32
Ínicio
>
Clássicos Forense
>
História do Direito
>
Revista Forense
CLÁSSICOS FORENSE
HISTÓRIA DO DIREITO
REVISTA FORENSE
O drama de uma idéia: o direito natural
Revista Forense
25/10/2023
SUMÁRIO: Fato histórico. O pensamento greco-romano. O cristianismo. HUGO DE GROTIUS. Renascimento da idéia no século XX. Elasticidade conceitual. A ânsia de segurança. Arma ideológica na luta pelo poder. Conclusão.
I. Fato histórico. O pensamento greco-romano. O cristianismo. HUGO DE GROTIUS
Há 25 séculos perdura nos espíritos o pensamento de que existem leis eternas e imutáveis, a que se devem subordinar as regras jurídicas, em todos os tempos e em tôdas as latitudes. Essa idéia de um direito natural germinou lentamente, e tem sido formulada, através dos tempos, sob as mais diversas inspirações filosóficas. Sòmente quando a revolução científica abriu novas clareiras ao espírito humano é que se manifestou a reação contra êsse pensamento, fortificada no positivismo jurídico. Sobrevivendo, todavia, aos ataques que lhe desferiram, foi forçado a reduzir suas ambições. Mas, continua a inspirar paixões ardentes.
Para analisar a idéia do direito natural, como um fato histórico, há que acompanhar, a largos passos, embora, seu desdobramento, desde que se introduziu no pensamento humano.
A existência de uma natureza normativa é uma vibração do gênio helênico. Opondo-se aos sofistas, alguns filósofos da Grécia idealizaram a existência, de normas de caráter permanente e de validez universal, contrapondo ao nomos, a physis. ARISTÓTELES, recolhendo a idéia de uma virtude ecumênica, a que se denominara justiça, particularizou-a como virtude social, ensinando que a parte natural dêsse sentimento tem a mesma autoridade em todos os lugares. Só com o estoicismo, porém, é que a idéia do direito natural alcança uma expressão nítida, adquirindo estabilidade para a sua expansão ulterior.
CÍCERO a expôs, em seguida, com clareza, ao afirmar que o verdadeiro direito é a reta razão, conforme a natureza, difuso em todos, constante e perene. A lex una et communis, expressão da vera lex recta ratio, é de aplicação universal. Seu conteúdo era, porém, de natureza ética, compondo-se de seis noções: a religio, a pietas, a gratia, a vindicatio, a observancia, e a veritas, que definiam os deveres do homem para com os deuses e para com os seus semelhantes.
Mas, tanto no pensamento grego, como no latino, essa lei superjurídica, que seria o quadro da legalidade positiva, tem o cunho de um princípio geral, a que alguns atribuem o sentido de uma lei cósmica.
O que importa, porém, é o pensamento de que a conduta social do homem deve conformar-se a regras condicionadas por uma lei superior, única, eterna e imutável.
O cristianismo adaptou essa idéia às suas doutrinas, absorvendo-a, durante longo período histórico. Para doutôres eminentes da Igreja, – SANTO AMBRÓSIO, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO e SANTO AGOSTINHO, – o sentimento da justiça tinha, como na filosofia grega, aquêle mesmo teor de virtude universal, condensada, porém, no amor a Deus. Mas, nessa fase, o direito natural era absoluto. Coube a TOMÁS DE AQUINO relativizá-lo, formulando novo conceito, menos rígido, no admitir que o homem, através da razão, pode participar da lei eterna, conhecendo algumas intenções de Deus. A lex naturalis é, assim, captada pela razão humana, tendo como preceito básico o de que se deve fazer o bem e evitar o mal.
HUGO DE GROTIUS seculariza a idéia do direito natural, no século XVII, admitindo a existência de um conjunto de regras universalmente necessárias à vida social, tão imutáveis, que não poderiam ser alteradas nem mesmo pela divindade. Deslocado o eixo do direito natural, a idéia difunde-se, adquirindo, então, no pensamento de PUFENDORF, uma expressão sistemática (cf. ESMEIN). BURLAMAQUI, que escreveu um tratado sôbre o direito natural, no século XVIII, esclarece o seu conceito, ao salientar que tem uma conveniência tão essencial com a constituição da natureza humana que se pode conhecê-lo pelas luzes exclusivas da Razão.
Sobreveio, porém, a reação, e com tamanho ímpeto, no século XIX, que, durante algum tempo, se teve a impressão de que o direito natural morrera. Mas, neste século XX, reanimou-se.
A controvérsia reabre-se, assim, com novo vigor. Há que aceitá-la.
II. Renascimento da idéia no século XX
A idéia de um direito natural, insculpido na mente humana como substrato do senso de justiça, é, sem dúvida, sedutora, por sua simplicidade, e honrosa para a espécie. Não basta, porém, para ser válida.
Terra a favor, inquestionàvelmente, a sua longevidade. Cedendo, desgastando-se, ou recuando, o fato é que atravessou 25 séculos com vigorosa tenacidade.
Que explica tamanha receptividade? É possível que se deva, de um lado, à sua elasticidade conceitual, e, de outro, à propensão do espírito humano para superestimar seu valor diante das condições extrínsecas que o limitam.
A idéia do direito natural fermenta num conceito vazio de conteúdo, que se tem procurado rechear, através dos tempos, com princípios gerais e abstratos, ou crenças religiosas. É ao preço de extrema generalidade que a teoria consegue sua clareza, segundo observa um escritor. Diz-se que há, no homem, um sentimento inato de justiça, que lhe possibilita juízos jurídicos, independentemente do direito positivo. Seria êsse detetor de verdades que nas sopraria à consciência se uma lei é justa ou injusta, qualquer que seja o meio que habitemos ou o tempo em que vivamos.
Mas, que será essa justiça? Aquela virtude universal dos gregos? O amor a Deus dos cristãos? Tais generalidades estão muito afastadas da realidade social para que sirvam de fundamento à ordem jurídica. Onde estaria a sua universalidade? A observação de PASCAL pode ser sarcástica, mas, nem por isso, deixa de ser tremendamente realista: “plaisante justice qu’une rivière borne; verité en deça des Pyrinées, erreur au delà!”.
O postulado básico do direito natural poderia sar sintetizado no suum cuique tribuere, como pretende o neotomista CATHREIN. Mas, êsse postulado, como nota DE PAGE, não passa de um conceito, de uma forma, de um quadro a perfazer, de modo que, em tôdas as épocas, houve e haverá acomodação a essa fórmula, qualquer que seja o conteúdo positivo do suum. Até um jusnaturalista como GENY pondera que êsse princípio é certamente precioso, mas, pràticamente, insuficiente, porque sempre se precisará saber aquilo que cada qual pode legitimamente pretender. A cada qual se deve dar o que é seu, mas o que deve ser dado não tem sido o mesmo e, seguramente, não o será. O conteúdo do suum, numa palavra, varia no tempo e no espaço. Assim, a regra não possui valor substancial. É moldura para tôdas as telas.
Ora, o valor da idéia do direito natural estará na firmeza da resposta que possa dar à indagação do que é substantivamente justo. Se existe uma lei superior à vontade do legislador, que deva servir de orientação ao direito positivo de todos os povos (semper et nunc), a razão humana, que é o instrumento indicado para conhecê-la, já a devera ter apreendido e formulado claramente, para valer em todo tempo, em todo lugar, quaisquer que tenham sido ou venham a ser as circunstâncias e condições. Se a razão humana a desconhece, ou ao menos se não a deduziu em têrmos a todos evidentes, essa lei natural é um mistério, em que podemos crer, mas que não podemos compreender.
Ùltimamente, a noção de bem comum, que SÃO TOMÁS apontara como o fim da lex humana, tem sido utilizada como resposta à pergunta. O bem comum seria o princípio fundamental que nos ordena a natureza das coisas (cf. DE PAGE), a regra suprema a que se devem conformar os preceitos do direito positivo. É, realmente, um conceito generoso, mas, infelizmente, muito flexível. DE PAGE observa que é de duvidar-se dessa tocante filantropia da qual o homem teria o sentimento inato para com o seu semelhante. Sem qualquer irreverência, pode-se dizer que o bem comum parece como alforje do escamoteador: com um pouco de habilidade tudo pode ser tirado.
Tôda vez, portanto, que se procura formular essa lei única e comum, eterna e imutável, dá-se com um conceito escorregadiço.
A dificuldade de o conceituar materialmente tem levado filósofos modernos, STAMMLER à frente dêles, a sustentar que a teoria do direito natural tem que ser necessàriamente de caráter formal, o que conduz ao paradoxo do direito natural de conteúdo variável – ou de conteúdo progressivo.
A extrema elasticidade da idéia do direito natural permite, por outro lado, que se abarrote de noções éticas, como no pensamento de CÍCERO, que incluía a gratidão e a piedade entre os componentes da lex una et communis, ou que se minimize a três princípios, redutivos a um, como no pensamento de LE FUR. Há, dêsse modo, de ZENON a CATHREIN, direito natural para todos os apetites – dos que têm muita fome de eticidade aos que se contentam em enganar ao estômago.
III. Elasticidade conceitual
Além dêsse poder de distender-se ou contrair-se, o direito natural presta-se a objetivos colidentes. É o seu drama.
Crer na existência de uma lei superior, que deve informar o direito positivo, é uma convicção cômoda aos descontentes, porque podem confeitar as suas reivindicações revolucionárias com apelos patéticos à Justiça. Mas, a idéia do direito natural é lâmina de gilete: corta dos dois lados, porque também serve aos contentes. Nenhuma razão é melhor para justificar a preservação da ordem estabelecida do que mostrar que está conforme à natureza das coisas. A insistência com que certos círculos hoje a propagam explica-se pelo interêsse de dar apoio racional a alguns valores cambaleantes.
Por fim, a concepção do direito natural responde à ânsia de segurança, que sentem os espíritos tímidos. O temor de mutações radicais da ordem jurídica suscita a suposição de que, para conservá-la, é preciso a crença na existência de postulados imutáveis. Não é, aliás, por outro motivo, que a primeira preocupação de sediciosos vitoriosos consiste em definir direitos que teriam sido incubados numa lei superior. Assim foi em 89. Os direitos do homem e do cidadão foram proclamados como direitos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, apreendidos pela reta razão. E êsses diretos sociais, hoje tranqüilamente admitidos em todos os países civilizados e semicivilizados, embora não passem de legitimação forçada e transacional de interêsses materiais do proletariado, são tidos e havidos como expressão de uma Justiça social, que também derivaria da natureza das coisas.
IV – A ânsia de segurança
A ânsia de segurança busca a correspondência a alguma coisa preestabelecida, mesmo que seja uma simples representação metafísica.
Finalmente, não se conforma o espírito com as suas limitações. Não quer admitir que o conhecimento é um processo condicionado socialmente. É duro para a eminente dignidade do homem reconhecer que a mente condensa apenas, numa cristalização ideal, a realidade exterior. Se as condições extrínsecas da vida não são estáticas, a razão humana não pode descobrir uma lei que seja a medida de tôdas as coisas, diante da qual todos os povos, em todos os tempos, padronizassem seu direito. Se fôsse possível captar essa lei, em sua essência, a inteligência humana teria realizado uma façanha notável, e a nós outros só restaria lamentar, como ROBISON, que os resultados tenham sido tão desapontadores.
Parece que um espírito científico não pode aceitar a existência dêsse direito natural como realidade. Mas o receio de que o direito venha a se confundir com a vontade arbitrária de governantes faz pensar na utilidade dêsse freio por aquêles que duvidam hoje da fôrça de que dispõem. Prova melhor não podem ter, no entanto, de que o poder de criar a legalidade está condicionado a fatôres sociais que eliminam o mero arbítrio. Por mais poderosos que viessem a ser eventualmente, não poderiam impor uma ordem jurídica inteiramente infensa às realidades do momento.
V. Arma ideológica na luta pelo poder
As condições do mundo hodierno permitem compreender, mais facilmente o sentido dessa concepção jusnaturalista. No pensamento claro de DE PAGE, HAERSAERT e ALLET, resumido por DU PASQUIER, o “direito natural é uma ideologia, que aparece nas civilizações já evoluídas e que reveste um caráter funcional; tem sido uma alavanca que se destina a modificar o direito e a introduzir instituições mais conformes às aspirações da época”. ESMEIN, baseado em GIERKE, mostra que é uma arma ideológica na luta pelo poder. Mas o renascimento do direito natural no século XX apresenta-se nitidamente, segundo a arguta observação de RODENHEIMER, como uma inflorescência de filosofias do poder, disfarçadas. Tôdas as concepções contemporâneas do jusnaturalismo não passam de uma tentativa para refrear novas fôrças sociais, que surgiram impetuosamente, negando, de modo ameaçador, a validez de muitos princípios tradicionalmente consagrados. Como explica êsse escritor, a principal causa dêsse renascimento é o aparecimento no mundo ocidental de novas tensões políticas, sociais e econômicas, que não podem ser fàcilmente resolvidas mediante os conceitos e os institutos tradicionais do direito positivo. É, sobretudo, a defesa de certos valores tradicionais que os preocupa, ainda quando fazem concessões às novas idéias. Seja no pensamento de STAMMLER, que se refugia no logicismo formal, seja no de DEL VECCHIO, que se volta para a autonomia da personalidade humana, seja no dos neotomistas, que desfraldam a bandeira enrolada do bem-comum, o que se nota, claramente, é o esfôrço para justificar valores discutidos, dantes intangíveis. Nesse esfôrço de racionalização, o fermento da reação tem encontrado fundamentos doutrinários. A teoria da instituição, de HAURIOU e RENARD, de origem neotomista, glorifica a idéia de autoridade, para coibir a de igualdade e, estabelecendo o primado do grupo sôbre o indivíduo, encontra no Estado corporativo a sua mais brilhante aplicação.
Dêsse modo, servindo como alavanca para a implantação de uma nova ordem jurídica ou de freio contracorrente para preservar uma ordem jurídica estabelecida, o jusnaturalismo, ideado na Grécia durante as agitações sociais do 5° século antes de Cristo, mantem até nossos dias seu caráter funcional. Mas o drama dessa idéia é que, ontem, servia ao progresso, e, hoje, serve à reação. Os que continuam a ter a doce crença de que existe, tal como o conceberam seus sistematizadores, inclinam-se fatalmente para o lado onde o dogmatismo e a intolerância constituem o refúgio dos que nos querem impingir uma falsa aurora da História.
Sobre o autor
ORLANDO GOMES – Professor da Faculdade de Direito da Bahia
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 5
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 6
NORMAS DE SUBMISSÃO DE ARTIGOS
I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:
- Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
- Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
- Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
- A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
- O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
- As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.
II) Normas Editoriais
Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br
Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.
Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).
Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.
Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.
Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.
Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:
- adequação à linha editorial;
- contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
- qualidade da abordagem;
- qualidade do texto;
- qualidade da pesquisa;
- consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
- caráter inovador do artigo científico apresentado.
Observações gerais:
- A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
- Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
- As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
- Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
- Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
- A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.
III) Política de Privacidade
Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.
LEIA TAMBÉM: