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Hiperconexão, tecnoautoritarismo e capitalismo de vigilância

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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

Hiperconexão, tecnoautoritarismo e capitalismo de vigilância

CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA

HIPERCONEXÃO

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

09/06/2025

Como já é do conhecimento geral, a hiperconexão é um dos fenômenos mais relevantes (e alarmantes) no contexto da assim chamada transformação digital. Nesse cenário, é preciso destacar o fato de que no Brasil os níveis de conectividade da população apresentam números espantosos e inquietantes, o que voltará a ser objeto de atenção logo mais adiante. A hiperconexão, por sua vez, pressupõe que as pessoas tenham acesso à internet, de tal sorte que calha oportuno, antes de avançar, lançar um breve olhar sobre esse outro tópico, qual seja, o da inclusão digital.

Em que pese o fato de que 13,4% da população brasileira ainda não tenha acesso à internet, os números mostram uma gradual e importante melhoria desses índices, ainda que isso não signifique que não se possa (e deva) questionar os níveis efetivos de inclusão digital em termos quantitativos, mas em especial, qualitativos. Em 2024 [1], dados do Relatório Digital 2024 Global Overview Report – the essential guide to the world’s connected behaviours, da We Are Social e Meltwater, indicaram que 86,6% da população brasileira tinha acesso à internet, enquanto em 2022 [2] este percentual era de 77%, portanto, quase dez pontos percentuais a menos.

Com relação ao ano de 2024, chama a atenção a segunda posição ocupada pelo Brasil, em uma amostra de 50 países, relativa ao tempo médio diário de conexão à internet, que chegou a nove horas e 13 minutos [3], atrás apenas da África do Sul, que contava com 11 minutos diários a mais de conexão. O ranking que coloca o Brasil à frente de países como Portugal (sete horas e 30 minutos), Israel (sete horas e 20 minutos), Estados Unidos (sete horas e 3 minutos), Canadá (seis horas e 18 minutos), Itália (cinco horas e 49 minutos) e Alemanha (cinco horas e 22 minutos), por exemplo, não é, contudo, digno de enaltecimento. Muito antes pelo contrário.

Um dos principais motivos de desassossego com o tempo diário de conexão reside no fato de que aproximadamente 40% deste tempo é dedicado ao uso de redes sociais [4], o que insere o Brasil na sétima posição na amostra de 50 países, ultrapassando, inclusive, a África do Sul, que, como visto, ocupa o primeiro lugar no ranking em tempo de conexão diária geral. O uso excessivo da internet, em sentido amplo, e das redes sociais, em sentido mais específico, é capaz de gerar diversos efeitos negativos, que atingem tanto a esfera individual de cada pessoa hiperconectada, quanto a vida em sociedade.

Dentre os diversos problemas inerentes à hiperconexão, merecem destaque o efeito bolha, a dificuldade de tomada de uma decisão livre e consciente das pessoas, a superexposição e, com ela, a maior vulnerabilidade dos usuários da rede, a desagregação dos laços pessoais e familiares, bem como fissuras no próprio tecido social, etc. Isso especialmente porque o excesso de conteúdo, que gera sobrecarga informacional, condiciona o algoritmo a mostrar apenas conteúdos que reforçam o que o usuário já acredita ou pensa, dificultando o pensamento crítico, a tomada de decisão livre e consciente e potencializando a polarização. Ademais disso, quanto maior a conexão, mais facilitado fica o controle e o monitoramento das pessoas pelo Estado, mas também por outros atores sociais, especialmente – dado o seu imenso poder econômico e social – das assim chamadas big techs.

Tais dados, ainda que sinteticamente apresentados, são preocupantes por si só, o que, à evidência, não se aplica apenas ao Brasil, mas nele tem tido níveis cada vez mais acentuados. O caso da hiperconexão, por seu turno, para além dos seus efeitos problemáticos já referidos, guarda relação com dois outros fenômenos em curso em todo o mundo e que também tem sido presentes no Brasil. Trata-se do assim denominado o tecnoautoritarismo e do capitalismo de vigilância.

O tecnoautoritarismo consiste, em linhas gerais, na utilização de recursos tecnológicos para aumentar, em termos quantitativos e qualitativos, o controle e o monitoramento exercidos pelo Estado sobre a população. O fenômeno pode ocorrer – e assim tem sido observado – tanto em Estados já definidos como autoritários ou ditatoriais, com o agravamento do autoritarismo mediante a utilização da tecnologia, quanto – e aqui surge um relevante ponto de atenção e preocupação – em Estados Democráticos de Direito [5][6].

Neste último caso, o que se verifica é um processo de adoecimento da democracia, com a fragilização das suas instituições e da própria concepção de democracia, ademais da violação de direitos constitucionalmente protegidos e de princípios elementares do Estado de Direito, especialmente a dignidade da pessoa humana, os direitos de personalidade, a autodeterminação informativa, o livre desenvolvimento da personalidade, a proteção de dados pessoais e as liberdades individuais.

O tecnoautoritarismo, por sua vez, não se manifesta apenas mediante a hiperconexão, mas também abarca outros elementos que o caracterizam, como é o caso da desinformação, da exclusão digital, da concentração de poder informacional, do vigilantismo, apenas para citar alguns dos mais relevantes.

Fenômenos entrelaçados

O outro fenômeno referido acima, o “capitalismo de vigilância”, conceito introduzido por Shoshana Zuboff [7], por sua vez, reivindica de maneira unilateral, especialmente pelas big techs, a experiência humana como matéria-prima gratuita para então traduzi-la em dados comportamentais. Significa dizer, trata-se de uma forma de organização social na qual os dados são monetizados com o objetivo de prever e influenciar comportamentos. Assim, segundo a autora norte-americana, processos de máquina automatizados não só conhecem nosso comportamento, como também moldam nosso comportamento [8].

O tecnoautoritarismo e o capitalismo de vigilância são fenômenos que, em primeira linha, são protagonizados, respectivamente, pelo Estado e por atores privados, notadamente – mas não só! – as big techs. No entanto, a partir do momento em que ambos descrevem formas de controle político e social mediados pelo uso de instrumentos tecnológicos, potencializados essencialmente por meio de assimetrias de conhecimento e de poder, passam a se confundir e a se entrelaçar, em especial com relação à falta de transparência, à coleta massiva de dados pessoais, à vigilância algorítmica para identificação de padrões de comportamento e à restrição de liberdades fundamentais.

De mais a mais, se no tecnoautoritarismo o Estado se utiliza de ferramentas tecnológicas, especialmente as tecnologias da informação e comunicação (TICs), para afirmar e fortalecer seu poder e sua autoridade, o fato é que as big techs desempenham papel fundamental na consolidação do tecnoautoritarismo estatal, seja como fornecedoras das tecnologias de controle, como parceiras do Estado, ou como fornecedoras da imensurável quantidade de dados por elas coletados e centralizados.

Por sua vez, as grandes empresas produtoras de tecnologia, levando em conta a massiva quantidade de dados/informações das quais dispõem e da enorme capacidade de monitorar e influenciar indivíduos, coletividades, mas também Estados, não deixam de ser também partícipes, no sentido de coadjuvantes, do fenômeno tecnoautoritário.

Sendo os dados pessoais a matéria-prima da economia de vigilância, tanto o Estado quanto os poderes privados deles se alimentam, o que se torna mais evidente e perigoso, quanto mais as pessoas permanecem conectadas à internet, expondo seus hábitos, gostos e opiniões, o que, como visto, ao mesmo tempo em que fornece elementos de controle e vigilância ao Estado, fornece elementos de poder e lucratividade às empresas. Trata-se de fatores que se entrelaçam e se retroalimentam, fortalecendo-se reciprocamente.

Como consequência, há que dar razão a quem tem denunciado que a sociedade e o capitalismo de vigilância transformou os cidadãos em usuários e titulares de dados [9], ainda que o problema do tecnoautoritarismo não se restrinja a tal situação, tampouco sendo privilégio de um sistema capitalista.

A relação entre hiperconexão e tecnoautoritarismo, por seu turno, remete a uma pelo menos aparente contradição, visto que em princípio, maior tempo de conexão sugere um cogente aumento dos níveis de controle social, de tal sorte que quanto maior e melhor o acesso à internet, mais fortalecido restará o tecnoautoritarismo.

Levando em conta que o acesso à internet se tornou um fator essencial de inserção social, econômica, política e cultural, além de um elemento crucial ao desenvolvimento, tratando-se inclusive de um direito humano e fundamental, a solução não está em reduzir o acesso, mas sim, em garantir que o mesmo se dê de modo inclusivo, responsável, bem orientado e isonômico, o que, por sua vez, pressupõe níveis adequados de capacitação digital e de educação em termos gerais, ademais de consistentes investimentos por parte do Estado e da sociedade, num regime de responsabilidade compartilhada.]

Sobre os autores

Fonte: ConJur

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Referências

DATA REPORTALDigital 2024 Global Overview Report. Disponível aqui.

DATA REPORTAL. Digital 2022 Global Overview Report. Disponível aqui.

SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Tecno-autoritarismo, tecno-fascismo societal, democracia e proteção de dados. Consultor Jurídico – ConJur, 15 de abril de 2024. Disponível aqui.

SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Tecno autoritarismo, democracia e regulação das redes sociais. Consultor Jurídico – ConJur, 13 de novembro de 2022. Disponível aqui.

VÉLIZ, Carissa. Privacidade é Poder: por que e como você deveria retomar o controle de seus dados. Samuel Oliveira (Trad.). São Paulo: Contracorrente, 2021.

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo da Vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. George Schlesinger (Trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

[1] DATA REPORTALDigital 2024 Global Overview Report. Disponível aqui.

[2] DATA REPORTAL. Digital 2022 Global Overview Report. Disponível aqui.

[3]    DATA REPORTALDigital 2024 Global Overview Report. Disponível aqui.

[4]    DATA REPORTALDigital 2024 Global Overview Report. Disponível aqui.

[5]    SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Tecno-autoritarismo, tecno-fascismo societal, democracia e proteção de dados. Consultor Jurídico – ConJur, 15 de abril de 2024. Disponível aqui.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Tecno autoritarismo, democracia e regulação das redes sociais. Consultor Jurídico – ConJur, 13 de novembro de 2022. Disponível aqui.

[7] ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo da Vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. George Schlesinger (Trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, p. 18.

[8] ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo da Vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. George Schlesinger (Trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, p. 23.

[9] VÉLIZ, Carissa. Privacidade é Poder: por que e como você deveria retomar o controle de seus dados. Samuel Oliveira (Trad.). São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 23.

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