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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Execução penal, falta grave e proporcionalidade: por uma melhor equação

Ingo Wolfgang Sarlet
14/04/2025
Temática que, pelo menos em regra, parece ter passado ao largo da doutrina, mas que se verifica ser de alta relevância no dia a dia forense, é a que envolve a possibilidade, ou não, da aplicação dos critérios do teste de proporcionalidade na seara da execução penal, mais especificamente quando em jogo os consectários legais em face do reconhecimento de falta grave.
As razões para tal lacuna são desconhecidas — embora os já mais de 40 anos da Lei nº 7.210/1984, mas é possível ao menos cogitar da aparente falta de sofisticação ou verniz teorético da matéria, o que a torna quiçá menos atrativa ao meio acadêmico, ou mesmo, quem sabe, o habitual manto de invisibilidade (espécie de coração trevoso do sistema penal) que envolve todos aqueles jogados nas prisões brasileiras, já desde a prisão provisória, mas em especial após a condenação.
Seja como for, o fato é que uma ainda que fugaz mirada sobre a jurisprudência, destaque para a práxis decisória do Superior Tribunal de Justiça, que evidentemente encontra ressonância nas instâncias ordinárias (e vice e versa), revela que, por mais que possa soar curioso, a orientação que parece predominar no Tribunal da Cidadania é a de que o princípio da proporcionalidade e a execução penal, em especial no que diz respeito à aplicação dos consectários legais da apuração da prática de falta grave pelo apenado, não devem dialogar.
Dito de outro modo, o reconhecimento da falta grave e a aplicação de suas consequências, como é o caso da regressão de regime e da perda dos dias remidos, não pode ser aferido e eventualmente modulado e flexibilizado à luz das exigências do princípio da proporcionalidade. Simples assim… Mesmo em pleno andamento do “Pena Justa”, decorrente da ADPF nº 347 [1]?
Segundo a jurisprudência dominante em ambas as turmas do STJ, reconhecida a falta grave, a aplicação dos consectários legais constitui medida impositiva a ser adotada pelo juízo da execução, não podendo ser invocado o princípio da proporcionalidade para afastar a incidência de determinada consequência, conforme indica, em caráter ilustrativo, o julgado abaixo:
“DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PENAL. RECURSO ESPECIAL. COMETIMENTO DE NOVO DELITO DURANTE O CUMPRIMENTO DE PENA. RECONHECIMENTO DE FALTA GRAVE. CONSECTÁRIOS LEGAIS. NECESSIDADE DE REGRESSÃO DE REGIME E APLICAÇÃO COMPLETA DAS SANÇÕES. PROVIMENTO DO RECURSO. I. CASO EM EXAME
(…) II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO
2. Há duas questões em discussão: (i) determinar se o reconhecimento de falta grave em execução penal pelo cometimento de novo delito exige necessariamente a aplicação dos consectários legais, inclusive a regressão de regime; e (ii) verificar se o princípio da proporcionalidade pode ser invocado para afastar a regressão de regime prisional em casos de falta grave. III. RAZÕES DE DECIDIR
3. A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que o reconhecimento de falta grave, nos termos do art. 52 da Lei de Execução Penal (LEP), implica a aplicação obrigatória de seus consectários legais, incluindo a regressão de regime, a alteração da data-base e a perda dos dias remidos, não sendo possível afastar essas sanções com base no princípio da proporcionalidade.
(…) 6. O STJ reitera que o Tribunal de origem não pode deixar de aplicar a regressão de regime, sob pena de desconsiderar o comando normativo da LEP e frustrar a função disciplinar e ressocializadora da execução penal (…).” (REsp n. 2.156.460/RS, relatora ministra Daniela Teixeira, 5ª Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024.)
O entendimento acerca da necessária imposição da perda dos dias remidos e da alteração da data-base para a progressão de regime foi consolidado pela 3ª Sessão do STJ, no julgamento, em 28/3/2012, dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.176/486/SP, relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 3ª Seção do STJ, cuja ementa aqui se transcreve na parte indispensável à compreensão da matéria:
“(…). 1. O cometimento de falta grave pelo sentenciado no curso da execução da pena, nos termos do art. 127 da Lei 7.210/84, implica a perda integral dos dias remidos pelo trabalho [2], além de nova fixação da data base para concessão de benefícios, exceto livramento condicional e comutação da pena; se assim não fosse, ao custodiado em regime fechado que comete falta grave não se aplicaria sanção em decorrência dessa, o que seria um estímulo ao cometimento de infrações no decorrer da execução. 2. Referido entendimento não traduz ofensa aos princípios do direito adquirido, da coisa julgada, da individualização da pena ou da dignidade da pessoa humana. Precedentes do STF e do STJ (…).”
Todavia, embora se trate de um caso isolado, é de se colacionar julgado de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz:
“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E ESTELIONATO. MÃE DE CRIANÇA MENOR DE 12 ANOS. SUBSTITUIÇÃO POR PRISÃO DOMICILIAR. CABIMENTO. DELITO PRATICADO SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA. AUSÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIA EXCEPCIONALÍSSIMA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. No regime aberto, o descumprimento das condições impostas à execução da pena é considerado falta grave, o que, a princípio, justificaria a regressão de regime. Entretanto, excepcionalmente, deve ser mitigada a interpretação do art. 118 da LEP à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O bom senso indica que encarcerar a paciente, neste momento, frustraria a própria finalidade da execução penal (…).” (AgRg no HC nº 906.951/SP, julgado em 23/10/2024).
Jurisprudência do Supremo e inexistência de precedente
O STF, por sua vez, não possui, ao que parece, um entendimento pacificado acerca do tema, havendo decisões em ambos os sentidos. Mantendo o entendimento dominante no STJ, colaciona-se, em caráter ilustrativo, decisão monocrática proferida no HC nº 163.560, julgado em 14/12/2018, pelo ministro Alexandre de Morais, entendendo que a regressão de regime é decorrência legal necessária e imediata da prática de falta grave.
Já se posicionando em favor da possibilidade de incidência do princípio da proporcionalidade, calha referir o Recurso Extraordinário com Agravo 1.130.293, no bojo do qual o ministro Gilmar Mendes negou seguimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra decisão que não reconheceu a falta grave, justamente por conta da desproporcionalidade das repercussões. De acordo com o que já deflui da ementa,
“(…). A homologação do PAD não enseja o automático reconhecimento da falta grave. As severas repercussões impostas na execução da pena não se mostram proporcionais se cotejadas à situação fática posta em juízo. 2. No caso dos autos, o apenado discutiu com outro preso. Não se apresenta como proporcional a aplicação de sanções, mormente porque aplicadas na seara administrativa, suficientes para repreensão da falta (…)”
Outro ponto a destacar, nesse contexto, é que o STF, em relação, especificamente, à perda dos dias remidos, já reconheceu a constitucionalidade do artigo 127 da LEP, com base no argumento de que a nova redação do referido dispositivo legal, que limita a perda dos dias remidos à fração de 1/3, não viola o princípio da individualização da pena e/ou a proporcionalidade. (STF. Plenário. RE 1.116.485/RS, rel. min. Luiz Fux, julgado em 1/3/2023 (Repercussão Geral – Tema 477, Info 1.084).
Note-se, antes de avançar, que inexiste precedente vinculante, seja do STJ, seja do STF, a chancelar a impossibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade nos casos de falta grave. Aliás, ainda que esse fosse o caso, embora vinculados estivessem todos os juízes e tribunais das instâncias ordinárias, isso não teria o condão de impedir um juízo crítico na perspectiva acadêmica ou pela ótica da opinião pública/consciência jurídica geral (Larenz), tampouco a superação de tal orientação mediante recurso ao Supremo Tribunal Federal.
Ausência da proporcionalidade e reino da injustiça
Nessa toada, o que aqui se sustenta é a inexistência de razões juridicamente sólidas que possam justificar, com a devida vênia do que tem decidido majoritariamente o STJ, o afastamento da incidência do teste de proporcionalidade no caso da avaliação, em concreto, dos resultados da aplicação automática dos consectários legais na esfera jurisdicional decorrentes do reconhecimento de falta grave em sede de execução penal. Aliás, o mesmo deveria valer para a seara administrativa, posto que ninguém seriamente cogita da subtração do direito administrativo sancionador às exigências da proporcionalidade.
Soma-se a isso, o fato de que o princípio da proporcionalidade iniciou a sua trajetória no Direito Administrativo, no que diz respeito ao exercício do poder de polícia. De lá para cá, em especial desde o Segundo Pós-Guerra, consolidou a sua carreira, a despeito de todas as críticas que lhe têm sido endereçadas, no Direito Constitucional, designadamente como parâmetro para o controle material da legitimidade constitucional de intervenções restritivas (legislativas, administrativas e judiciais) no âmbito de proteção de direitos fundamentais.
Cuida-se, ademais de uma exigência nuclear de qualquer Estado Democrático de Direito que mereça ostentar tal título, visto que a aplicação das exigências da proporcionalidade é frontalmente oposta à lógica de que os fins justificam os meios. Trata-se, portanto, de um princípio geral de Direito, incabível, assim, a criação de uma esfera livre de sua incidência, mormente quando em jogo o direito à liberdade pessoal. A sua não aplicação, por outro lado, gera um estado de iniquidade adicional na perspectiva relacional [3], porquanto, em situações em que o impacto sobre direitos e garantias fundamentais é inclusive menor, o teste de proporcionalizado constitui parte do dia a dia da atividade jurisdicional.
Nessa toada, é de ressaltar que a desconsideração das circunstâncias de cada caso, da singularidade do substrato de vida a julgar, seja no que diz respeito à aplicação das consequências (sanções) associadas à prática de falta grave, seja no que concerne ao seu próprio reconhecimento, acaba, ao fim e ao cabo, sendo manifestamente invasiva do direito fundamental implícito à ressocialização do apenado, reconhecido reiteradamente pelo STF há mais de 15 anos. Aliás, às vezes, delibamos o próprio princípio da humanidade das penas (Constituição, artigo 5º, III, XLVII, XLIX).
Em suma, o efeito de irradiação de tais normas constitucionais recomenda leitura mais empática do quadro legal. Veja-se que o artigo 118 da LEP não exige, literalmente, regressão, pois trata-se de uma sujeição à forma regressiva, não de inexorabilidade [4]. Na aplicação das sanções [5], a LEP determina, ao revés, que se considerem uma série de fatores, o que se estende às faltas graves (sanções disciplinares), parecendo pouco harmonizável com a adscrição, em bloco e automática, de um pacote de efeitos deletérios pra toda e qualquer conduta que se enquadre formalmente na previsão legal [6].
Basta pensar numa fuga, que pode ser espetaculoso e arriscadíssimo ato, envolvendo até violência, permanecendo o sujeito anos foragido, ou não passar de afastamento, por minutos e metros, da zona de monitoramento eletrônico. Ou na prática de crime doloso, que varia de um latrocínio até a posse, para consumo pessoal, de pequena quantidade de droga. Ou ainda, na abertura semântica da falta, bastará “desrespeitar” qualquer pessoa com que deva se relacionar, para atrair as iras sancionatórias, é dizer, imprecar, olhar feio, demorar para atender uma ordem, tais incivilidades, assim interpretadas, equivalem a incitar ou participar de motim [7].
Por tudo isso, reitera-se o entendimento no sentido da suficiência das sanções administrativas para faltas graves de menor relevância e de menor impacto no cumprimento da pena. Dito de outro modo, a ausência da proporcionalidade, e, ao fim e ao cabo, da justa medida, implicará a transformação da execução penal em microssistema passível de transformar-se em reino da injustiça.
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- O STF e a proteção dos dados pessoais
- O início do julgamento da ADI 5.728/DF e a (in)constitucionalidade da EC 96/2017 (Vaquejada)
- Acordo de Paris, proibição de retrocesso e dever de progressividade
NOTAS
[1] Dentre as diretivas do julgamento, no item 3 constou exortação par que “juízes e tribunais levem em conta o quadro do sistema penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante a execução penal”.
[2] (…) 3. Quanto à perda dos dias remidos, com o advento da Lei n. 12.433, de 29 de junho de 2011, que alterou a redação do art. 127 da Lei n. 7.210/1984, a prática de falta grave no curso da execução implica em perda de até 1/3 (um terço) desses dias, devendo o Juízo das Execuções aplicar a fração cabível à espécie, de forma devidamente fundamentada, sendo a perda dos dias remidos medida impositiva, ficando no juízo de discricionariedade do Julgador circunscrito à fração da perda. Precedentes do STJ. (…) – (REsp n. 1.960.812/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 14/12/2021, DJe de 17/12/2021.)
[3] Bem de ver, uma questão de prudência como vetor jurisdicional, nos termos do Código de Ética da Magistratura Nacional (CNJ, 2018): Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável. Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.
[4] Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave.
[5] Art. 57. Na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003) Parágrafo único. Nas faltas graves, aplicam-se as sanções previstas nos incisos III a V do art. 53 desta Lei.
[6] a) Regressão de regime (artigo 118, inciso I, da LEP); b) Perda de até 1/3 dos dias remidos (artigo 127 da LEP); c) Perda do direito à saída temporária (artigo 125 da LEP); d) Alteração da data base para a obtenção de progressão de regime (artigo 112, § 6º, da LEP); e) Revogação da monitoração eletrônica (artigo 146-D, inciso II, da LEP); f) Perda do direito à progressão de regime com cumprimento de 1/8 da pena para apenada mulher (artigo 112, § 4º, da LEP); g) Perda do direito à obtenção do livramento condicional, caso a falta tenha sido praticada nos últimos 12 meses (artigo 83, inciso III, “b”, do Código Penal).
[7] Confiram-se os seguintes artigos da LEP: 50, I e II; 51, III; 39, II e V.