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Sociedades: o simples e o empresário

31/07/2025
Na vida há que se aprender que nem todos comungam de nossos senões. Não-raro, poucos; por vezes, quase ninguém. Mas o talento (maior ou menor, tanto faz) é animado por certos princípios e, se pretendemos ter o direito de participar das grandes coisas (sic!), é preciso assumir o risco de adotar certas posições, ainda que, ao fazê-lo, possamos estar assumindo o risco de quem, à beira da mesa, coloca suas fichas no vermelho 19 (entre 15 e 4, ambos pretos; senão 8 e 31; tanto faz; não jogamos e Deus nos livre e guarde da roleta). Ter opiniões jurídicas, por exemplo, é pretender participar de grandes coisas, nomeadamente no contexto de um Estado Democrático de Direito no qual, em tese (e proposição) não há – ou não deveria haver – vácuo para o agir comunicativo, desde que posto em conformidade com o sistema e a principiologia jurídica. Sim: há – e deve haver – limites. Mas vão aí questões que fogem ao objeto deste ensaio, razão pela qual se recomenda pontofinalizar e, quebra, paragrafar. Vê? Também a gramática oferece guaridas.
Uma controvérsia acesa no Direito Empresarial brasileiro é a distinção entre atividades econômicas simples e empresárias. Uma controvérsia que é ainda mais acesa no que diz respeito às pessoas jurídicas: é possível colocar ontologicamente a investigação do que seja uma sociedade simples, em oposição do que seria uma sociedade empresarial? Em alguns sítios, sim; noutros, nota-se uma confusão, quiçá uma nódoa. Zonas cinzas, há quem diga (expressão que, de resto, aqui, ali, acolá e adiante, em sítios epistemológicos diversos). E tais espaços de incerteza não atendem aos que estão ávidos por segurança, carentes de certezas. O desafio remonta à entrada em vigor do Código Civil e, no entanto, segue como nuvens carregadas no fim da paisagem: uma tempestade que não se sabe se cairá, se é séria, se é picuinha ou toleima, se é tema que um olhar polido despreza e caçoa: não vai dar em nada.
Como demonstramos no “Manual de Direito Empresarial” (19.ed. Atlas, 2025) e em “Direito Societário” (14.ed. Atlas, 2022), a distinção entre sociedades simples e sociedades empresárias, matéria que gravita em torno dos artigos 966, cabeça e parágrafo único, e 982, cabeça e parágrafo único, do Código Civil. A grande dificuldade está na interpretação do que seria “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (artigo 966, cabeça), a caracterizar uma atividade negocial (econômica) como empresária. Que nível de organização qualifica uma empresa? Com qual estrutura organizacional o agir negocial (de circular bens ou de prestar serviços) é simples ou é empresário? O Código Civil não oferece elementos suficientes para dar uma segurança hermenêutica a essa discussão e, em consequência, o pau quebra entre os intérpretes (coisa que não é rara em se tratando de doutrinas jurídicas, calha recordar).
Não sem razão, muitos estudantes do Direito (se preferirem, pode-se usar a palavra estudiosos que, indubitavelmente, carrega maior garbo; doutrinadores, então… oxe! Supimpa!), entre os quais nos listamos, criticam a distinção propondo que se estabeleça uma disciplina uma para as atividades negociais. Basta recordar que nas primeiras páginas de muitas grandes empresas está um agir negocial que poderia ser definido como simples: tudo começou com um caminhão, um ônibus; o empresário que se registrou na Junta Comercial, cumprindo as determinações dos artigos 967 e 968 do Código Civil, e passou a vender livros em sua van para, então, abrir uma loja, duas, três, chegando a uma rede que se estende por várias unidades da federação. A pequena semente do jequitibá-rosa (o rei da Mata Atlântica, diz-se), quando germina, dá origem a uma árvore que pode ter 50 metros de altura.
Para apimentar o debate, o próprio Código faz, no plano das sociedades, um corte arbitrário: “Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.” Aliás, não só independentemente de seu objeto, mas de seu nível de organização, da complexidade de seu estabelecimento e de sua atividade, da estrutura. É por que é: dura lex, sed lex. A Lei 14.195/21 (conversão da Medida Provisória 1.040/21) poderia ter resolvido os incômodos dessa distinção cinzenta entre simples e empresária, mas os dispositivos que determinavam o fim da dúvida foram vetados pela Presidência da República: “em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa é contrária ao interesse público, pois promoveria mudanças profundas no regime societário e uma parcela significativa da população economicamente ativa seria exposta a indesejados reflexos tributários nas diversas legislações municipais e a custos de adaptação, sobretudo em momento de retomada das atividades após o recrudescimento da pandemia da covid-19. A imposição de obrigações fiscais acessórias representaria grandeza relevante na qualidade do ambiente de negócios. A imposição dessas obrigações às sociedades atualmente em funcionamento seria prejudicial ao ambiente de negócios.”
Então, aqui estamos: há atividades negociais empresariais (“atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” e aquelas desempenhadas por sociedades anônimas); há atividades negociais simples (sociedades cooperativas, por definição legal, além da atividade econômica para circulação de bens ou serviços que não seja organizada). E, apesar das páginas e páginas que se ocupam do tema, não se tem notícia (pode ser que estejamos desinformados!) de ações declaratórias de empresa e, em oposição, de ações declaratórias negativas de empresa. O que há são discussões tributárias sobre o que seriam atividades simples e atividades empresárias. Mas são sítios fiscais e não empresariais, é útil sublinhar. Aliás, a distinção tem se prestado a fim registrais (mantendo a possibilidade das sociedades simples, desde que não sejam Cooperativas – Leis 5.764/71 e 8.934/94 -, nos Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas) e a planejamentos tributários, tema que foge ao nosso campo de estudo.
A ausência de uma certeza sobre o que seria, ou não, organização da atividade econômica leva-nos a situações interessantes como a transformação da sociedade Sabor da Barra Comércio de Alimentos Ltda. de sociedade empresária em sociedade simples, como se verifica do julgamento do Recurso Especial 1.864.618/ RJ pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. No caso, uma sócia alegava a validade e a eficácia da transformação, com a transferência do registro da Junta Comercia do Rio de Janeiro (JUCERJA) para o Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Rio de Janeiro, “e, em consequência, as cláusulas do contrato social foram adequadas ao novo tipo societário, nos termos da legislação civil”, com regular arquivamento. A partir de então, o arquivamento de atos se fez em ambiente registral civil, incluindo a sua retirada da sociedade, o que afetaria as notificações e citações decorrentes de desconsideração da personalidade jurídica ou de redirecionamento de execuções fiscais ajuizadas contra a sociedade. A argumentação da sócia expressamente alicerçava-se no fato de que “o ato de registro, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é meramente declaratório”. Em suma, não caberia uma investigação sobre a natureza da atividade negocial, se simples ou empresária, devendo ser levada em consideração a declaração feita por meio do registro: será simples, se o arquivamento se der no Registro Civil das Pessoas Jurídicas; será empresária, se o arquivamento se der em Junta Comercial.
Os julgadores reconheceram que, “de fato, não obstante seja obrigatório o registro do empresário, por força do disposto no art. 967 do Código Civil, a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido da natureza declaratória do registro, o que permite o reconhecimento do empresário individual ou da sociedade comercial ainda que não registrados na Junta Comercial anteriormente ao início de suas atividades, bem como sua submissão ao regime jurídico empresarial.” Citou-se, como precedente, o Recurso Especial n. 1.876.697/MT. Entrementes, não tocaram a discussão por aí. Evitou-se o vespeiro: é possível a quem se definiu como atividade empresária definir-se como atividade simples? “Todavia, independentemente da natureza declaratória ou constitutiva do registro das alterações contratuais, determinados efeitos perante terceiros não poderão ser reconhecidos na ausência de registro. Veja-se que a questão se refere ao próprio exercício da atividade econômica pelo empresário individual ou sociedade empresária, cuja existência fenomênica não pode ser negligenciada pelo Direito. Assim, do exercício da atividade advém o reconhecimento de sua existência, embora a ausência do respectivo registro implique impossibilidade de gozo de alguns direitos ou prerrogativas. Situação dessemelhante, no entanto, se refere às alterações no contrato social, que, antes de transformadas em ato público pelo registro já podem modificar, internamente, a forma de existir da sociedade, embora a própria legislação condicione a produção de seus efeitos ao registro, como algures referido.”
Não se enfrentou a questão da “transformação de natureza” (de empresária em simples) por meio da transferência do ambiente registral. Optou-se por solucionar a pendenga por outro viés: embora a transformação de sociedade empresária em simples dera-se em 17 de setembro de 2004 (e a retirada da sócia efetivara-se pela sétima alteração contratual, averbada em 19 de janeiro de 2007), “a quarta alteração contratual, que transformou a sociedade em sociedade simples, foi arquivada em 20 de outubro de 2014”. A questão é relevante, mas deixa o problema conceitual de lado e, assim, a jurisprudência nacional sobre o tema segue fraca. Contudo, o ponto de decisão é, sim, relevante. É basilar e, sim, macula a tese defendida junto ao Judiciário. Dessa maneira, examiná-lo é relevante. Citando os artigos 1.150 e 1.151 do Código Civil, além do artigo 36 da Lei n. 8.934/1994, os ministros tomaram por base que “a lei condiciona os efeitos próprios do ato ao seu arquivamento na Junta Comercial ou, na hipótese de sociedades simples, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Tais efeitos retroagirão à data da prática do ato, se arquivados dentro de 30 dias de sua prática, ou na data do registro, se providenciados além deste prazo. A dicção dos dispositivos acima transcritos é linear quanto ao momento de produção dos efeitos, vale dizer, ultrapassados 30 dias da data da pratica do ato sem o competente registro, o ato somente será eficaz, notadamente em relação a terceiros, a partir do despacho que o conceder.”
Essa distinção entre as duas situações tem uma razão clara, destacaram os julgadores. “Os atos societários e modificações em seus atos constitutivos produzem efeitos intra-societários ou externos, em relação a terceiros. Naqueles, ainda é importante distinguir os atos entre os sócios, que os vinculam, e aquelas relações entre os sócios e a própria sociedade empresária, que pressupõe a incorporação aos seus atos constitutivos pelo registro. Nesse sentido, entremostra-se possível supor que eventual alteração no contrato social possa produzir efeitos desde logo, antes mesmo de seu registro na Junta Comercial ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, como a alteração do poder de administração da pessoa jurídica. No entanto, a produção de efeitos quanto a terceiros – aqui incluídos o Fisco, empregados, demais sociedades e mesmo consumidores – pressupõe que seja adequadamente formalizada e publicizada, a fim de que todos tenham o devido conhecimento.”
Consequentemente, prosseguiram os julgadores, a retirada de um sócio, “pela transferência de suas quotas, malgrado possa produzir efeitos quanto à modificação do poder de administração societária, não tem o condão de produzir efeitos quanto a terceiros antes da publicidade decorrente de seu registro. Nesse sentido – e embora estas questões refujam ao objeto da presente demanda -, ao se redirecionar a execução fiscal aos sócios administradores ou se ultrapassar o manto da personalidade jurídica da sociedade, atingir-se-ão aqueles que figuram como sócios administradores nos registros existentes e, não obstante tenham se retirado da sociedade, mantiveram os respectivos atos de forma privada. Não por outro motivo, o artigo 1º da Lei 8.943/94 prevê que a finalidade do ato registral é dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas mercantis, submetidos a registro na forma da lei.”
Reconheceu-se, portanto, uma questão prejudicial. “Nesse sentido, verifica-se que a transformação do tipo societário – de limitada para simples – exigia, primeiramente, seu registro na Junta Comercial para, após e em razão de seu novo tipo societário, ser registrado no Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Rio de Janeiro, como determina a legislação de regência. A ausência de continuidade do registro na Junta Comercial possibilitou que as ações fossem direcionadas contra a recorrente exatamente pelo fato de que, formalmente, ela figurava como sócia administradora naquela entidade registral.” Irretorquível. Houve uma falha no procedimento que dá sustentação à dimensão registral da corporação e, assim, os efeitos pretendidos não poderiam ser alcançados.
Em meio a isso, a questão segue em aberto: os parâmetros para a definição de um caráter simples e outro empresarial, ainda não se enunciaram judiciariamente, vale dizer, no plano da hermenêutica autorizada. Talvez os tribunais se calem por não ter importância a distinção; vão deixando como está para ver como fica, confiando no destino: apesar de posta em lei, a distinção não dará em nada pois a nada se adota: dizer-se simples ou empresário não desagrada a ninguém, salvo efeitos tributários que, a fogo e malho, moldam-se com ou sem arte nos planejamentos fiscais, nas defesas administrativas ou judiciais. Em suma: vamos como vamos (e vice-versa).
Com o Manual de Direito Empresarial é assim: aprende-se por meio de casos reais, facilitando muito na didática da disciplina.
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