GENJURÍDICO
Dignidade da pessoa humana, paternalismo jurídico e os limites da proteção da pessoa contra si mesma

32

Ínicio

>

Artigos

>

Direitos Humanos e Fundamentais

ARTIGOS

DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

Dignidade da pessoa humana, paternalismo jurídico e os limites da proteção da pessoa contra si mesma

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

PATERNALISMO JURÍDICO

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

14/07/2025

A questão em torno do assim chamado paternalismo jurídico e da sua relação com a dignidade da pessoa humana, e o correlato problema da proteção da pessoa contra si mesma, certamente não é nova e tem sido objeto de reiterada reflexão e mesmo acirrada controvérsia, em especial na esfera da Filosofia e do Direito. Mais especificamente no que concerne ao mundo do Direito, o problema se manifesta nas mais diversas searas, como, por exemplo, no que diz respeito aos níveis legítimos de tutela/proteção das pessoas em determinados contextos em relação às suas próprias decisões e opções.

Particularmente delicado, é o desafio de manter o adequado equilíbrio entre o que se pode designar de dignidade da pessoa humana na perspectiva do próprio indivíduo que se submete a determinada situação, como, em caráter meramente exemplificativo, no âmbito de uma relação contratual de subordinação, da prática de esportes radicais e de alto risco, do consumo de entorpecentes, jogos de azar, etc., e aquilo que viola a dignidade na ótica de terceiros ou mesmo do Estado.

Aliás, um caso emblemático, dada a sua ampla repercussão em escala mundial, bem ilustra a questão central que ora se busca, ainda que de modo sumário e geral, apresentar e discutir. Cuida-se do polêmico julgamento do Conselho de Estado da França, de 27/10/1995, que considerou correta a decisão do prefeito da comuna de Morsang-sur-Orge, ao determinar a interdição de estabelecimento (casa de diversão) que promovia espetáculos nos quais os espectadores eram convidados a lançar um anão o mais longe possível, de um lado a outro do estabelecimento. Para o Conselho de Estado – que reformou a decisão do Tribunal Administrativo que havia anulado a medida do Poder Executivo local – esses “campeonatos de anões” não poderiam ser tolerados, por constituírem ofensa à dignidade da pessoa humana, considerando esta (pela primeira vez no direito francês) como elemento integrante da ordem pública, sendo irrelevante a voluntária (frise-se) participação dos anões no espetáculo, já que a dignidade constitui bem fora do comércio e é irrenunciável.

Tal exemplo, também evidencia a dupla dimensão (função) do princípio da dignidade da pessoa como limite e tarefa, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação [1].

Tal concepção guarda sinergia (conquanto não se trate exatamente e em toda extensão da mesma coisa) com a doutrina de Ronald Dworkin, que, demonstrando a dificuldade de se explicar um direito a tratamento com dignidade daqueles que, dadas as circunstâncias (como ocorre nos casos de demência e das situações nas quais as pessoas já não logram sequer reconhecer insultos a sua autoestima ou quando já perderam completamente sua capacidade de autodeterminação), ainda assim devem receber um tratamento digno [2]. Dworkin, portanto, parte do pressuposto de que a dignidade possui “tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambas encontram-se conectadas”, de tal sorte que é no valor intrínseco (na “santidade e inviolabilidade”) da vida humana, de todo e qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada [3]. O próprio Dworkin, por sua vez, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de Kant, ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim, que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva de suas próprias vidas [4].

Ainda nesta perspectiva, já se apontou para o fato de que o desempenho das funções sociais em geral se encontra vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro [5].

A temática, por sua vez, guarda direta relação com o problema do assim chamado paternalismo jurídico e seus limites, em especial o quanto se justifica, na perspectiva jurídico-constitucional, a proteção da pessoa contra si mesma. Nesse contexto, o que está em causa, não raras vezes, tal como observa Fabio Cesar dos Santos Oliveira, é achar uma justificativa quando uma “intervenção feita dificultar, não permitir, substituir ou proibir a decisão tomada pelo indivíduo, ou nos meios escolhidos para a perseguição de determinada finalidade, por considerar que a escolha efetuada por ele não é aquela que melhor promove o seu bem estar”[6].

Aqui calha invocar a advertência de José María Porras Ramírez, ao tratar de uma prática espúria da utilização genérica da proteção da dignidade humana como limitador da liberdade individual, em nome de uma moral social ou coletiva, de forma a, com recurso ao princípio, suprimir a ausência de limites legais expressos [7].

À luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem como considerando os entendimentos já colacionados em caráter exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa). Nesta mesma linha de entendimento, Gomes Canotilho refere que o princípio material que subjaz à noção de dignidade da pessoa humana consubstancia-se “no princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plastes et fictor)”[8].

O tema da autonomia individual, núcleo da dignidade humana, foi central em um dos julgamentos mais momentosos da história do STF, o Recurso Extraordinário 635.659/SP, no qual se decidiu pela “declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, para afastar a repercussão criminal do dispositivo em relação ao porte de cannabis sativa para uso pessoal”.

Desafio está em achar equilíbrio entre paternalismo e autodeterminação

Por ocasião do referido julgamento, o ministro Edson Fachin, invocando doutrina de Carlos Santiago Nino, pontuou que em geral são três os principais argumentos utilizados para punir o consumo pessoal de drogas: (1) um perfeccionista; (2) um paternalista; e, por fim (3) um argumento de defesa da sociedade. O argumento perfeccionista “busca impor um padrão de conduta individual aos cidadãos, estabelecendo, assim, de forma apriorística um modelo de moral privada, individual, que se julga digno e adequado”. O argumento paternalista, por sua vez, busca “proteger as pessoas contra os danos que o consumo de drogas pode causar a elas” [9]. O terceiro argumento, pautado na defesa da sociedade, baseia-se “na proteção dos demais cidadãos (incluída aí a família como instituição) que podem sofrer os efeitos ou consequências dos atos de quem usa drogas”.

Arremata o Ministro Fachin, sintetizando o argumento de Nino: “criminalizar o porte de droga para consumo próprio representa a imposição de um padrão moral individual que significa uma proteção excessiva que, ao fim e ao cabo, não protege e nem previne que o sujeito se drogue (correspondendo a um paternalismo indevido e ineficaz) e, por fim, significa uma falsa proteção da sociedade, dado que já há respostas penais previstas para as eventuais condutas ofensivas que o consumidor de drogas possa realizar.”

Conforme define Gerald Dworkin na Stanford Encyclopedia of Philosophy, “paternalismo é a interferência de um Estado ou indivíduo em relação a outra pessoa, contra a vontade desta, e defendida ou motivada pela afirmação de que a pessoa que sofre a interferência ficará em uma situação melhor ou será protegida de dano” [10]. Jörg Neuner, partindo da definição de Gerald Dworkin, aborda o paternalismo sob o ângulo jurídico. Segundo o catedrático alemão, “analisando-se essa definição do ponto de vista jurídico, percebe-se que a primeira característica, “interferência contra a vontade”, implica uma intervenção contra a vontade da pessoa afetada. Se o Estado restringe a liberdade de seus cidadãos dessa maneira, os direitos fundamentais intervêm em sua função de direitos de defesa [11].

Prossegue Neuner, tratando sobre um dos argumentos típicos utilizados para justificar intervenções paternalistas, qual seja, o das restrições endógenas aos indivíduos, isto é, os déficits cognitivos ou de racionalidade próprios da pessoa. Inferências normativas ficam por conta do legislador, que, no marco de sua margem de ação, pode decidir se e até que ponto intervirá no caso de restrições endógenas. O instrumentário protetivo de estende de meros deveres de prestar informações, passando por exigências formais e direitos de revogação, até normas coercivas. A ação do legislador é limitada principalmente pelo princípio da proporcionalidade, de modo que o respectivo instrumentário protetivo precisa ser apropriado para o fim que visa alcançar. […] Por isso, deve-se escolher o meio de intervenção mais brando em cada caso, ou seja, tanto quanto possível, apenas subsídios para fazer escolher (deveres de prestar informações, etc.) em lugar de proibições rigorosas de escolha.

Por evidente que o direito à autodeterminação (como expressão da “voz ativa” da dignidade da pessoa humana), não é insuscetível a restrições. Na tarefa de avaliar eventuais limitadores tal direito, Fábio Cesar dos Santos Oliveira sugere que devem ser observados “aspectos pertinentes ao objeto sobre o qual recai a decisão, tendo-se em vista a sua repercussão negativa sobre o indivíduo e a irreversibilidade da escolha feita, e as condições pessoais do sujeito, a fim de que a expressão de sua vontade seja potencialmente o resultado de uma deliberação racional, independente de coerção e pressões externas irresistíveis” [12].

O desafio, portanto, voltando aqui ao ponto de partida, está em achar um equilíbrio entre intervenções de cunho eminentemente paternalista, em que pese prenhes de boas intenções, e o manejo consciente, responsável e informado do direito à autodeterminação por parte de pessoas não manifestamente vulneráveis, sob pena de, ao invés de se proteger a dignidade da pessoa humana, se correr o risco de a violar.  O fato de não se tratar de uma tarefa fácil não pode ser visto como uma justificativa para a omissão em relação ao problema e de toda a miríade de desafios a ele relacionados.

Fonte: Conjur

CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DO AUTOR

LEIA TAMBÉM

[1] Cf. KOPPERNOCK, Martin. Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, Baden-Baden: Nomos, 1997, p. 18-20.

[2] Cf. DWORKIN, Ronald. El dominio de la vidaUna discusión acerca del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998, p. 306-7.

[3] Cf. DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida, op. cit., p. 307-9.

[4] Cf. DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida, op. cit., p. 310.

[5] Cf. NEUMANN, Ulfried. “Die Tyrannei der Würde”, in: ARSP 84 (1998), p. 161.

[6] OLIVEIRA, Fábio César dos Santos. A proteção da pessoa contra si mesma? Liberdade, autonomia e paternalismo. Belo Horizonte: Forum, p. 70-71 (e-book).

[7] PORRAS, José Maria Ramirez. Eficacia jurídica del principio constitucional de la dignidad de la persona. Anuário de Derecho Eclesiástico del Estado, vol. XXXIV, 2018, p. 220 e 222).

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra: Almedina, p. 219.

[9] Segue o Ministro Fachin em seu voto: “No caso do consumo de drogas, proteger o cidadão dos males causados pelo consumo de drogas necessita exigir uma resposta informativa, com campanhas educativas e de prevenção, criação e execução de políticas públicas de atenção e cuidado com a saúde daqueles que fazem uso abusivo de drogas, estabelecer medidas que desalentem o consumo de drogas, mas, segundo o autor, nunca a reprovação penal pela conduta autodestrutiva do cidadão (NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos: un ensayo de fundamentación. Buenos Aires: Ariel, 1989. p. 431-432). À ilicitude se dirigem sanções, não necessariamente penais.”

[10] Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/paternalism/. No original: “Paternalism is the interference of a state or an individual with another person, against their will, and defended or motivated by a claim that the person interfered with will be better off or protected from harm”.

[11] NEUNER, Jörg. Paternalismo no Direito Privado. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 15, n. 44, jan./jun. 2021, p. 52-53.

[12] OLIVEIRA, Fábio César dos Santos. A proteção da pessoa contra si mesma? Liberdade, autonomia e paternalismo, op. cit., p. 344.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA