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Ação Sincretista E Socializadora Do Progresso Em Sua Influência Sôbre As Liberdades E Os Direitos Do Indivíduo, de Reginaldo Nunes

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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

REVISTA FORENSE

Ação Sincretista E Socializadora Do Progresso Em Sua Influência Sôbre As Liberdades E Os Direitos Do Indivíduo, de Reginaldo Nunes

REVISTA FORENSE 167- ANO DE 1954

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08/10/2024

SUMÁRIO: Liberdade individual e solidariedade coletiva. Sacrifício daquela em favor desta, como função natural do progresso. Razões necessárias dêsse sincretismo: a interdependência gerada pela divisão do trabalho e especialização das funções. Intervenção do Estado, como conseqüência dêsse fenômeno de subordinação recíproca. Aumento das normas de direito público em detrimento das de direito privado. Cerceamento, conseqüente, da autonomia das vontades e ampliação correlata do conceito de responsabilidade aquiliana, desde a responsabilidade coletiva da família primitiva, à responsabilidade objetiva assegurada pelo Estado passando pelos intermediários da culpa subjetiva e do seguro de responsabilidade.

Liberdade individual e solidariedade coletiva

I. Há um aspecto da vida dos povos que tem preocupado a atenção de todos os que estudam os fenômenos que lhes dizem respeito, seja na qualidade de sociólogos, ou de juristas. Este aspecto é o da continuada perda da liberdade individual, sacrificada em holocausto à solidariedade coletiva e à cooperação recíproca.

Mas, então, é mesmo verdade que o homem está perdendo a sua liberdade pessoal, quando tanto tem lutado para conquistá-la ou defendê-la? É.

Não há, talvez, ideal pelo qual maior quantidade de sangue haja corrido, que o ideal da liberdade. E no entanto, cada um de nós sente que perde um pouquinho dela a cada dia que passa. Não mais, bem entendido, em beneficio de outro homem, como se dava no passado, mas em benefício da coletividade.

Quando se diz que uma guerra, como a em que o mundo ultimamente se empenhou, foi travada em nome da liberdade, é em têrmos que se deve entender essa afirmação. As liberdades políticas, de culto, de crenças, de manifestação do pensamento e tôdas as que dizem respeito com o espírito humano, não há dúvida que se amplificaram e amplificarão, porque estas a evolução do mundo não tem feito mais do que expandir e ampliar. Mas no que tange à liberdade civil, pròpriamente dita, o destino da sua condição é tornar-se cada vez mais dependente e sujeita às contingências coletivas, à proporção que a interdependência dos indivíduos vai aumentando, em virtude de uma subdivisão maior do trabalho. A divisão do trabalho é uma lei do progresso; e não pode haver divisão do trabalho sem cerceamento da liberdade individual.

Para progredir, temos que nos especializarmos; e essa especialização a que o progresso obriga, torna-nos mais dependentes uns dos outros circunstância que impõe a cada um certas renúncias no campo da liberdade pessoal.

O progresso é eminentemente socializante. E a socialização que o progresso supõe e exige não coexiste com o princípio da autonomia do indivíduo em sua vida de relação. Tudo o transforma no sentido do bem comum, que passa a ser o princípio condutor da ordem social.

Para aquêles que esperam ainda volte o mundo jurídico às suas tradições clássicas – da concepção individual do direito e da autonomia das vontades – esta nossa afirmação constituirá pelo menos um desencanto, quando não uma heresia. Mas não precisamos ser profetas para enxergarmos no panorama evolutivo do mundo moderno as tendências incoercíveis de uma transformação completa nos fundamentos filosóficos do direito, que de dia para dia se socializa: mesmo nos seus mais refratários institutos, até agora havidos como fortalezas inexpugnáveis do privatismo individual.

Se alguém menos atento aos fenômenos da vida tiver dúvida quanto à evidência dêste assêrto, percorra o rol de seus direitos clássicos. Que é que verá?

No direito de família o pátrio-poder transformado de um direito pessoal (outrora de vida e morte sôbre as pessoas a êle sujeitas) num conjunto de deveres para com os filhos, em que o Estado francamente intervém, imprimindo-lhe o caráter de um múnus público. No direito das sucessões – o aumento crescente do impôsto causa mortis acompanhado da delimitação paralela dos sucessíveis ab intestato em favor do Estado; no direito das obrigações – o princípio da liberdade contratual cada vez mais sacrificado à idéia do bem comum e o conceito da culpa objetiva ou do risco criado sobrepujando inteiramente a idéia de responsabilidade oriunda da culpa; no direito das coisas – a propriedade (agulha sempre sensível no acusar as variações socializantes do direito) em suas crescentes mutilações ao jus utendi, ao jus fruendi e ao jus disponendi; no direito tributário – as baterias assestadas fortemente contra os lucros excessivos e as valorizações imobiliárias não decorrentes do trabalho.

Aumento das normas de direito público em detrimento das de direito privado

Em tudo isso notamos á tendência do mundo moderno a marcar os institutos de direito privado com as chancelas indeléveis do direito público, como assinalou SAVATIER na interessante monografia intitulada “Du Droit Civil au Droit Public”.

Se, na conceituação de PAPINIANO – “jus publicum privatorum pactis mutari non potest” (fr. 38 – de pactis – 2-14) – convenhamos que, de momento a momento, mais um dispositivo de natureza civil foge ao arbítrio até então reconhecido do homem e transpõe os limites do seu alvedrio, colocando-se do lado de lá da fronteira, onde não chega a sua liberdade. O princípio, que era simplesmente supletivo da sua vontade, torna-se para êle obrigatório e cogente.

Registrados êstes fatos que não são passíveis de controvérsia pela nitidez com que se apresentam ao observador menos atento, fica-nos o direito de formular uma pergunta: mas até onde irá esta orientação socializante? Tenderá ela a abrandar-se pelo retôrno à concepção clássica da liberdade, ou tenderá a agravar-se pela preponderância cada vez mais acentuada do seu espírito moderno?

Parece que na resposta a ser dada não há muito lugar para dúvidas. Caminhamos indefectivelmente para uma perda cada vez maior, da nossa autonomia. O regime do futuro, tudo indica, será um regime de completa emancipação do pensamento humano, mas, ao mesmo tempo, da mais completa sujeição do indivíduo à disciplina social.

De cada guerra ferida em nome da liberdade, o indivíduo tem saído sempre mais submisso, civil e econômicamente, a essa disciplina. Não devemos conservar ilusões a êsse respeito desprezando a indução impressionante dos fatos.

Compreende-se que num território de população rarefeita e dispersa se constituam nódulos de produção autárquica, em que, famílias ou mesmo indivíduos, isoladamente considerados, se mostrem auto-suficientes, tudo produzindo para viverem. E na mesma proporção em que forem auto-suficientes serão também autônomos, como Robinson Crusoe na sua ilha.

Mas a vida dêsses grupos não pode ser senão incipiente e rudimentar. Crescendo o grupo e multiplicando seus pontos de contato com grupo próximos, terão que diversificar suas atividades para poderem coexistir.

Daí, a divisão do trabalho, a especialização das funções as trocas e os escambos dos produtos criados por uns, pelas utilidades criadas por outros, quer dizer, à submissão recíproca dos grupos e dos indivíduos em presença, até mesmo nas suas mais fundamentais condições de sobrevivência.

Nesta altura da vida social, o Estado não pode mais limitar-se a policiar o trânsito; tem que dirigi-lo. Dirigir a economia, impedindo o abuso do poder econômico; dirigir os convênios, protegendo os fracos contra os fortes e impedindo as discriminações odiosas pela criação dos contratos de adesão; dirigir as responsabilidades, impondo a indenização do dano pelo dano, independentemente de qualquer consideração da culpa do agente; dirigir as condições do trabalho pela higiene das fábricas, salário mínimo, seguro social, repouso remunerado, convenções coletivas; dirigir o uso da propriedade imóvel pela sua desenfeudação e enquadramento dentro da função social.

Chegados a êste ponto da evolução social e jurídica, como que a própria concepção do direito se transforma no sentido do que antevia e desejava AUGUSTO COMTE: “ninguém deve possuir outro direito senão o de cumprir sempre o seu dever” (“Politiqué Positive”, 1, pág. 361).

Parece que esta necessidade de diversificar para sobreviver tema mesmo raízes biológicas, antes de tê-las sociológicas.

Escrevendo sua monumental “Origem das Espécies” mostrou DARWIN de maneira bem compreensível, como os indivíduos vivos animais ou vegetais, têm necessidade de variar o seu modus vivendi para que possam subsistir, coexistindo no mesmo espaço.

As espécies pertencendo ao mesmo gênero – diz ele – têm quase sempre hábitos e constituição muito parecidos; a luta entre estas espécies é, pois, muito mais renhida se se encontram colocadas em concorrência umas com as outras, do que se a luta se travar entre espécies pertencentes a gêneros distintos. Disto resulta que as condições de existência de uma planta ou de um animal colocado em meios a novos competidores devem modificar-se de maneira essencial, procurando certas vantagens sôbre o conjunto dos concorrentes (ob. cit., páginas 67-68).

Aplicada esta observação de ordem biológica à sociologia, a conclusão é que, também colocados os homens no mesmo campo de ação social, têm êles que diferenciar suas atividades para sobreviverem, progredindo. A densidade demográfica força a diversificação dos sistemas de vida e êste princípio ecológico natural traduz-se na ordem social pela divisão do trabalho e a especialização das funções, levando à interdependência dos indivíduos do grupo e gerando, quando em posição de equilíbrio e normalidade, verdadeiro estado de simbiose, tão bem estudado por DURKHEIM na sua grande obra “De la Division du Travail Social”.

De tudo que fica dito, podemos estabelecer o condicionamento do progresso social às etapas que seguem: crescimento demográfico = divisão do trabalho = especialização de funções e de produção = interdependência econômica e social = intervenção do Estado = perda da liberdade individual.

II. Admissão da indeclinabilidade da direção do Estado

Chegamos, assim à admissão da indeclinabilidade da direção do Estado. Não desconhecemos a acentuada repugnância com que muitos a repelem, como nefasta aos interêsses coletivos. Mas, tôda a direção é má quando se dirige mal, seja por deficiência pessoal dos dirigentes, seja por insuficiência dos meios de direção.

O que é certo, porém, é que aquelas “Harmonias Econômicas”, de que falava BASTIAT, cada vez menos existem hoje. E se não houver – como dissemos linhas acima – regulando o trânsito, um poder eficiente e forte, viveremos eternamente a nos debater num labirinto de desarmonias – econômicas, sociais e jurídicas desamparados de tôda a justiça distributiva, senão também da própria justiça comutativa.

Porque a verdade é que, mesmo a economia individualista do capitalismo moderno não prescinde de um poder de direção quando ilude os efeitos da lei mestra da oferta e da procura, seja pelas ententes monopolísticas dos trustes e cartéis, seja pela jugulação do adversário através do dumping, esquecida em ambos os casos dos interêsses da coletividade, da sua função social, para só enxergar claro nas vantagens pessoais do amealhamento do lucro.

Além disso, e pelas razões orgânicas a que acima nos referimos, estamos vivendo uma época de planificação geral de cuja utilidade sob muitos aspectos, já ninguém duvida: planificação das cidades, dos edifícios públicos, das próprias casas residenciais. Como prescindir-se dêsse auxílio da inteligência humana, a serviço da orientação e progresso social da humanidade, para deixar tudo entregue ao ajustamento de um darwinismo penoso e lento, a um laissez-faire que tanto mal já produziu no mundo e particularmente em nosso país, pela dilapidação de suas riquezas naturais que nos transformou paradoxalmente num país ao mesmo tempo despovoado e sem matas, com um solo prematuramente empobrecido, menos pelo cansaço das culturas do que pela erosão?

O darwinismo social, que se traduz na luta pela vida e na sobrevivência dos mais aptos, contém em si um crime e um erro. Crime, porque não se devem deixar entregues os homens em sociedade às fôrças brutais da seleção natural, num tempo em que a humanidade se orgulha de tantas descobertas científicas para orientá-las, corrigi-las e humaniza-las; êrro, porque, na luta pela vida dos homens em sociedade nem sempre são os mais aptos que vencem, mas os mais espertos e menos escrupulosos.

Além disso é preciso convir que na maratona da vida – que seria a seleção natural – há handicaps artificiais que perturbam a eqüidade dos resultados da carreira, pela fôrça inicial que uns levam sôbre os outros concorrentes, e o desnível de superfície do terreno econômico e social em que uns e outros correm: nascimento, relações, valimento, prestígio, poder econômico adquirido no berço, etc.

Não conheço filósofo que haja sustentado e defendido teoria mais nìtidamente individualista do que HERBERT SPENCER, que levava as conseqüências ao ponto de não admitir o próprio ensino primário mantido pelo Estado. O argumento era que pressuposto em cada cidadão um certo sentimento de eqüidade, aquêles que não tivessem filhos protestariam contra o confisco de seus bens para educar os filhos dos outros e estes próprios em virtude dêsse mesmo sentimento, também haveriam de se opor a que a educação dos seus se fizesse à custa dos casais sem filhos, das pessoas solteiras e ainda daqueles cujos recursos fôssem inferiores aos seus (“Principles of Sociology”, 2, pág. 658).

Gostaríamos dever como êsse espírito tão privilegiado e sedutor arrazoaria na segunda metade do século XX as doutrinas privatistas que brilhantemente sustentou na segunda metade do século XIX, até 1903, quando morreu, deixando tantos prosélitos. E digo isto comovidamente porque, confesso fui um dos a quem êle, na mocidade, enfeitiçou, levando para o seu redil.

III. Partindo dêstes pressupostos de ordem filosófica com que procuramos fundamentar a evolução social do Estado e, até certo ponto, demonstrar a irreversibilidade dêste movimento no sentido de uma cada vez maior integração social, analisemos, ainda que por alto, os aspectos mais característicos da diferenciação operada num dos setores do direito civil: o das obrigações, por exemplo, e, dentro dêle, o tópico atinente às responsabilidades.

Nos primórdios das sociedades o direito civil quase que, por assim dizer, não existia, como capítulo autônomo do Direito.

Segundo observam DARESTE (“Études d’Histoire du Droit”, pág. 255) e SUMNER MAINE (“Ancient Law”, página 216), os dispositivos penais sobrepujam, em número, os de natureza pròpriamente civil, em tôdas as legislações primitivas e acrescenta o último autor citado que se pode estabelecer como regra que “quanto mais arcaico fôr o Código, mais carregado e minudente se apresentará de dispositivos penais” (loc. cit.).

Outro aspecto a ser observado é que “o crime é um ato corporativo; e se estende em suas conseqüências a muitas outras pessoas além daquelas que nêle participaram” (SUMNER MAINE, ob. cit., pág. 75). Não prevalecia o princípio de que a pena não passa da pessoa do delinqüente.

Os crimes que se perpetravam dentro de determinada família, por um membro seu, não tinham geralmente repercussão exterior, e dentro dela e por ela eram punidos.

“Por aí se explicam certos traços das velhas legislações. Por exemplo, SÓLON, ou antes DRACO, redator da lei penal dos atenienses, não mencionava o crime de parricídio. É que não se acreditava – dizia-se – que tão enorme crime fôsse possível. Ora, esta razão podia satisfazer moralistas como PLUTARCO, mas não é com imaginações edificantes que se hão de explicar as leis antigas. A verdadeira razão da omissão notada é que o parricídio era um crime que só podia ser cometido no interior da família e que, por conseguinte, não podia dar lugar à vingança” (DARESTE, ob. cit., pág. 149; veja, também, BLUTEAU, “Voc. Português e Latino”, verb. Parricidio). E, como se sabe, a primeira forma do direito criminal foi a vingança privada: a guerra de indivíduo a indivíduo, ou antes de família a família (DARESTE, ob. cit., pág. 295). O que dentro da família se passava, não saía de sua alçada e por ela tinha que ser deslindado.

A primeira evolução operada no direito criminal foi a substituição da vingança privada, por uma pena; do desfôrço, pela ordem (idem, pág. 64).

À primeira vista parecerá estranho que o homicídio involuntário fôsse punido com multa, ainda nos casos de ausência de culpa. É que a lei punha a mira na manutenção da paz e só a satisfação dada à família preveniria a vingança e manteria a paz. O resultado, portanto, era tudo. A intenção pouco importava (idem, pág. 337).

O cristianismo trouxe para o convívio dos homens um elemento novo de ordem derivado da idéia de liberdade pessoal: o da imputabilidade. O homem é um ser racional e livre e onde não houver imputabilidade, não há pecado, nem responsabilidade. Eis por que pode dizer-se que “o Direito Civil, tal como nós o concebemos, saiu do renovamento que o cristianismo trouxe à civilização” (SAVATIER, ob. cit., pág. 5).

Todos os Códigos de então passaram a conceber a responsabilidade civil em função da culpa e dêle não podia fugir o nosso, que no art. 159, dispôs:

“Aquêle que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

Culpa a ser provada pela vítima, ou presumida a favor dela, desaparece, de regra, pelo nosso direito a obrigação de indenizar desde que ela não se prove, ou se faça prova contrária à presunção estabelecida.

Fica, assim, pelo nosso direito, desde logo, arredada a obrigação de indenizar, por pessoa privada de discernimento. É que “ao amental falta-lhe imputabilidade e sem esta inexiste culpa” (OROZIMBO NONATO, “REVISTA FORENSE”, LXXXIII, pág. 372). E sem culpa não há obrigação de reparar.

Para DEMOGUE, a solução seria outra. Embora pessoalmente irresponsável o alienado, não estaria a vitima do ato obrigada a suportar o dano, desde que tivesse o demente alguém que respondesse pela sua guarda. “Esta guarda, uma ” vez aceita” – diz êle – “constitui um verdadeiro pôsto social que deve ser desempenhado convenientemente. O mesmo é dizer que todo o cargo assumido é uma função; logo, um dever para com todos” (“Des Obligations en Général”, 3, nº 313).

Pela outra solução – a da irresponsabilidade do demente – ficaria no ar uma pergunta: e se o amental fôsse o patrão, poderia ser responsabilizado pelo ato do preposto? Concluir pela negativa seria injusto, porque o dono de uma emprêsa deve responder através do seu patrimônio por tôdas as decorrências naturais do seu negócio (ubi emolumentum ibi onus); concluir pela afirmativa seria tratar desigualmente, no campo da responsabilidade, dois casos semelhantes, isentando de responsabilidade o agente direto, privado de discernimento e sujeitando à responsabilidade o alienado, quando respondesse por ato de outrem…

Por mais esfôrço que se haja feito no sentido de uma interpretação construtiva dos textos da lei civil, que os ponha em harmonia com as necessidades presentes, pelas mil e uma formas de risco que o progresso moderno criou para o homem, onde quer que êle se encontre, não tem sido possível, sem violência frontal aos mesmos textos, extrair dêles o conceito de culpa objetiva, nos têrmos em que estão redigidos (ALVINO LIMA, “Da Culpa ao Risco”, págs. 174 e segs.).

O mais que se conseguiu, até agora; alcançar foi o estabelecimento de uma presunção legis tantum contra os legalmente responsáveis por fato de terceiros, mediante reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal (“Rev. dos Tribunais”, vol. 227, pág. 598), resultado êste, ainda assim, obtido, data venia, com violência material feita ao art. 1.523 do nosso Código que não admite essa presunção contra o preponente, exigindo, pelo contrário, que se prove que êle concorreu para o dano por culpa, ou negligência de sua parte. Por sua vez, o anteprojeto do Código de Obrigações não se animou a avançar a estaca. Ficou no conceito de culpa (art. 151).

Esta é pois, a súmula do nosso direito positivo em matéria de responsabilidade: salva uma ou outra presunção legis tantum de culpa, estabelecida pelos dispositivos, ou pela jurisprudência, apesar dêles, não admite o nosso direito comum reparação do dano causado a terceiro independentemente de culpa provada, do agente. Sem culpa, provada ou presumida, não há reparação.

Diversa doutrina possibilitou-se ao Cód. Civil francês, de 1804 com uma declaração de princípio lançada, segundo atesta SAVATIER, por mero gôsto artístico, como exórdio ao art. 1.384: “on est responsable non seulement de son propre fait mais encore du fait des personnes dont on doit répondre ou des choses que l’on a sous sa garde”.

E graças a esta passagem tão breve no seu enunciado, quanto insuspeitada nas possibilidades que encerrava, puderam os grandes doutrinadores franceses capitaneados por SALEILLES e JOSSERAND criar a teoria do risco ou da culpa objetiva, harmonizando a lei com as necessidades da vida moderna e revitalizando, assim, no capítulo das responsabilidades civis, o velho Código napoleônico.

E, embora o dito Código tivesse sido como o nosso, neste capitulo, todo êle construído na base da culpa, como deixam ver, claramente, os seus arts. 1.382 e 1.383, o certo é que a insidiosa passagem contida no art. 1.384 acabou avassalando todo êste capítulo, reduzindo a quase nada d alcance daqueles artigos.

Na verdade, estabelecida a responsabilidade por fato de terceiro ou da coisa sob nossa guarda, para alterar completamente a noção de responsabilidade e dar-lhe novos fundamentos fora da culpa, bastante se tornava ampliar o conceito de guarda ou de preposição. Foi o que fêz a doutrina francesa encabeçada pelos dois mencionados juristas.

Pode sustentar-se que tal doutrina, prescindindo da existência de culpa, abre mão de elemento moral que informa o dever de reparação, porque nivela prudentes e imprudentes, capazes e incapazes; na mesma obrigação de reparar.

Se encararmos, porém, o aspecto moral da obrigação não já do lado do agente mas do paciente, chegaremos à conclusão de que restaurar o patrimônio lesado por fato nosso, culposo ou não, é sempre um ato de moral social, porque à vítima, elemento inteiramente passivo na tragédia, pouco lhe importa saber se o agente procedeu ou não com culpa no dano que lhe causou, senão apenas que ela sofreu, causado por outrem, um dano para o qual não concorrera. Imoral seria, isso sim, que escudando-se na ausência de culpa, se deixasse a vítima, inocente, arruinada por ato de outrem. Impedi-lo-ia o dever de solidariedade humana.

Êste dever de solidariedade coletiva, desenvolvido pelos séculos adiante, já tende a solicitar o dano pela instituição do seguro de responsabilidade, que nada mais é do que uma distribuição do ônus da reparação por todos os co-segurados.

Chegados a êste ponto da concepção do dano e do dever de reparar, a etapa imediata se impõe, aquela que nos refere DEMOGUE (“De la Réparation Civile des Délits”, pág. 349) como sendo a conclusão a que chegou o Congresso de Antropologia Criminal de Roma, de que êle nos dá notícia e que se enuncia pela seguinte fórmula: “a realização da reparação é uma função social”.

Admitido êste princípio, ao Estado caberá a função de segurador natural de tôda a responsabilidade, não mais nos limites específicos do seu funcionalismo público, previsto no art. 159 da Constituição de 1946, mas de todo aquêle que, estando sob a sua tutela e sob proteção de sua política e suas leis, vier a sofrer dano causado por outrem, ao Estado cabendo, apenas, o direito regressivo contra o autor do dano no caso de culpa dêste.

Harmonizar-se-ia, assim, o conceito de culpa com a certeza da reparação, sem cultivar a imprevidência por parte do agente, nem deixar a vítima entregue à duvidosa solvabilidade do autor do dano.

Mas não voltaríamos, assim, aos primórdios da responsabilidade corporativa, por onde a história começou? Voltaríamos; mas dentro de outra técnica, de outra compreensão, de outro alcance e de outros resultados. O desenvolvimento, então, seria êste: responsabilidade puramente individual do agente culpado; a seguir, responsabilidade do criador do risco; depois, responsabilidade individual livremente segurada; mais tarde, seguro obrigatório de responsabilidade; e, finalmente, seguro direto e oficial do Estado.

Tal é o percurso ascendente que parece seguir do direito privado ao direito público: a evolução da responsabilidade, no sentir de SAVATIER.

O que se dá no tocante à responsabilidade aquiliana, verifica-se também no que respeita à liberdade contratual, porque liberdade e culpabilidade são expressões homólogas e conversíveis. Pelo direito individualista do século XIX não havia responsabilidade onde não houvesse culpa e não havia culpa onde não existisse liberdade.

Hoje, todo contrato, todo ato jurídico é um fato social. Ele imerge, afunda, num oceano de outros direitos e atos humanos, onde reage fortemente. Assim, cada um dos nossos atos produz conseqüências ao infinito, em longas ondas de repercussão, modificando mesmo o alcance, outrora quase absoluto, do preceito “res inter alios acta vel judicata allis non nocet” (DEMOGUE, “Des Obligations en Général”, 7, nº 709).

De tudo se verifica que a vontade individual como fonte criadora do direito está em declínio. Perdeu e continuará progressivamente perdendo graças à intervenção do Estado, aquela liberdade de movimentos que era o seu apanágio.

Reginaldo Nunes, advogado no Distrito Federal.

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