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STF e tratados internacionais de direitos humanos aos 36 anos da Constituição

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STF e tratados internacionais de direitos humanos aos 36 anos da Constituição

DIREITOS HUMANOS

STF

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

30/10/2024

Como a experiência brasileira e a evolução já desde antes da promulgação da Constituição de 1988 o demonstram, nunca houve — salvo algumas exceções, em geral no campo do direito internacional — maior receptividade por parte da comunidade jurídica em relação ao tema, seja do ponto de vista do seu tratamento dogmático, mas especialmente na prática jurídico-judiciária.

Com o advento da CF era de se esperar uma guinada nessa seara, visto que, de modo pioneiro no direito brasileiro, o constituinte, afinado com os desenvolvimentos mais recentes, fez constar do texto constitucional, tanto o princípio de prevalência dos direitos humanos no plano das relações internacionais (artigo 4º, II) quanto fez constar, no § 2° do artigo 5°, que os direitos expressamente positivados no texto constitucional não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios da Constituição, mas abarcam igualmente os direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil for parte.

Com isso, a abertura material do catálogo constitucional de direitos, antes (ao menos textualmente) restrita a direitos decorrentes dos princípios e do regime constitucional, foi ampliada para integrar, no assim chamado bloco de constitucionalidade, os direitos consagrados na esfera do direito internacional dos direitos humanos.

20 primeiros anos

Não foi, contudo, o que se passou, ao menos não durante a maior parte das duas primeiras décadas de vigência da Constituição. Se, por um lado, no campo da literatura jurídica começou a haver maior receptividade, crescendo rapidamente o número de autores que passaram a se ocupar do tema e a defender uma força jurídica reforçada, na condição de direitos materialmente fundamentais e com hierarquia constitucional, dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil e incorporados à ordem jurídica doméstica, o mesmo não se verificou na esfera jurisprudencial.

Com efeito, apesar da acolhida de tal entendimento em decisões isoladas de juízes e tribunais, inclusive do STJ, em geral versando sobre a, na época, tão polêmica prisão do depositário infiel, o STF, instado a se pronunciar novamente sobre o tema, optou por manter o seu posicionamento anterior a 1988, no sentido da paridade entre tratados internacionais (inclusive em matéria de direitos humanos) e a legislação ordinária.

Nova fase

É possível afirmar, contudo, que uma nova fase do debate, acadêmico e jurisprudencial, iniciou com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 (doravante denominada EC 45).

A EC 45, após longa e tormentosa tramitação no Congresso, veiculou a assim chamada reforma do Poder Judiciário, implicando a inserção de várias disposições diretamente relativas aos direitos humanos e fundamentais na Constituição, como foi o caso, apenas para citar o dispositivo mais próximo da temática aqui versada, da inclusão do § 3º do artigo 5º, versando sobre a forma de incorporação, ao direito interno, dos tratados internacionais de direitos humanos.

O dispositivo inserido por meio da EC 45 (§ 3º do artigo 5º da CF), estabelecendo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, veio para complementar o já referido § 2° do mesmo artigo, gerando, mesmo já durante a tramitação da PEC, uma série de perplexidades, ligadas tanto a questões de natureza formal (procedimental) quanto de cunho material, designadamente sobre a força jurídica dos tratados de direitos humanos na esfera doméstica.

A essa altura, uma vez incorporado e vigente o § 3º do artigo 5º da CF, também o STF teve a ocasião de retomar o tema, revisando a posição anterior e assegurando a prevalência dos tratados de direitos humanos em relação pelo menos ao direito infraconstitucional interno, além de revisar a sua posição sobre a legitimidade do instituto da prisão civil do depositário infiel.

Nesse contexto, note-se que o STF durante quase duas décadas após a promulgação da CF, vinha, por maioria de votos, mantendo sua jurisprudência pretérita sobre a matéria, designadamente, a de afirmar a paridade entre os tratados internacionais (sejam eles, ou não, de direitos humanos) e as leis ordinárias.

A já referida mudança de orientação, como era, aliás, de se esperar, ocorreu relativamente pouco tempo depois da incorporação no texto constitucional do citado § 3º ao artigo 5º da CF.  Isso se deu por ocasião do julgamento, em 22.11.2006, do RE 466.343-1/SP, Rel. Ministro Cezar Peluso, quando, a partir do alentado e sofisticado voto-vogal do ministro Gilmar Mendes, a despeito do rechaço da tese da hierarquia constitucional (na condição de direito materialmente constitucional) dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, foi recuperada a posição anteriormente defendida, de modo isolado, pelo ministro Sepúlveda Pertence, favorável à hierarquia supralegal de tais instrumentos internacionais.

Com isso, de acordo com o que se depreende, em muito apertada síntese, do paradigmático voto do ministro Gilmar Mendes, estar-se-ia assegurando a supremacia da CF, mas ao mesmo tempo assegurando uma posição de vantagem hierárquica substancial a todos os tratados de direitos humanos, já que prevalentes em relação à toda a normativa infraconstitucional doméstica, à exceção dos tratados aprovados pelo procedimento previsto no § 3º do artigo 5º da CF, os quais, em sendo rigorosamente atendido tal rito, possuem hierarquia que equivale a das emendas constitucionais.

A partir do julgamento referido, o STF começou a ser muito mais receptivo relativamente à incorporação de referências aos tratados internacionais de direitos humanos nas suas decisões, o que pode ser ilustrado mediante a colação, em caráter ilustrativo, de alguns julgados.

Em julgamento por maioria de votos realizado em 17/6/2009, nos termos do voto do relator ministro Gilmar Mendes, o STF julgou procedente o Recurso Extraordinário nº 511.961, no sentido de que a norma contida no artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei nº 972/1969, que determina a obrigatoriedade de apresentação de diploma de curso superior registrado no Ministério da Educação para o exercício da profissão de jornalista, não foi recepcionada pela CF, ademais de violar o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, por representar uma limitação desarrazoada ao direito de liberdade de expressão, e, de modo consequente, por afetar o incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, referenciando inclusive precedentes da Comissão de Direitos Humanos e da Corte Interamericana nesse sentido..

No julgamento da ADI 4.424, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, ocorrido em 19/02/2012 e decidido por maioria nos termos do voto do relator, foram analisadas as arguições de inconstitucionalidades aduzidas em face de dispositivos da Lei nº 11.340/2006, em especial quanto ao fato de ter violado o princípio da isonomia, no sentido de assegurar um tratamento diferenciado no processo de crimes cometidos no âmbito da violência doméstica, consistente em definir a natureza da ação penal como pública incondicionada nos casos de crimes de lesão corporal praticados contra mulher nesse contexto, a partir da interpretação dos artigos 12, inciso I, e 16 do referido diploma legal.

O relator ressaltou, de início, que a edição do referido ato legislativo adveio de uma condenação sofrida pelo Brasil e impostam pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (2001), de tal sorte que necessária a interpretação da Lei Federal tendo como diretriz as exigências da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Internacional de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

Tratados

Interessante mencionar que, em matéria criminal, registram-se vários casos nos quais o STF acabou, de algum modo, lançando mão do parâmetro dos tratados de direitos humanos para balizar as suas decisões.

Em 1/9/2010, por maioria, nos termos do voto do relator, ministro Ayres Britto, o Pleno do STF decidiu por conceder parcialmente a ordem no âmbito do Habeas Corpus nº 97256, impetrado pela Defensoria Pública da União em face de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, para afastar a vedação contida no artigo 44 da Lei nº 11.343/2006 quanto à substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos nos delitos de tráfico de entorpecentes.

Outra matéria recorrentemente contemplada em julgamentos do STF diz respeito ao direito-garantia da razoável duração do processo e a configuração do excesso de prazo em ação criminal e as respectivas sanções. Tal garantia, incorporada ao texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 45/2004, encontra também expressa previsão nos artigos 7.5 e 7.6 do Pacto de São José da Costa Rica, que reconhecem a garantia da razoável duração do processo na forma de um direito subjetivo a um julgamento sem dilações indevidas.

Em julgamento datado de 13/11/2014, 2ª Turma, proferido à unanimidade, o STF, no Habeas Corpus nº 111.173, relator ministro Celso de Mello, procedeu a controle de convencionalidade de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), invocando precisamente as disposições referidas da Convenção Americana de Direitos Humanos, reconhecendo a configuração de constrangimento ilegal da liberdade de locomoção em virtude do excesso de prazo, afirmando que o julgamento deve ocorrer em tempo adequado. Na conclusão do citado julgado, o Tribunal determinou, ainda, prazo de duas sessões para que o STJ (autoridade coatora) finalizasse o julgamento do HC nº 203.917, cuja alegação de excesso de prazo teria ocasionado a impetração do HC ora noticiado perante o STF.

Julgado importante — novamente em matéria criminal — diz respeito a assim chamada audiência de custódia (em verdade uma audiência de apresentação), procedimento criado inicialmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mediante o Provimento 03/2015, como forma de dar cumprimento ao disposto no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 7º, item 05), naquilo em que determina que toda pessoa detida ou retida deverá ser apresentada sem demora a um juiz.

Nesse caso, o STF, em 20/08/2015, por maioria de votos e nos termos do voto do relator, ministro Luiz Fux, conheceu em parte do pedido na ADI nº 5.240, julgando tal ação improcedente. Ao proceder ao exame de constitucionalidade o STF também analisou a convencionalidade do referido ato normativo em face da Convenção Americana de Direitos do Homem, entendendo que seu já referido artigo 7º, item 5, oferta o fundamento necessário para validar o citado ato normativo, ademais de entender não existir violação das normas constitucionais que envolvem a competência legislativa em matéria processual penal.

Dois casos julgados pelo STF tiveram como parâmetro a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que, por ter sido aprovada pelo Congresso observando o rito do § 3° do artigo 5° da CF, possui hierarquia equivalente a uma emenda constitucional e integra, portanto, o bloco de constitucionalidade, fazendo convergir e dialogar, diretamente, o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade.

Em um primeiro momento, o STF, por meio do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 32732, relatado pelo ministro Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 3/6/2014, ficou assentado, à unanimidade,  que a Administração Pública brasileira tem legitimidade para ofertar tratamento diferenciado às pessoas portadoras de deficiência no acesso a cargos públicos, devendo seguir critérios objetivos para definir os cargos públicos que irão suprir essa cota específica, de modo que o Poder Público deverá implementar mecanismos compensatórios destinados a corrigir as profundas desvantagens sociais que afetam as pessoas vulneráveis, em ordem a propiciar-lhes um maior grau de inclusão e a viabilizar a sua efetiva participação, em condições equânimes e mais justas, na vida econômica, social e cultural do país.

Também o julgamento, em 9/6/2016, da ADI 5357, relatada pelo ministro Edson Fachin, merece destaque, porquanto foram declaradas constitucionais as normas contidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que estabelecem a obrigatoriedade de as escolas privadas promoverem a inserção de pessoas com deficiência no ensino regular e providenciar nas medidas de adaptação necessárias sem que o ônus financeiro seja repassado mediante inserção nas taxas escolares (mensalidades, anuidades ou matrículas).

Finalmente, dentre tantos outros julgados do STF que aqui poderiam ser colacionados, calha referir o fato de que a Suprema Corte brasileira, em pelo menos dois importantes julgamentos, respectivamente, na ADI 4.066, relatoria da ministra Rosa Weber, julgada em 24/8/2017, e na ADPF 708, relatoria do Ministro Roberto Barroso (caso Fundo Clima), julgada em 4/07/2022, entendeu que os tratados internacionais em matéria ambiental devessem ser equiparados aos tratados de direitos humanos, tendo, por via de consequência, hierarquia supralegal, com isso não somente ampliando o parâmetro do controle de convencionalidade, mas em especial reforçando a proteção jurídica do meio ambiente.

De todo o exposto, é possível extrair que no tocante ao valor atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos sob a égide da CF, o Brasil — inclusive no que diz com a jurisprudência do STF — registrou importantes avanços — em termos quantitativos e qualitativos — sob a égide da CF.

Outrossim, não se desconhece aqui as condenações sofridas pelo Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nem se desconsidera que ainda falta muito para que a efetivação da teoria e da prática do controle de convencionalidade sejam bem assimiladas, resultando em uma atuação rotineira por parte dos atores da cena judiciária.

Aliás, somente assim se poderá alcançar uma necessária e urgente sintonia entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais e a projetada integração do Brasil na comunidade internacional e, em especial, regional, tal como foi previsto pelo Constituinte de 1988.

Fonte: Conjur

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