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Sociedades Empresárias: mecanismos de investimento

Gladston Mamede
Gladston Mamede

05/09/2024

Capitalismo sem capital? Mesmo? Como? Pense nisso. Medite a respeito. Eis uma questão essencial do Direito Empresarial para qual poucos atentam. Uma questão que diz respeito à sua Teoria Geral, com implicações constitucionais. É o que iremos trabalhar neste ensaio. E o foco, como deixa claro o título, serão as sociedades empresárias por uma perspectiva incomum que desenvolvemos em em Estruturação Jurídica de Empresas (Editora Atlas, 2024): seu uso como um mecanismo de investimento.

Na maioria das vezes em que ouvimos exemplos de sociedades empresárias, fala-se de sócios que atuam combinadamente para tocar uma atividade negocial comum. No Brasil, há uma tendência de pensar sociedades como mecanismos para combinar esforços pessoais, um instrumento para o trabalho conjunto. Isso sempre nos incomodou; afinal, é muito pouco. Com o perdão da brincadeira, essa tendência de compreender as sociedades empresárias como mecanismo para atuação pessoal coletiva nos coloca no nível histórico do Mercantilismo. Aliás, é exatamente a ideia que está por trás da sociedade em nome coletivo. No resto do mundo, nos tais “países desenvolvidos”, já se está noutro nível histórico-econômico: o capitalismo, vale dizer, um ambiente econômico que reconhece a importância do capital e o valoriza (mais do que isso: busca atraí-lo e estimular sua conservação em atividades produtivas).

Sociedades como mecanismo de investimento em conjunto

A função deste pequeno ensaio descompromissado é chamar atenção para esse aspecto pouco exercitado do Direito Societário: sociedades usadas não para trabalhar junto, mas como mecanismo de investimento em conjunto. O desafio é que a maioria dos brasileiros, infelizmente, ainda não aprendeu a importância do capital e isso nos deixa tacanhos na visão, na postura, no comportamento, na ação empresarial. Nasce daí um Direito Empresarial nanico, com o perdão da provocação. Um Direito Empresarial que se ocupa de micro e pequenas empresas, quando muito de médias empresas. Um Direito Empresarial de sociedades profissionais, de parceiros, não de investidores. E, em função disso, todo um campo de oportunidades fica por se desenvolver, seja para advogados, seja para investidores, isto é, para capitalistas. Uma pena. Uma grande pena.

Você já ouviu falar da WEG Equipamentos Elétricos S/A? Uma empresa enorme que se destaca na produção e comércio de motores elétricos e afins. O capital investido na companhia, nos alvores de 2024, era de mais de seis bilhões de reais (R$ 6.504.516.508,00) e a assembleia geral aprovou sua elevação para R$ 7.504.516.508,00. De onde veio esse dinheiro, esse bilhão? Dos investidores, ora. Mas…. tiraram um bilhão do bolso e colocaram na empresa? Não. Deixaram de receber lucros (estavam contabilizados como reserva de lucros e como lucros retidos para investimentos), aceitando capitalizá-los, ou seja, reverter os lucros em investimento. Nada mais capitalista: não quero gastar esse dinheiro! Quero investir para ter mais dinheiro. Gente como Livia Voigt, que ficou famosa quando a Revista Forbes afirmou ser a bilionária mais jovem do mundo: 19 anos. Uma brasileira! O segundo lugar seria um italiano. O que ela faz na empresa? É sócia. Trabalha lá? Não! Por que tem direito a receber lucros? Porque ela mantém capital investido na companhia: ela é sócia. E recebe lucro por isso. Reiteramos: lucro é a remuneração pelo capital investido, como o aluguel é a remuneração do imóvel locado e juros são a remuneração pelo capital emprestado (mútuo).

Lucro não tem nada a ver com trabalho. É preciso escrever até encher a lousa: lucro é a remuneração pelo capital investido. No mundo inteiro há uma enorme procura por capital, ou seja, por investidores. Afinal, o capital viabiliza a constituição de empresas, de empreendimentos. Então, há trocentos atrativos: poupança, fundos disso e daquilo, empréstimos (cédulas, notas etc) e, enfim, participações societárias (quotas ou ações). Por aqui, isso tudo parece assunto para bancos, um erro grave, como demonstramos em Estruturação Jurídica de Empresas (Editora Atlas, 2024). Por um lado, talvez seja onde o capital renda menos para quem investe. Pelo lado oposto, é de onde o capital sai mais caro, mais custoso, para quem o toma, quem o usa. Mas é por aí nossa cultura empresarial: quem tem capital, investe em bancos, recebendo pouco; quem precisa de capital, financia-se em bancos, pagando muito: juros. Se quem precisa de capital recorresse a sócios, não pagaria juros, mas dividendos; e eles só são pagos quando a sociedade registra lucro. Se dá prejuízo, nada se paga: os sócios correm risco empresarial pelo capital investido. É preciso valorizá-los e respeitá-los.

Quem não aprende a importância do capital, não vai entender o capitalismo, nem vai conseguir estabelecer-se em seu meio. Em março de 2024, a BYD do Brasil Ltda, sociedade que se dedica à fabricação de veículos, anunciou que o capital investido no país seria elevado de R$ 3 bilhões para R$ 5,5 bilhões. De onde vem esse dinheiro, hein? A maioria pensa num dono que assina um cheque. Na verdade, essas operações envolvem uma engenharia de capital que é, inclusive, jurídica, embora envolvendo outras disciplinas.  Deixe-nos dar uma ideia: em 2024, o capital social do Banco Itaú era de pouco mais de 90 bilhões de reais (R$ 90.729.000.000,00); para reunir (e manter!) esse dinheiro, usou-se o mecanismo jurídico da sociedade anônima aberta: 9.804.135.348 ações. Quem investe no Itaú (por exemplo, comprando uma ação ordinária em abril de 2024 por pouco mais R$ 28,00) o faz com a perspectiva de receber dividendos, ou seja, uma parcela do lucro gerado pela empresa. E essa é uma engenharia de capital em nível simples: sócios.

Vamos encher a lousa, novamente: lucro não tem a ver com trabalho. A remuneração pelo trabalho a bem da empresa é outra; tem outra natureza jurídica. Aqueles que trabalham nas atividades por meio das quais a empresa é tocada adiante, se administradores, irão receber pro labore; se empregados – e o sócio pode ser um empregado – irão receber salário; há outras formas diferentes, a depender do tipo de trabalho que se presta à companhia. Até bonificações. Mas, insistimos, isso não tem nada a ver com lucro, que é a remuneração pelo capital investido e isso está na raiz do capitalismo e, quando aprendermos isso, passaremos a vivenciar um ambiente econômico diverso. Por exemplo, deixamos de pensar em capital em termos de financiamento bancário, ou seja, deixamos de contemplar como alternativa única de engenharia de capital aquele que é um dos meios mais caros: empréstimo com juros elevados e garantias reais e/ou fidejussórias. Somos tolos. É esse o estágio da cultura jurídico, econômica e financeira do mercado brasileiros.

E como deveria ser? Empresas começam com ideias, é claro: fazer isso ou aquilo. Se o processo é responsável, passa-se a uma fase de avaliação de mercado. Há mesmo tal oportunidade ou é um delírio? Concomitantemente, é recomendável fazer um levantamento e quantificação das implicações: mão-de-obra, facilidades ou dificuldades logísticas e afins. Isso implica um investimento de quanto (e em quanto tempo): eis o trabalho de engenharia de capital: levantar o montante de investimento necessário para levar a empresa adiante. E, como já dissemos e temos repetido, parte desse trabalho é jurídico: como levantar tal capital. Por exemplo: parte do investimento será para o imóvel a ser usado: qual o valor de comprar/construir? É possível trocar a imobilização (comprar/construir) por outra estratégia jurídica? Há locação possível? Qual o valor? Qual o tipo de contrato? Há quem se interesse por um contrato built to suit? E o maquinário? Será comprado (imobilização de capital) ou alugado? Arrendamento mercantil (leasing)? A tecnologia jurídico-empresarial se une a outras tecnologias (financeira, contábil, engenharia de produção, etc). 

Retomemos: uma das formas mais elementares e baratas de alocação de capital é a sociedade. Estudando com atenção o Código Civil, será possível observar que o legislador pensou as sociedades profissionais, naquelas em que há atuação pessoal dos sócios a bem da atividade negocial, como sendo uma sociedade simples. As sociedades empresárias foram pensadas como mecanismos de investimentos: (1) sócios, que aportam capital; (2) administrador societário, que faz a representação jurídica da empresa; (3) gerente(s) que fazem a gestão da empresa, que tocam a atividade. Por seu investimento, os sócios são remunerados com o lucro, quando ele ocorre; pode não ocorrer. Quem assume a condição de sócio, assume o risco do negócio. Por sua atuação como representante da sociedade, o administrador recebe pro labore. Por fim, o gerente receberá pro labore ou salário, conforme o caso e suas peculiaridades, sendo que ambos, administrador e gerente, podem ainda receber bonificações e prêmios. Funções diversas e com finalidades diversas.

Não há capitalismo sem capital. Temos que aprender isso (e por isso este ensaio é tão repetitivo). Empresas demandam investimentos; empreendimentos demandam investimentos. Se o empreendedor tem o suficiente, investe o que é seu. Fácil. Aliás, a forma mais simples de engenharia de capital. Tenho R$ 100,00, compro 100 latas de cerveja; vendo a R$ 3,00 na porta do estádio. Lucro R$ 200,00 (se não houver outros custos e, ademais, esquecendo minhas obrigações tributárias). O carrinho é pesado? Vamos nós dois: uma sociedade: 50 conto’ de cada um, 100 mangos para cada um. O que acha? Mas a engenharia para grandes indústrias, grandes concessões, grandes iniciativas, é bem mais complexa, demanda um planejamento mais exaustivo e, enfim, uma tecnologia (econômica, financeira, contábil e jurídica) mais complexa.

Mas veja a fazenda que o pai dele lhe deixou de herança. Era do avô. Está improdutiva e pode mesmo ser desapropriada. Uma pena. É um solo perfeito para plantar café. Mas para fazer algo bem feito, ele precisaria investir alguns milhões, o que não tem. O banco não lhe emprestaria o suficiente para montar tudo o que é preciso, mesmo que a seja potencialmente muito boa. E seguro: café! Eis o que capitalistas querem: encontrar oportunidades para investir seu capital e obter retornos vantajosos. E, se há capitalistas financeiros, que o fazem por meio de mútuos e juros e garantias, há outros tipos de capitalistas, a incluir os que aceitam compor sociedades em comandita simples (assumindo a posição de comanditários), sociedades limitadas, sociedades anônimas, sociedades em comandita por ações (acionistas sem poder de direção). E, assim, constituindo uma sociedade, o negócio se viabiliza. Isso no mundo todo. Aqui, não sabemos lidar com sócios. O dono da fazenda desconfia do capitalista e reclama da vida. Perde uma excelente oportunidade simplesmente por não entender o que é o tal capitalismo que, paradoxalmente, defende com unhas e dentes nos movimentos políticos.

Claro que não é tão simples e, justamente por isso, é preciso advogados, para não falar dos profissionais de áreas lindeiras, para compor as melhores soluções. Nada mais é tão simples. Charretes eram simples, mas não a usamos mais. Usamos carros que, se tinham carburadores, passaram a ter bicos injetores eletrônicos e, agora, têm movimentação híbrida (combustão e elétrica) ou motor elétrico. Não só os veículos se modernizaram; as sociedades empresárias também. Empresários precisam se modernizar. A estruturação jurídica de empresas precisa atender aos desafios contemporâneos, nomeadamente num ambiente de economia mundializada, concorrência global e acirrada. Como temos ressaltado em diversos ensaios, há tecnologia jurídica apropriada para atender a esta demanda e o mercado em geral precisa aprender que contratar bons advocados societaristas não é gasto, é investimento.

História real

Para arrematar, vamos contar uma história real, embora omitindo os dados que particularizem os envolvidos. Se bem que a história é pública e está contada por aí, na internet e em revistas especializadas. Faz sucesso em Portugal uma sociedade empresária cujo objeto social é a produção de vinhos. Sim, uma vinícola. Constituída há alguns anos, sua primeira safra chegou ao mercado fazendo sucesso. Dois de seus vinhos brancos foram eleitos os melhores de 2023. Não é pouco. Aliás, se nos permitem, é muito. Entrar no mercado chutando a porta. Um sucesso. São 10 sócios aqui de Belo Horizonte. Isso mesmo: uma sociedade empresária no Dão, Portugal, cujos sócios são da Capital das Alterosas onde, aliás, residem, em sua maioria.  Quer mais? Nenhum deles entende de vinhos mais do que beber e, obviamente, não trabalham na vinícola. Uniram-se pela oportunidade de um investimento empresarial. São todos capitalistas experientes, com empreendimentos diversos.

Noutras palavras, o uso que se fez da sociedade empresária foi justo o que estamos destacando neste ensaio. Dez capitalistas de Belo Horizonte calcularam o que seria necessário para montar uma empresa produtora de vinhos em Portugal, constituíram a sociedade, nomearam um administrador societário (um dos sócios que, atualmente, vive em Lisboa), aportaram o capital com que se comprou uma quinta (a propriedade rural) no Dão, montaram-se as instalações (prédios, maquinário, áreas produtivas) e tudo o que mais se fez necessário. O administrador contratou enólogos para gerenciar a atividade, contratou pessoal para o trabalho. Determinou-se a elaboração de marca, de rótulo, compra de garrafas etc. E, por esse trabalho de administração, ele recebe o respectivo pro labore (e, como sócio, receberá lucros, por igual). Mas ele trabalha demais na administração! Aumente-se o valor do pro labore, oras! Não é preciso ser salário mínimo, não! 

E o que acontece: a empresa (e a sociedade) toca-se assim: a partir do investimento dos sócios, com atos jurídicos firmados pelo administrador societário, com atividades realizadas por gerentes e prepostos em geral. Ao fim de cada exercício, levanta-se o balanço contábil. Segundo cálculos previamente feitos, serão necessários alguns exercícios até que os investimentos e custos iniciais sejam amortizados. A partir de então, a sociedade deverá passar a distribuir entre seus sócios os lucros verificados, vale dizer, aqueles que investiram para formar o capital social. Como se diz por aí: cada um com seu cada qual: lucros para os sócios; pro labore (e, eventualmente, bonificações) para o administrador; salários e outras pagas (conforme a natureza dos respectivos contratos) para gerentes, trabalhadores, terceirizatários. O que dá sustentação a tudo isso? Um conjunto de plataformas normativas. No caso, pelo que sabemos, além da plataforma normativa primária (ato constitutivo), há uma plataforma normativa secundária (acordo de sócios). Não viram necessidade, ainda, de constituir plataformas normativas terciárias, até onde se noticiou. E o vinho é um primor, temos que dizer.


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