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Adoção: amor puro
Guilherme de Souza Nucci
31/05/2017
A adoção encontra-se prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, permitindo criar laços jurídicos entre pais e filhos, quando, antes, eram estranhos uns aos outros. Esses laços equiparam, para os fins legais, o filho biológico e o filho adotivo. Então, sob os auspícios da lei, a adoção estabelece liame familiar definitivo entre adotantes e adotados.
Porém, parcela considerável da sociedade brasileira ainda não compreende o ato de adoção. Por isso, surgem questionamentos e conclusões errôneas tomadas por leigos e por operadores do Direito. Pior, ainda, quando os profissionais da psicologia e da assistência social demonstram deficiência nítida para tratar do instituto da adoção.
No mundo extralegal, a adoção deve significar um ato de amor. Puro amor. Adotar como familiar alguém que é estranho significa a abertura de coração para o acolhimento do semelhante com a intensidade dos laços de profundo afeto e carinho. Pais adotivos, no entanto, ouvem, várias vezes, cumprimentos pelo gesto de caridade, referente à adoção. Não se trata de caridade, no sentido estrito do termo, pois se cuida de um ato para a vida toda. Nunca foi uma contribuição temporária ou momentânea a uma instituição assistencial; abrigar em família um ser humano é muito mais que isso.
O segundo equívoco é representado pela insistência de promotores e juízes, cercados de psicólogos e assistentes sociais de curta visão, em manter na família biológica os filhos já rejeitados e abandonados. Há imenso abismo entre pobreza e indiferença; entre incapacidade econômica e abandono. Muitos profissionais das Varas de Infância e Juventude insistem por anos a fio na mantença do laço biológico entre o filho, que já se encontra em abrigo, e o(s) pai(s) que o abandonou(aram) e continuam a manter comportamento estranho e dissociado do ânimo de ter uma família. São pais drogados, alcoólatras, autores de agressões domésticas, ociosos, criminosos, dentre outros fatores, cuja paternidade não lhes representa absolutamente nada de relevante. O filho foi concebido pelo simples prazer sexual momentâneo. De que adianta manter em abrigo uma criança por anos a fio para que o(s) pai(s) seja(m) reeducado(s)? Não se busca o melhor interesse da criança? Esta pessoa quer, como todas, amor e carinho, pouco interessando se tenha origem em parentesco biológico ou legal.
O terceiro engano de quem não compreende a adoção, porque lhe parece algo inusitado e esquisito, é questionar os pais adotivos acerca dos laços mantidos com determinada criança, porque, fisicamente, não se parecem. Perguntam, para saciar pura curiosidade, acerca da origem daqueles laços, algo que não se faz quando há semelhança física. Observa-se que a aparência é mais importante, para muitos, do que o âmago das pessoas humanas.
Outras indagações são também frequentes: “quando terão seus próprios filhos?”; “vocês conhecem os pais verdadeiros?”. Exclui-se a sensibilidade – e até boa educação – para saciar a curiosidade e reverenciar a própria ignorância. Afinal, quem adota já tem o(s) seu(s) próprio(s) filho(s). Os adotantes são os pais verdadeiros; em verdade, ilegítimos passam a ser os biológicos, que abandonaram seu(s) descendente(s). Se haverá uma gestação para o futuro da mãe adotiva é questão concernente à intimidade do casal, desinteressante a terceiros, salvo os que não fazem ideia do que significa uma adoção.
Situação comum é estabelecer a presunção de que a adoção é uma simples alternativa aos casais inférteis; daí por que se costuma dizer que a mãe adotiva, depois de encontrar seu filho pelos laços jurídicos, termina ficando grávida. Seria o mesmo que dizer que a adoção é um eficiente método para sanar defeitos ou falhas de concepção. Seria o mesmo que considerá-la um laço de segunda categoria ou mesmo um instrumento para chegar ao objetivo maior e mais importante: a paternidade/maternidade biológica. Tolice pura. Se alguns adotantes assim agem constituem a minoria esmagadora dos casos de adoção. Quem adota, em primeiro lugar, entregou seu coração ao amor puro e recebe aquele filho com uma alegria imensurável, sem nem mesmo pensar em filiação biológica.
Outros ficam contentes porque determinado casal branco conseguiu adotar uma criança branca e até fisicamente parecida com eles. Soa como um presente, como uma sorte grande. Se o casal branco adota uma criança negra, os que não compreendem o instituto da adoção chegam a questionar, quase impugnando a atitude.
O que dizer dos familiares contrários à adoção? São os avós, os tios, os sobrinhos, os primos, dentre outros. Se os que adotam, seja um casal ou uma só pessoa, estiverem convictos do amor que sentem, a resposta é simples: tolerância e indiferença às críticas. Não nos parece compreensível deixar de adotar porque a família extensa é contrária ao ato. Porém, alguns profissionais de apoio nas Varas da Infância e Juventude levam a sério a oposição feita por outros, que não os candidatos a pais adotivos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, além de várias outras normas, prevê o célere trâmite processual (prioritário) de casos de adoção. No entanto, nem mesmo as Varas especializadas da Infância e Juventude cumprem a lei. Os processos se arrastam por anos a fio e os laudos e entrevistas são feitas com distância absurda de um para o outro. Ilustrando, casos em que os pais biológicos nem mesmo contestam a ação de perda do poder familiar levam anos para o julgamento final. Primeiro, os juízes querem verificar a perda do poder familiar, com trânsito em julgado (?), em nítida contrariedade à lei, que menciona não haver efeito suspensivo ao recurso interposto contra a sentença de destituição do referido poder familiar. Em segundo, os tribunais demoram a julgar o recurso do pai ou da mãe biológica destituída do poder familiar. Em terceiro, mesmo que finda a longa novela da destituição do poder familiar, inicia-se a via-crúcis da ação de adoção, com mais uma série de exames e exigências.
Os fatos têm demonstrado que o tempo é inimigo das crianças abrigadas; um dia a mais no abrigo significa um dia a menos de amor e carinho. Mas esses elementos parecem não sensibilizar os operadores do Direito, que trabalham nessa área. Os processos envolvendo crianças ou jovens são tratados como outros quaisquer e tramitam em igualdade de condições diante de outros feitos cíveis ou criminais. Uma lástima da realidade brasileira.
Os questionários das Varas da Infância e Juventude não estimulam a adoção por amor, mas por escolha de sexo, cor, estado de saúde e outros tantos requisitos, terminando por significar um autêntico mercado de produtos, pois tudo é selecionável. Os candidatos à adoção podem almejar o bebê perfeito, que, segundo estatísticas, é a “menina branca com menos de um ano de idade e totalmente saudável”. Se possível, “com olhos e cabelos claros”. Este candidato permanece na fila, em primeiro lugar, quando chega a este posto, eternamente, se for o caso; vale dizer, até surgir aquela menina de ouro. O correto seria chegar ao primeiro lugar da fila e, se desprezar a criança que lhe for apresentada, ser deslocado para o final da fila, pois não está adotando, mas escolhendo um filho que possa satisfazer seu ego.
Quem não tem autêntica disposição de adotar, como regra, impõe vários obstáculos e exige muito da criança ou jovem abandonado. Por que tais candidatos mantém a sua preferência para adotar? Simplesmente porque o corpo operacional da Vara da Infância e Juventude não altera seus conceitos primários e antiquados, lastreados na permissão de eleição de um filho. A desculpa é sempre a mesma: para dar certo. Noutros termos, se o candidato à adoção quiser o protótipo do filho adotivo (menina clara e bebê saudável) pode ficar em primeiro lugar da fila do cadastro quantos anos forem necessários.
Há muito erro no contexto da adoção, motivo pelo qual há várias crianças e jovens disponíveis em número menor do que o de candidatos à adoção, algo surpreendente e questionável. Se o número de candidatos é maior do que o de crianças e adolescentes aptos à adoção, a conclusão natural seria o esgotamento integral dos infantes e jovens adotáveis. Mas não é. A permissão à seletividade do ser humano é chancelada pelas Varas da Infância e Juventude, sem encontrar respaldo legal para isso.
Finalmente, o número de crianças e jovens abrigados, distantes da família biológica, mas também distantes de pais adotivos, é imenso. Onde está o ponto errático? Em nosso entendimento, concentra-se em duas bases: a) insistência desmedida e antiproducente de manter os laços biológicos com a família original; b) trâmite arrastado dos processos da infância e juventude, pouco importando o que preceitua a lei.
Como resolver? É preciso uma fiscalização rigorosa das Corregedorias de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, além de haver, em lei, uma responsabilidade pessoal do promotor e do juiz que permitam o prolongamento do andamento dos feitos sem justa causa, evidenciada, comprovada e fundamentada nos autos.
Além de tudo, mudar a mentalidade da sociedade brasileira a respeito da adoção ajudará – e muito – na solução de casos tristes relativos ao abandono sentimental de muitos infantes e jovens.
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