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Sociedade Por Ações – Arquivamento Dos Atos Constitutivos – Cancelamento – Registro De Nomes Geográficos, de Antão De Morais

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Sociedade Por Ações – Arquivamento Dos Atos Constitutivos – Cancelamento – Registro De Nomes Geográficos, de Antão De Morais

REVISTA FORENSE 164

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10/07/2024

– Não é lícito à Junta Comercial cancelar o registro feito, sem ofensa do direito que a parte adquiriu e que só pode perder na instância judiciária, em processo contencioso.

– Ninguém pode arrogar-se o monopólio ou o privilégio sôbre nomes geográficos, ou a denominação necessária ou vulgar.

PARECER

1. Em 20 de novembro de 1952, constituiu-se, por escritura pública, a Companhia Paulista de Financiamento.

2. Quando essa Companhia requereu à Junta Comercial o arquivamento de seu ato constitutivo, não obteve deferimento, sob pretexto de que já havia outra com nome idêntico. À vista disso, alterou a sua denominação para Companhia Piratininga de Financiamento, obtendo então, em 19 de dezembro de 1952, o pretendido arquivamento.

3. Em 27 de fevereiro de 1953, a Junta Comercial comunicou por ofício à Companhia Piratininga de Financiamento, que deliberou cancelar o registro feito, a menos que, dentro de 10 dias, fôsse novamente alterada a denominação. Respondeu a Companhia que, sem conhecer os motivos da decisão, nada podia fazer. Em 9 de março de 1953, informou a Junta Comercial que a decisão se baseara em reclamação da Emprêsa Territorial Piratininga Ltda., registrada desde 1924, e no parecer do procurador da mesma Junta, fundado no art. 50, nº 10, do decreto nº 10.424, de 11 de agôsto de 1939.

4. Nesse ínterim, pretendendo a sociedade incluir em seu objeto operações de crédito, financiamento e investimento, nos têrmos dos decs.-leis ns. 7.583 e 9.803, respectivamente, de 25 de maio e 16 de agôsto de 1945, e da portaria nº 88 expedida pelo ministro da Fazenda para execução daqueles decretos-leis, promoveu perante a competente repartição federal as medidas necessárias para efetivar a aludida alteração.

5. Deixou, por isso, de atender à notificação da Junta Comercial, pelo que esta, em 25 de fevereiro de 1954, concedeu novo prazo de 30 dias para ser feita à reclamada modificação da razão social da consulente. Esta ponderou estar à espera da autorização solicitada à Superintendência da Moeda e do Crédito. Todavia, expendeu as razões pelas quais julgava ilegal a alteração indicada pela Junta Comercial, propondo-se, entretanto, a oferecer, para arquivamento, os atos relativos à modificação dos seus Estatutos, caso o arquivamento fôsse concedido mesmo antes da aprovação pedida à repartição federal já mencionada.

6. A Junta não só indeferiu êsse requerimento, como, em sessão de 7 de maio de 1954, cancelou o registro dos atos constitutivos da Companhia.

7. Ante o exposto, pergunta-se no primeiro quesito:

“Poderia a Junta Comercial do Estado, com fundamento no art. 50, nº 10, do Dec. nº 10.424, de 1939, cancelar o arquivamento dos atos constitutivos da consulente?”

Não podia. Foi um ato ilegal, que não deve prevalecer. É o que passarei a justificar.

8. As firmas e razões comerciais continuam reguladas pelo dec. nº 916, de 24 de outubro de 1890, salvo acréscimos e ligeiras alterações posteriores. O sábio autor dêsse decreto, conselheiro CARLOS DE CARVALHO, confessou que uma das fontes em que se inspirou foi o direito suíço. Nada mais natural, portanto, do que invocar-se a lição dêsse direito para interpretar as dúvidas do nosso. Ver-se-á, então, que lá, como aqui, predomina o princípio da intangibilidade do registro feito. Antes de realizá-lo, a Junta Comercial, pode e tem o dever de verificar se o registro ofende a lei. Na hipótese afirmativa, cumpre-lhe negar o arquivamento. Mas, efetuado êste, já não lhe é lícito cancelar o registro, sem ofensa do direito que a parte adquiriu e que só pode perder na instância judiciária, em processo contencioso. Deferido o arquivamento, a instância administrativa exauriu a sua competência. Nada mais pode fazer.

9. E o que na Suíça ensinam os que trataram ex professo do assunto. SIGMUND, “cuide des préposés au registre du Commerce de la Confédération Buisse”, Genève et Bále, 1892, pág. 57, observa:

“As contestações a propósito de uma inscrição já efetuada não se devem confundir nem com as retificações nem com as queixas contra atos do preposto ou da autoridade de vigilância. Essas contestações podem surgir entre as partes (sócios por exemplo) ou emanar de terceiros que se julguem lesadas pela inscrição. Nos dois casos o preposto, dado que por ocasião da inscrição era regular a forma dos atos, não deve imiscuir-se na contestação, remetendo para os tribunais os queixosos”.

10. Não ensina coisa diferente o professor VALTER BURCKHARDT, “Le Registre du Commerce”, Editions Delachaux et Niestlé Neuchâtel, s. d., pág. 119, número 1.549:

“Nos têrmos do art. 30 do regulamento de 6 de maio de 1890 sôbre o registro do comércio, cabe aos tribunais resolver as questões que podem surgir entre particulares a propósito de cancelamentos ou modificações de razões de comércio” (art. 876 CO).

“Aplicando o art. 868 CO, o preposto do registro deve examinar de ofício, quando fôr requerida uma inscrição, se a nova razão se distingue claramente das que já estão inscritas. Contudo se, feita a inscrição, o titular, de uma outra razão se queixa de que ela não se distingue assaz claramente da sua, é ao Poder Judiciário que deve dirigir-se”.

“O preposto do registro não pode anular de ofício uma inscrição regularmente operada senão quando, por fôrça de modificações de fato, por exemplo, a dissolução de uma sociedade, a razão já não mais corresponde à verdade”.

11. Êsse princípio de que o registro efetuado é intangível, por via administrativa, aplica-se a qualquer espécie de registro, salvo autorização legal expressa. Ouça-se a respeito a lição do grande jurista SÁ PEREIRA, quando desembargador da Côrte de Apelação do Distrito Federal (“Rev. de Direito”, vol. 62, pág. 309):

“O mais ligeiro exame patenteia que aos juízes falece competência para mandar administrativamente cancelar, emendar e alterar transcrições de imóveis. O regime instituído pelo Código Civil assenta na intangibilidade do registro“.

“Nenhuma segurança restaria mais à propriedade imobiliária, nenhuma fé poderiam mais inspirar os livros do registro, se aos juízes ou a quaisquer outras autoridades fôra dado o arbítrio de, por simples despacho, alterar-lhes os assentos, mandando cancelar inscrições ou substituir umas por outras”.

Não é da competência do oficial do registro apreciar vícios do ato jurídico (SERPA LOPES, “Registros Públicos”, volume 4, nº 604).

12. A lição de SÁ PEREIRA tem tôda a aplicação ao cancelamento pelas Juntas Comerciais de arquivamentos já realizados. Um dos fins, sem dúvida o principal dêles, visados pelo registro, é a criação da personalidade jurídica (Cód. Civil, artigo 18; dec.-lei nº 2.827, de 28 de setembro de 1940, arts. 50, 53 e 54; dec. número 4.857, de 9 de novembro de 1939, art. 127). Criada a pessoa jurídica entra esta a desenvolver a trama de suas Inúmeras relações de negócios. O que ela pratica é ato dela e não dos sócios. Como cortar, meses ou anos depois, por mero procedimento, sem forma nem figura de juízo a vida que se prende a inúmeros interêsses?

13. Foi para evitar essa desastrosa conseqüência que o art. 53 do dec.-lei nº 2.627 deu ao Registro do Comércio a função saneadora de impedir o arquivamento das sociedades anônimas, quando não conste dos atos constitutivos a observância das prescrições legais ou nêles figurem cláusulas contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes. Mas, se por negligência ou imperícia o arquivamento se realizar, já não pode a Junta reparar ex officio o êrro cometido. É o que ensina TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE, “Sociedade por ações”, 2ª ed., vol. 1, nº 39, pág. 83, tratando exatamente da hipótese da consulta:

“O Registro do Comércio pode, é claro, independentemente de oposição da interessada, negar o arquivamento, com o fundamento na identidade ou semelhança de nomes”.

“Se, entretanto, não houve oposição e a sociedade anônima, que adotou denominação idêntica ou semelhante à de outra, conseguir o arquivamento dos seus atos constitutivos, sòmente por via judiciária poderá à prejudicada pleitear a modificação”.

A lição não podia ser outra sem contrariar o art. 167 do dec.-lei nº 2.627 que exige, expressamente, a via judicial para impedir o funcionamento da sociedade que tiver objeto ou fim ilícito, ou desenvolver atividade ilícita ou proibida por lei. Se neste caso, de máxima gravidade, não se dispensa a intervenção judiciária, evidente é que não se pode dispensa-la em se tratando de simples semelhança de nomes.

14. Recordem-se os fatos. Constituiu-se a Companhia Paulista de Financiamento. Negado o seu arquivamento, por haver outra com idêntico nome, foi a denominação alterada para Companhia Piratininga de Financiamento. Fêz-se então o arquivamento. Surgiu, todavia, com, a sua reclamação a Emprêsa Territorial Piratininga Ltda. Já se vê a impossibilidade de confusão para o indivíduo atento. Para o desatento a confusão não provirá da semelhança dos nomes, mas da desatenção; porque, na verdade, se ambas as denominações têm o nome Piratininga, a distinção é facílima, dado que uma é sociedade anônima e outra sociedade por quotas. Uma é emprêsaterritorial. A outra companhiadefinanciamento. Os objetos são, pois, diferentes, separando-se cada qual no exercício de seu ramo próprio, sem possibilidade de uma invadir a clientela da outra. Em todo o caso, o temor de confusão e de concorrência desleal não constitui motivo de ordem pública que autorize a intervenção oficial da Junta Comercial. Os interessados devem apurar em juízo as suas diferenças. E o que me seria fácil esclarecer com inúmeras autoridades, mas, para não sair do terreno da consulta, limitar-me-ei a invocar apenas uma monografia especializada. Refiro-me à de STEIGER, “Les raisons de commerce en droit suisse”, Editions polygraphiques S.A., Zurique, 1939, pág. 59:

“As pretensões que derivam da concorrência desleal… não têm nenhum caráter de interêsse público, mas são simples direitos privados que os lesados têm a faculdade de propugnar”.

15. Acrescem duas considerações capitais: a primeira, que só a confusão evidente é que autoriza a Junta a intervir; a segunda, é que o nome Piratininga não pode ser monopólio de ninguém. Quanto ao primeiro ponto, ainda tenho aberta diante de mim a lição de STEIGER, loc. cit., pág. 61:

“É exclusivamente ao tribunal competente para conhecer do caso que cabe decidir se duas razões de comércio se distinguem evidentemente (asseznettement) uma da outra”.

VALTER BURCKHARDT, loc. cit., página 121, nº 1.549, transcreve a seguinte decisão do Conselho Federal:

“Le préposé au registre, dit-il, n’aurait pu refuser d’inscrire la raison annoncée plus tard que si elle avait été identique à celle que était inscrite. Quant à savoir si les deux raisons se distinguaient asseznettement l’une de l’autre, c’est une question qui relevait non pas des autorités administratives, mais des tribunaux”.

Em seguida, VÁLTER BURCKHARDT expõe o seguinte caso, que a Junta Comercial deve ponderar com o devido cuidado:

“No início de 1912, o banco nacional pediu ao departamento de justiça e polícia que convidasse o preposto do registro de comércio de Genebra a recusar a inscrição de um novo estabelecimento financeiro – o Banco Nacional e de Paris – porque poderiam resultar confusões lamentáveis entre os dois estabelecimentos.

“Mas, o departamento rejeitou o pedido. As autoridades administrativas, disse êle, não têm que se ocupar de saber se uma razão se distingue suficientemente de uma outra. Esta questão é da competência dos tribunais. A inscrição de uma razão não pode ser recusada de ofício senão quando uma razão absolutamente idêntica já estiver inscrita (que si une raison absolument identique est déjà inscrite)”.

16. No “Código da Propriedade Industrial” de CARMO BRAGA, 2ª ed. artigo 155, lê-se:

“Qualquer palavra, denominação necessária ou vulgar, firma ou razão social, letra ou algarismo, sòmente servirá para êsse fim (marca de indústria ou de comércio) se revestir forma distintiva”.

Mas, então a forma distintiva é que constituirá o privilégio, porque a denominação necessária ou, vulgar pertence a todos. O mesmo com relação aos nomes geográficos ou de localidades (arts. 156 e 157). JOÃO DA GAMA CERQUEIRA, “Tratado da Propriedade industrial”, volume I, nº 199, pág. 507, ensina que os nomes geográficos não podem ser objeto de propriedade:

“Embora sustentemos a doutrina da propriedade imaterial sôbre as marcas e o nome comercial, não a julgamos aplicável aos nomes de localidades. Não se verifica, no caso, a mesma relação jurídica que existe entre o sujeito do direito e a marca ou o nome comercial. Não existe, também, o objeto do direito, pois, na realidade, os comerciantes e industriais estabelecidos em certa localidade não possuem direito sôbre o nome que a designa, mas apenas o direito de usá-lo”.

17. A primeira ilegalidade, praticada pela Junta, interditando o nome Paulista, constante da primeira denominação, repete-se na segunda proibição referente ao uso do nome Piratininga. O uso dêsses nomes pertencem a todos os habitantes de São Paulo. Ninguém pode arrogar-se privilégio ou monopólio sôbre êles. Como denominação necessária e vulgar, ou como nome geográfico, todos os paulistas podem empregá-lo em suas marcas de indústria ou de comércio, bem como em suas razões sociais ou nomes comerciais, contanto que adotem forma distintiva, para evitar êrro ou confusão e a conseqüente concorrência desleal. Não cabia à Junta intervir nessa matéria, uma vez que o registro já se efetuara. Quem legisla sôbre Juntas Comerciais é a União Federal, não cabendo aos Estados nem à legislação supletiva ou complementar (Constituição federal, arts. 5º, nº XV, letra e, e 6º). O art. 50, nº 10, do dec. nº 10.424, de 11 de agôsto de 1939, está, portanto, revogado pelo dec.-lei nº 2.627, que disciplina a matéria nos arts. 3º, § 2º, e 53. A oposição do interessado, por via administrativa, termina com o arquivamento. Feito êste, só resta a via judiciária, como bem ensina TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE, em seu citado comentário ao art. 3º do dec.-lei nº 2.627, aliás de inteira conformidade com o disposto no artigo 10, § 1º, do dec. nº 916, de 1890, ainda em inteiro vigor no ponto em que determina que só por via judiciária se pode cancelar o nome comercial já registrado.

18. No sistema do dec.-lei nº 2.627 a sociedade anônima cujos atos constitutivos foram arquivados, não é nula, mas apenas anulável, por vícios ou, defeitos. Em princípio, diz GUDESTEU PIRES, “Manual”, nº 30, pág. 67, a concessão do arquivamento sana todos os vícios da constituição. Os que após o arquivamento se verificarem, só dão lugar à anulação judicial, como acontece com os atos simplesmente anuláveis (MIRANDA VALVERDE, loc. cit., nº 260, in fine). Pronunciando de oficio a nulidade e ordenando o cancelamento do registro efetuado, a Junta Comercial violou o disposto nos arts. 152 do Cód. Civil e 155 do decreto-lei nº 2.627. Seu ato não pode prevalecer. O legislador visou por todos os modos consertar em vez de destruir (GUDESTEU PIRES, loc. cit., pág. 93). A Junta, uma vez efetuado o arquivamento, nada mais tinha que fazer, senão abster-se. Preferiu, porém, destruir.

19. Indaga-se no segundo quesito:

“Que outra disposição de lei poderia legitimar, o procedimento da Junta Comercial do Estado?”

Nenhuma. É o que decorre do que se expôs com relação ao primeiro quesito.

20. O terceiro e último quesito reza: “Não se encontra em vigor o decreto nº 1.236, de 1904, e, segundo o art. 10 dêsse diploma, não se acha prescrito qualquer direito para demandar a nulidade do arquivamento dos atos constitutivos da consulente?”

Doutrina e jurisprudência afinam no sentido de estar em vigor a prescrição de seis meses (pareceres de ASCARELLI e GAMA CERQUEIRA na “Rev. dos Tribunais”, vol. 159, págs. 13 e 17; acórdão da 3ª Câmara na mesma revista, pág. 205).

Também a 5ª Câmara entende ser de seis meses o prazo da prescrição (“REVISTA FORENSE”, vol. 80, pág. 370). Veja-se ainda, na revista “Patentes e Marcas”, 1933, pág. 110, outro parecer do Dr. GAMA CERQUEIRA no sentido da vigência da prescrição de seis meses.

21. Observe-se, por último, que se a repartição federal, a quem se pediu autorização para funcionamento da sociedade de investimento, em que se transformou a consulente, conceder a autorização solicitada, já a Junta Comercial não poderá interferir, desaprovando o que foi aprovado. E a lição de TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE.

E dou, assim, por encerrado o presente parecer.

Antão de Morais, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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