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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Mais um caso de litigância climática: Cannavacciuolo e outros contra Itália

Ingo Wolfgang Sarlet
04/06/2025
No contexto de uma cada vez maior ampliação, em termos quantitativos e qualitativos, da assim chamada litigância climática, merece destaque a recente decisão (30/1/2025) da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) proferida quando do julgamento do caso Cannavacciuolo e outros vs. Itália (Caso Cannavacciuolo), menos de um ano após o emblemático julgamento da Corte no caso KlimaSeniorinnen vs. Suíça, mostra aos poucos — e cada vez mais — que também as cortes supranacionais estão sendo acionadas
No Caso Cannavacciuolo o que esteve em causa, em apertada síntese, foi o combate à poluição massiva causada por muitas décadas de eliminação ilegal e descontrolada de resíduos por atores privados na região da Campânia. Além disso, questionou-se a falta de cumprimento dos deveres de proteção estatais no sentido de prevenir, controlar e mitigar tais práticas, porquanto causadoras de danos que incluem até mesmo risco de vida das pessoas que vivem na região afetada, razão pela qual foi arguida a violação do artigo 2º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que, combinado com o artigo 1º, versa precisamente sobre o direito à vida.
Por ocasião do julgamento, a CEDH chegou à conclusão de que houve violação do direito à vida, e, portanto, do referido artigo 2º da Convenção, levando em conta a ausência de medidas adequadas e suficientes por parte das autoridades públicas para a proteção da vida das pessoas que vivem na região, notadamente, dos autores do processo.
Além disso, a Corte valeu-se dos critérios da devida diligência (due dilligence) e sobre causalidade desenvolvidas na sua jurisprudência sobre o artigo 8º da Convenção Europeia (direito ao respeito pela vida privada e familiar). Além disso, chama a atenção que a CEDH acabou traçando uma distinção entre os casos Cannavacciuolo e KlimaSennioren, admitindo (por maioria de seis votos contra um) apenas o pedido formulado pelos requerentes individuais, ademais de distinguir entre questões ambientais em sentido amplo e aspectos relacionados com as mudanças climáticas.
Note-se que a demanda foi proposta, além de pessoas residentes dentro da esfera territorial abarcada pela zona “Terra dei Fuochi”, que, por força de normativa governamental, abrange todos os Municípios tidos como afetados pela contaminação, por parentes de pessoas falecidas em virtude da poluição, bem como por cinco associações ambientais locais, tratando-se de pessoas com graves doenças relacionadas à poluição ou falecidas em virtude de tais doenças.
Quanto ao julgamento em si, um primeiro ponto a ser sublinhado e que foi alvo de importantes críticas, diz respeito ao fato de que a CEDH não admitiu os pedidos formulados pelas associações, por considerar não serem vítimas diretas da degradação, reiterando os precedentes nos quais estabeleceu que somente pessoas naturais podem alegar ser vítimas de uma violação do direito à vida, à saúde ou à integridade física e que, por conseguinte, as associações não podem invocar os artigos 2º e 8º da CEDH.
Circunstâncias excepcionais
Segundo bem pontua Violetta Sefkow-Werner, uma das vozes críticas, a Corte, na esteira dos precedentes Câmpeanu e KlimaSeniorinnen, “declarou que só permitiria a legitimidade representativa em circunstâncias excepcionais, nomeadamente quando a vítima direta não pudesse apresentar o recurso por si própria devido a uma vulnerabilidade extrema ou à luz de «considerações especiais relacionadas com as alterações climáticas».
Uma vez que os membros das associações podiam apresentar pedidos em seu próprio nome, o que alguns deles de facto fizeram, e que o processo Cannavacciuolo «não dizia claramente respeito à questão das alterações climáticas» (n.º 221), o Tribunal concluiu que não havia fundamento para aceitar a legitimidade das associações para agir em nome dos seus membros” [1].
Outro aspecto relevante diz respeito ao nexo de causalidade, porquanto o poder público italiano alegou que, 1) não existia uma prova da relação causal entre a degradação do ambiente e os danos causados para a vida e saúde dos demandantes, e 2) que somente pessoas residentes em um dos Municípios incluídos na região formalmente delimitada (Terra dei Fuochi) poderiam ser consideradas vítimas.
Nesse sentido, a despeito da argumentação dos autores de que devido ao fato de ser impossível estabelecer limites precisos para a área afetada pela contaminação também os requerentes que nela não residiam deveriam ser considerados vítimas, aplicando-se a teoria do risco, o fato é que a CEDH também não acolheu tal linha de entendimento, argumentando que em virtude da natureza técnica da questão, o poder público estaria em melhores condições de avaliar a dimensão da área atingida e proceder à sua delimitação, o que aponta para o reconhecimento de uma deferência da Corte para com as autoridades governamentais e a concessão de uma margem importante em termos de discricionariedade técnica.
Nesta quadra calha, mais uma vez, invocar os comentários de Violetta Sefkow-Werner, para quem “embora o Tribunal tenha sido restritivo quanto à legitimidade das associações para apresentar a queixa, adotou uma abordagem preventiva mais generosa no que diz respeito ao estatuto de vítima individual e à violação do artigo 2º da CEDH. Considerando que os requerentes tinham vivido nas zonas afetadas durante um longo período de tempo, estando constantemente expostos à poluição, o Tribunal não lhes exigiu que provassem a existência de uma ligação entre a exposição e uma consequência negativa específica da mesma (nº 390). Considerou suficiente a causalidade geral entre o fenómeno da poluição e um risco acrescido de doenças potencialmente fatais ou de morte. Considerou também que o risco era «suficientemente grave, real e verificável» e «iminente» na acepção do critério KlimaSeniorinnen (nº 390)” [2].
Em que pese a inequívoca relevância das questões já levantadas, provavelmente o ponto mais polêmico (inclusive alvo de críticas em votos de dois dos Magistrados) da decisão reside na distinção estabelecida pela CEDH entre questões ambientais e questões climáticas. Para a Corte, no caso Cannavacciuolo se tratava de questões ambientais em sentido amplo, ao passo que no processo KlimaSeniorinnen o que estava em causa eram questões tipicamente climáticas.
Tal distinção, embora adotada pela maioria dos julgadores, não convence, visto que, apesar de importantes diferenças a serem consideradas caso a caso, é inegável a existência de uma relação entre mudanças climáticas e poluição, ou seja, entre clima e ambiente. Além disso, a distinção (equivocada também no nosso sentir) adotada pela CEDH pode levar à conclusão, igualmente incorreta, s.m.j., de uma autonomia das mudanças climáticas (e, portanto, do próprio direito climático) em relação às questões ambientais e ao direito ambiental, como se, ressalvadas peculiaridades e alguns parâmetros próprios, os princípios em matéria ambiental não fossem também aplicáveis ao domínio climático e o direito humano e fundamental a um clima íntegro e estável nada tivesse a ver com o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado. Aliás, a própria distinção rígida entre litígios climáticos e ambientais acaba não se sustentando, razão pela qual seria preferível falar em litígios climáticos em sentido estrito (ou próprio) e em sentido amplo (impróprio ou indireto).
De qualquer sorte, independentemente das críticas consistentes endereçadas à decisão da CEDH no caso Cannavacciuolo, no qual a Corte poderia ter recuperado e desenvolvido melhor elementos do caso KlimaSeniorinnen, o fato é que se trata de mais um julgamento relevante atestando que, também no concernente à jurisdição supranacional, a proteção do ambiente e do clima tem ganho uma posição cada vez mais destacada.
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[1] Sefkow-Werner, Violetta. Individual vs. representative applications or environment vs. climate issues – The ECtHR’s Cannavacciuolo and Others vs. Italy judgement. Strasbourg Observers, 02.04.2025.
[2] Idem.