode ser denunciada em Cassação também a violação de máximas do direito romano, na medida em que contenham e resumam um princípio também vigente na organização atual”.

Ficou, assim, provado que a violação de um princípio geral de direito constituí êrro in judicando e não in procedendo, O art. 7° da Introdução do Código Civil dizia cristalinamente:

“Aplicam-se nos casos omissos as disposições concernentes aos casos análogos, e, não as havendo, os princípios gerais de direito”.

A Lei de Introdução vigente, com péssima redação, transformou neste aquêle texto:

“Quando a lei fôr omissa, o juiz decidirá o caso de acôrdo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Daí vem o dizer-se que o preceito não se destina à coletividade, que o juiz é o seu destinatário. Seja, embora a natureza substantiva do preceito repila esta teoria. Mas, como se trata de regra de direito, e não de processo, a sua violação constitui êrro in judicando, que dá lugar à ação rescisória.

CHIOVENDA (“Istituzioni”, vol. 2°, n° 414) enumerou oito motivos de Cassação. Dêsses considerou sete como defeitos de atividade (erroresinprocedendo); e sòmente um como vício de julgamento (erroresin judicando): exatamente o caso de violação ou falsa aplicação da lei. CHIOVENDA também dá ampla significação à palavra lei (ns. 144, 147, 261, 324 e 414).

Erro de julgamento

Ora, se se trata de um êrro de julgamento por fôrça do qual a sentença negou o direito do consulente, não há como deixar de proceder à ação rescisória, que pretende intentar, com fundamento no art. 798, I, c, do Cód. de Proc. Civil: violação de literal disposição de lei. São duas as violações. A do art. 4° da Lei de Introdução ao Cód. Civil ficou perfeitamente elucidada. Para se configurar uma coisa julgada inexistente considerou-se a identidade física do autor nas duas ações de despejo, ao invés de se ater ao caráter jurídico com que nelas se apresentou. Violentou-se, por essa forma, princípio geral de direito incontrastável. A literal disposição do art. 4º foi afrontada na sua terminante imposição de se recorrer, nos casos omissos, aos princípios gerais de direito. Se êsse princípio houvesse sido aplicado, não se teria reconhecido a coisa julgada, pois esta não existe quando as partes não são as mesmas. Nas duas ações de que se trata, as partes, jurìdicamente, não eram as mesmas. Físicamente, sim. Mas aquela face e não esta é a que devia ser encarada.

A segunda violação é a do artigo 18, nº 2, § 4º, do dec.-lei nº 9.669, de 29 de agôsto de 1946. Reza êste dispositivo que a locação poderá ser rescindida se o locador pedir o prédio para uso próprio, mas não precisará provar a necessidade do pedido se não residir em prédio próprio. Ora, quando propôs a segunda ação de despejo, o consulente não residia em prédio próprio, nem possuía outro. Apesar disso, apesar do disposto no § 4º citado, exigiu-se-lhe prova de necessidade; e, porque, por ocasião da ação precedente, êle tinha casa em que residia, entendeu-se que isso o impedia de pedir para seu uso o prédio locado! Mais flagrante violação da lei é impossível.

Não terminarei sem pôr de manifesto que a teoria defendida neste parecer, notadamente quanto a considerar in judicando e não in procedendo o êrro aludido, nenhum perigo oferece, desde que se confine a rescisória em seus limites naturais: considerar apenas a ilegalidade e não a injustiça. Sob êste ângulo, mesmo a violação de uma regra geral de direito, conquanto não escrita, deve dar ensejo à rescisória, para que se não firme, contra a razão jurídica, uma jurisprudência ilegal, perigosa e divergente: “Poder-se-ia, portanto, concluir”, diz CALAMANDREI (“Nuovo Digesto, Cassazione Civile”, no 27, IV, pág. 1.001), “que são denunciáveis em Cassação todos e sòmente aquêles erros de direito ocorridos in judicando que se relacionem com a existência ou o significado da norma “jurídica: isto é, todos os erros de julgamento que, se não forem censurados pela Suprema Côrte, poderiam constituir um precedente, apto a pôr em perigo a unidade da interpretação jurisprudencial”.

Aqui só se discutiu, como quer CALAMANDREI, a existência e o significado da regra pela qual, no apreciar a identidade de pessoas, para o fim de se verificar se existe ou não coisa julgada, deve examinar-se a sua situação jurídica e não a sua situação física. O julgado rescindendo ateve-se a êste aspecto físico. Desprezou o aspecto jurídico. Não pode prevalecer, tanto mais quanto aquela violação acarretou a segunda: a de se exigir, contra a lei expressa, do proprietário que não residia em casa própria, prova da necessidade.

Em conclusão: reputo líquido o remédio rescisório que o consulente pensa intentar.

São Paulo, 1° de setembro de 1949. –

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