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CLÁSSICOS FORENSE
DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
REVISTA FORENSE
As garantias individuais como limite ao arbítrio da repressão penal, de Alcino Pinto Falcão

Revista Forense
07/07/2025
* Vir aqui a falar-vos sôbre as garantias individuais como limite ao arbítrio da repressão penal – eis o convite a que acedi. Mas confesso e proclamo que vir até o vosso meio, comparecer a esta generosa terra sulina, se é sempre um prazer e uma honra, nem por isso deixa de ser temeridade, se o objetivo fôr o que no caso é: falar perante um seleto auditório e falar sôbre o nosso tema. Vir aqui a falar numa terra em que sempre houve cópia dos melhores oradores brasileiros? Falar sôbre garantias individuais, numa terra em que o sentimento de liberdade não se traduz em palavras, mas antes está gravado em páginas históricas, escrito com o rubro do sangue dos muitos que séculos afora preferiram morrer lutando, antes do que se submeterem à opressão?
Enfim, ordenastes, e vim. A desilusão que tiverdes a mim não deveis carregar; apenas me curvei ao que me foi intimado. Mas se não me iludo quanto à minha insuficiência, também não quero iludir-vos; não espereis que busque fazer uma substanciosa dissertação erudita, ou que pretenda vencer a minha inópia com o uso de saberetes e trapaças espirituais, ostentando uma falsa riqueza que não possuo. Nada disso: venho simplesmente a palestrar, fiado na vossa tolerância…
*
Meus senhores e senhoras: falar o que, a vós, dentro do assunto eleito?
Lembrar casos que, lamentàvelmente algures e alhures, no nosso País e noutros das mais diversas civilizações e épocas, sempre houve de agentes da repressão penal praticantes de violências físicas não autorizadas pelo direito vigente, além de ser isso recordar monòtonamente o que é de conhecimento geral, seria fugir ao nosso tema. Não vim aqui tratar da inquisição das masmorras, pois ai se estaria apenas ventilando matéria aparentada, mas não tècnicamente incluível no tema da nossa palestra. O procedimento arbitrário, contra o que dispuser a lei vigente, de um agente da autoridade, não será, pois, objeto da nossa palestra; aí, estaríamos frente a casos de prática de crimes comuns e o direito ordinário é que estaria sendo violado.
O que cai dentro do nosso tema é coisa diversa e mais alta, isto é, a indagação de práticas que o legislador não pode autorizar, por serem inconciliáveis com as garantias individuais tutelares da personalidade humana. Ou, em outras palavras, o problema resultante de uma possível lei arbitrária, que despreze ou viole as liberdades inerentes à qualidade de homem. Ou, ainda, o da lei que venha a admitir o uso de meios técnicos e também de métodos intelectuais, uns e outros excursionando em terreno vedado pela garantia individual que cobre os domínios da personalidade humana.
*
Não é, infelizmente, uma realidade longe estarem de nós ameaças de um recuo no campo das garantias individuais clássicas, conseguidas através de uma história dolorosa e que nosso mundo ocidental veio a proclamar como impostergáveis no que toca ao homem frente ao direito repressivo do Estado. Ao contrário, essas ameaças existem, mesmo porque no genérico a própria totalidade dêsses direitos individuais não tem a necessária solidez em face das crescentes investidas do poder público. Com razão, o professor HEINRICH KIPP, na contribuição que ofereceu em Limburg, em 1951 (“Die Menschenrechte in christlicher Sicht”, Freiburg, 1953, pág. 20), por ocasião da reunião então realizada pela Pax Romana, isto é, pelo Movimento Internacional dos intelectuais católicos, com exatidão então sublinhou o catedrático de Bonn, que o patos que se esconde atrás da expressão direitos do homem reside principalmente em que a locução nos dias que correm quer significar direitos do homem frente ao Estado e no entanto é êste que nos tempos modernos de novo os ameaça. Em outras palavras: o Estado se apresenta vigilante para que um cidadão não viole os direitos fundamentais dos outros, mas não se mostra com idêntica disposição para observá-los…
A nós, no momento, interessa ver como e quando a lei, em referência à repressão penal, pode ser tida como violadora do direito fundamental, de liberdade, que cobre não só a incolumidade, como também a dignidade do homem objeto da repressão penal.
Poderá falar-se, a respeito, de uma lei arbitrária? RUI BARBOSA, em famosa oração (“Diário do Congresso” de 13 de dezembro de 1904), pôs o problema em têrmos objetivos, dizendo que a lei pode ir até à pele do indivíduo, mas não transpô-la: assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme. Uma envolve a região moral do pensamento; a outra, a região fisiológica do organismo. Dessas duas regiões se forma o domínio impenetrável da nossa personalidade.
Mas é justamente nessa região moral do pensamento que surgem ameaças mais flagrantes, oriundas de progressos da técnica. E aí cabe indagar se a lei que admitisse o emprêgo de tais novos expedientes seria ou não arbitrária; tais processos, em última análise, destinam-se a devassar a região moral do pensamento e, isso, colocando o acusado em situação de não poder governar as próprias palavras, levando-o a devassar o fundo da alma apesar de não ter essa intenção. São os novos processos técnicos, pára se extorquirem confissões sem dor…
Há uma multidão dêsses processos a serem enumerados. É o recurso do hipnotismo, que a Justiça francesa já teve ocasião de profligar, segundo informa DONNEDIEU DE VABRES (“Traité”, edição de 1943, pág. 638). Serão, também, o esfigmógrafo, o polígrafo ou gravadorde mentiras, a psicologia das côres na sala dos espelhos e, pior do que tudo isso, o sôro da verdade.
Como sub-rogados dos antigos métodos com dor, a técnica agora oferece êsses novos, indolores, mas mais eficazes.
Sem dúvida, nossas leis ordinárias não previram êsses meios investigatórios e seu uso, entre nós, será criminoso, constituirá violência arbitrária, punível por fôrça do inc. III do art. 350 do nosso Código Penal.
Mas, se amanhã o desvario legislativo entre nós viesse a permitir o emprêgo de tais métodos e substâncias mágicas, não tenho dúvida em que ao menos a nobre classe dos advogados haveria de protestar enèrgicamente, considerando essa inovação legislativa como violadora do direito de defesa, como contrastante com a garantia individual da liberdade. Outra atitude não seria compatível com a alta missão de guardiã do direito e não seria, aliás, novidade: o ilustre Conselho da Ordem dos Advogados de Paris, em 1948 (veja-se: “Gazette du Palais”, de 23 de julho de 1948), formulou, sem demora, enérgico protesto ao ser divulgada a notícia de que o Tribunal Correcional do Sena havia absolvido um perito criminal, que dera uma picada de sôro da verdade num indiciado, para verificar estar o mesmo simulando. Os advogados de Paris não se conformaram com êsse julgado, apesar de o mesmo, num de seus, consideranda, haver sustentado que o paciente não sofrera qualquer dor ou prejuízo na sua saúde e, mais, que havia consentido em levar a picada.
Penso que tôda a razão tiveram os advogados no seu protesto. Êsses processos, na verdade, nenhuma segurança oferecem, como bem acentuou, faz uma dezena de anos, o professor J. GRAVEN, um dos mais eminentes catedráticos suíços, na sua contribuição para a coletânea “Droit et Verité”, vinda à luz em Genebra em 1948, quando deu especial ênfase a que essas novidades dão margem apenas a …une frénésie d’aveux et d’auto-accusations spontanées, en apparence… Confissões e auto-acusações espontâneas, mas só em aparência…
Certo, então se afirmou que o indiciado havia consentido; mas seria livre e espontâneo o consentimento de um prêso? Dúvidas logo ocorrem ao espírito… Mas, – minhas senhoras e meus senhores, – não há necessidade de formular tais dúvidas, para impugnar a experiência. É que aí, nesse terreno, qualquer consentimento é juridicamente irrelevante, por serem indisponíveis todos os direitos que constituem o conteúdo útil do direito fundamental de liberdade. Os juristas alemães, sempre agudos e profundos nas questões de técnica jurídica, dão uma explicação exata e irrespondível. Assim, por exemplo, o professor GÜNTER DÜRIG, no exaustivo estudo que dedicou ao tema do direito individual da dignidade humana, publicado em “Archiv des öffentlichen Rechts”, ano de 1956, vol. 81, pág. 126, realça o desvalor de qualquer consentimento a respeito do emprêgo da droga indiscreta. E explica êle por que assim: é que a garantia tem em vista o homemabstrato e não o homem concreto, pouco importando por isso mesmo que se trate de insano mental, de menor, de criminoso ou que tenha havido consentimento, pois tudo isso valeria se a garantia tivesse em mira o homem concreto, mas sem relevância jurídica, pois que é o homem abstrato que é tido em conta pela garantia.
Evidentemente, o homem abstrato está em tôda e em nenhuma parte e, por isso mesmo, não poderá nunca consentir.
Tenho como induvidoso que a lei ordinária seria arbitrária e inconstitucional, se viesse a tolerar o uso das substâncias mágicas, a invadir o terreno vedado da mente humana, como diria o nosso RUI BARBOSA. Deixaríamos de estar num regime de liberdade e passaríamos para um de opressão. E, meus senhores, essa é a conclusão a que também chegam os mais recentes constitucionalistas alemães, como os professôres THEODOR MAUNZ (“Deutsches Staatarecht”, ed. de 1954, pág. 88), OTTO KOELLREUTTER (no seu “Deutsches Staatsrecht”, ed. de 1953, pág. 53) e FRIEDRICH GIESE (no seu livro “Grundgesetz”, ed. de 1955, pág. 15, n.º 3).
Mas, minhas senhoras e meus senhores: êsses processos e drogas, que me parecem inconciliáveis com a garantia individual da dignidade do homem abstrato – todos êles têm em comum o objetivo de extrair uma pretensa verdade, sondando o domínio protegido da consciência humana. Mas os progressos da técnica já agora vão mais longe: não se contenta ela com apurar a verdade, mas se propõe a registrar, a gravar a verdade. E, aí, os que trabalham no campo do direito constitucional e no do processo penal deparam outro problema: o vigente Estado de Direito, com o seu regime de garantias individuais, pode admitir o emprêgo de tais processos mecânicos, registradores da verdade?
Refiro-me ao uso dêsses aparelhos que gravam conversas, muitas vêzes telefônicas, à distância e que o aperfeiçoamento fêz com que hoje haja até aparelhos que se levam no bôlso e que registram a conversa de terceiros desprevenidos, sem que êstes o percebam. Entre nós, na Capital da República ao menos, já vi noticiado que um dêsses discos foi produzido em Juízo, fazendo-se o reconhecimento das vozes registradas.
Para mim, êsse pretenso meio de prova é perigoso e tem o grave inconveniente de despersonalizar (permito-me o emprêgo do verbo) as palavras, deturpando-lhes a intenção e esta é que, para os fins penais, é tudo. No direito penal, mais do que nos outros campos do direito, as palavras valem pelo que podem traduzir de intenção. A maneira e a tonalidade como são empregadas só se apuram tendo-se presentes, inclusive, as manifestações faciais. Uma palavra grave poderá não ter expressão alguma se quem a diz estiver, por exemplo, sorrindo. COELHO NETO, na conferência literária sôbre “A palavra”, pronunciada aos 23 de setembro de 1905 no Instituto Nacional de Música, com perfeita exatidão já marcava que o timbre é a expressão externa da palavra. E dizia, então:
“A antipatia ou a simpatia não estão “nas palavras, mas na expressão que se lhes dá. Assim é que a mesma palavra, pronunciada em momentos diversos ou por pessoas diferentes, adquire expressões e quase significações opostas”.
E, sem perceber o problema jurídico que só meio século depois se apresentaria, mas com notável intuição, chamava então de palavra espectro a que surgia do fonógrafo, o avô dos atuais aparelhos aperfeiçoadíssimos a que me referi: E, acrescentava êle:
“Aí a palavra fica como a fixação d’alma, faz-se girar o aparelho e tem-se, muitas vêzes, a impressão saudosa de um túmulo que falasse, uma voz póstuma: a palavra espectro”.
Realmente, para mim nada mais será do que o que já previa COELHO NETO: uma palavra espectro, uma palavra fantasma, uma palavra sombra, sem vida e que não permite, por isso mesmo, apurar a intenção com que foi dita, em grande número de casos ao menos, tudo a mostrar que tal meio de prova deve ser recebido com grandes reservas. É certo que o direito a priori não deve ignorar, nem mesmo impedir, as novas aquisições do progresso, as novas técnicas; mas o princípio não é absoluto, no que toca ao valor das coisas: os técnicos podem considerar o invento como magnífico e o jurista opor-lhe reservas. E, no que tange a tais discos ou fitas, o jurista tem que concordar em que depois de registrada a voz pelo aparelho pode ela de modo fácil ser posteriormente alterada, como faz pouco acentuou, referindo-se ao emprêgo dêsse expediente, o Prof. EBERHARD SCHMIDT, catedrático em Heidelberg (em “Gedächtnisschrift für Walter Jellinek”, 1955, página 625). Mas aqui é fôrça convir: não está em jôgo a garantia individual, por não se enquadrar o uso dêsse processo técnico naquele terreno vedado a que não pode ir a lei, segundo a já mencionada lição de RUI BARBOSA. A proteção do acusado, quanto a êsse processo, fica apenas entregue à prudência e bom senso do juiz.
*
Minhas senhoras e meus senhores: No início desta palestra me referi a processos técnicos que chofrariam a garantia individual e foram tais processos que passei a examinar. Mas também acenei a possíveis processos intelectuais, que não corresponderiam à garantia individual. Fôrça é que diga algumas palavras sôbre isso, pois aqui já se estará em outro terreno, o da aplicação da lei penal.
Desde logo, no que toca a êsse ponto, o jurista se lembra do problema da analogia em direito penal, repelido pelo nosso vigente Cód. Penal, que manteve a nossa tradição. Êsse recurso à analogia, que serviu ao nazismo para concretizar grande número de arbitrariedades, hoje em dia, nos países europeus, ainda é admitido pelo direito soviético e, também, no Reino da Dinamarca. Os demais países civilizados, no Velho Continente, o repelem, fiéis à conquista liberal do princípio da legalidade das incriminações e das penas, que repousa no conhecido nullum erimen sine lege. Tenho como induvidoso que êste princípio, para nós, não poderá vir a ser desprezado pelo legislador ordinário, pois que então sairia ferida a garantia individual da plena defesa, prevista no § 25 do art. 141 da Constituição federal. O princípio faz parte do complexo de postulados tutelares da plena defesa, que pode resumir-se numa trilogia, a saber: o postulado da estrita legalidade das incriminações, o de que a lei seja precisa ao definir o procedimento punível, ambos como pressupostos para que possa haver um regular processo criminal. Ambos êstes postulados de fundo substantivo se entrosam e completam com o outro, de natureza adjetiva, que se traduz no conhecido nulla poena sine praevio processum poenali, que não tolera exceções e que significa que só através do processo penal é que se podem aplicar as penas previstas no catálogo legal dos crimes e contravenções.
Não vou a tomar o vosso tempo, detendo-me sôbre a questão da aplicação analógica da lei penal, pois que isso entre nós não é possível, segundo o parecer por assim dizer unânime das opiniões autorizadas. Limito-me a recordar que o respeito ao postulado nullum crimen sine lege não se justifica apenas por razões sentimentais, de benignidade para com o criminoso; há motivo de ordem técnica, qual o de que o raciocínio por analogia será o do juiz (o juiz saberia que o fato seria criminoso), mas pode não ser o do criminoso (nada nos garantirá de que o criminoso pudesse raciocinar por analogia, que exige finura intelectual) e o que importa, em direito penal, é a intenção do criminoso. E só com arbitrariedade se poderá afiançar que há plena defesa do acusado quando a priori não se poderá afiançar que o acusado fôsse capaz de raciocinar com a mesma facilidade que um técnico, o juiz, que o iria condenar por analogia.
Não desconheço que o postulado clássico pode ser acusado por alguém de ocasionar graves inconvenientes, manietando muitas vêzes as mãos do juiz, com prejuízo da defesa da sociedade. Mas êsse inconveniente é uma contingência suportável, pois é o preço que temos que pagar, para a liberdade de todos nós. De ótimo bom senso e de melhor autoridade a observação que catedrático da Sorbonne, professor M. BASTID pronunciou, no curso de doutorado da Faculdade de Paris, no início do corrente ano (“Cours de droit constitutionnel comparé”, 1957, página 207) e que me permito de repetir: “Leur application peut sans doute comporter parfois des inconvénients, laisser impunis des actes qu’aueune loi n’a visés entemps utile. Mais ces inconvénients sont peu de chose à côté dudanger qu’en entrainérait lasuppression“.
Mas, minhas senhoras e senhores: o espírito de reação, os desamantes das liberdades consignadas nas declarações de direitos, também têm engenho e dificilmente se deixam vencer. Fechada a porta pela proibição expressa de aplicação analógica da lei penal, logo inventaram um expediente para fazer-lhe as vêzes, com maior eficácia talvez. Refiro-me ao método da interpretação da livre pesquisa intra legem, aquilo que os autores suíços denominam de freie Rechtsfindung intra legem e que naquele país, e também entre nós, depara alguns adeptos. Há cinco anos até, um juiz do Reino do Iraque, o Dr. SALIH MAHSOUB, obteve o grau de doutor em direito por uma Universidade suíça, oferecendo uma tese – “La force obligatoire de la loi pénale pour le juge'” – em que escancaradamente investe contra os princípios clássicos, mostrando-se adepto da analogia e, com mais forte razão, se proibida esta, procurando demonstrar dever ser admitida a novidade da freie Rechtsfindung intra legem.
Os adeptos dêsse desvio das concepções clássicas em direito penal pretendem que o novo método não equivalha a recurso à analogia, pois que esta não é método de interpretação, mas processo de formação de direito extra legem e, assim, será de admitir que se busque o sentido de um preceito legal penal, ainda que para amplia-lo além das suas letras, “dentro do sistema orgânico da lei“.
Vou dar exemplo que mostra os resultados diferentes a que se chegará, adotando a lição clássica ou a nova, que não aceitamos. Tiro o exemplo do trabalho interessantíssimo do juiz criminal austríaco,
Dr. WILHELM MALANIUK, sob o título “O Juiz e a lei”, com que enriqueceu a coletânea de ensaios publicada em 1950 em homenagem e por ocasião do septuagésimo quinto aniversário de HEINRICH KLANG.
MALANIUK não aceita a novidade e por isso dá a seguinte solução para a hipótese que formula: no direito austríaco há um artigo de lei agravando a pena para o caso de assalto a um comboio de estrada de ferro; poderá, por interpretação, no silêncio da lei, concluir-se que tal artigo abrange também o assalto a um bonde, a um elétrico citadino? MALANIUK, representando a opinião clássica, afirma que não, por serem de direito estrito as qualificações contidas no texto penal e a tipicidade o proibir. Já para os outros, seria possível fazê-lo, por interpretação, tendo em vista o sistema orgânico da lei e o objetivo pretendido pelo legislador penal.
Para mim, o recurso a êsse expediente não se coaduna com a garantia da plena defesa, a que se refere a nossa Lei Magna. Seria por meio oblíquo chegar aos mesmos resultados que através do recurso à analogia. Aliás, os autores soviéticos, quando defendem o seu direito que admite o recurso à analogia, acusam os ocidentais de hipocrisia, pois que proíbem a analogia, mas acabam por praticá-la, através de interpretações analógicas.
Tenho que o perigo de arbítrio por parte do juiz, quer se permitindo o recurso à analogia, quer se se use o novo método, é o mesmo. O próprio professor suíço, O. A. GERMANN, que é um dos pregoeiros do novo método, num estudo mais recente, sob o título “A proteção da liberdade pessoal no direito penal” (ver, a coletânea “Die Freiheit des Bürgers”, 1948, págs. 286 a 267), honestamente admite que o recurso à livre pesquisa do direito (intra legem) possa tornar ilusória a garantia contra o arbítrio do juiz… O próprio Tribunal Supremo suíço, que aplica o novo processo de interpretação, em acórdão de 1945 (ver “A.T.F.”, 71, I, 8) teve que reconhecer que …”est difficile de tracer la distinction entre cette interprétation et le procédé de l’analogie“.
E que o novo método possa levar a conseqüências arbitrárias, vou mostrar com um exemplo fornecido pelo próprio SALIH MAHSOUB, que aliás êle aplaude… Vejamos, porém, o caso como narrado (ob. cit., págs. 68 a 69) pelo magistrado iraquiano.
O Cód. Penal suíço foi dado como tendo sido violado por um indivíduo, que deixara, de fornecer alimentos à ex-mulher, de quem estava divorciado. Como se sabe, na Suíça há três idiomas diferentes, o alemão da mor parte da população, o francês, de grande parcela e o italiano, da menor. Lá, todos que já ali estiveram, sabem que essa questão de língua nacional é tão importante que ninguém indaga da nacionalidade do interlocutor, limitando-se a perguntar qual a sua língua; por isso e por fôrça de disposição constitucional, as leis são publicadas em três línguas diferentes, para conhecimento de cada um dos três grupos lingüísticos. No caso o acusado estava em cantão de língua francesa e, por isso, em jôgo a versão francesa do Cód. Penal. Ora, nessa versão o art. 217 expressamente não previa o caso, pois não se referia à mulher divorciada, pois que tal artigo apenas se referia a … “ses proches en vertu du droit de famille” e a mulher divorciada não é um dos proches, dos parentes, do ex-marido. Por isso, a primeira e a segunda instância de Neuchâtel absolveram o acusado. Mas houve recurso extraordinário e o Tribunal Federal lhe deu provimento, condenando o acusado.
Mas, como? Fazendo recurso ao método por nós impugnado. Embora reconhecendo que o texto francês e também o alemão se reportavam apertis verbis a parentes e, indo aos trabalhos preparatórios, concluindo que o legislador quis mesmo referir-se nas duas versões a parentes, verificou o tribunal que na versão italiana a redação era outra, não mais se falando em parentes, mas sim em coisa diferente; isto é, em “alimentos que lhe são impostos pelo direito de família” (che gli sono imposti dal diritto di famiglia), pelo que condenou o acusado, por achar que êsse texto, tendo-se em vista o espírito dos arts. 151 e 152 do Cód. Penal, é que correspondia ao objetivo do legislador.
Penso que êste exemplo, por si, dispensa comentários, sendo evidente o perigo e as demasias a que pode levar o novo método. Já agora, para saber o que lhe é permitido ou não fazer, para prevenir-se de praticar uma infração penal, o cidadão suíço não pode confiar no texto oficial da lei penal na sua língua materna, mas tem que se socorrer de comparações com o texto em outros idiomas, ir a fazer um curso de direito comparado talvez.
Por isso, por levar o novo método à incerteza e poder descambar no preciosismo, é que, data venia, ou que sou simples juiz criminal não quero ter nas mãos tão potente instrumento de potencial arbítrio e prefiro punir a que entre nós nos conservemos fiéis ao postulado clássico, da interpretação estrita da lei penal.
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Nota:
* N. da R.: Conferência lida aos 9 agôsto de 1957, no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
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