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Por que advogados não oferecem o contrato de sociedade em comum

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Por que advogados não oferecem o contrato de sociedade em comum?

Gladston Mamede
Gladston Mamede

27/05/2024

O agir advocatício empresarialista não é apenas um fazer para agora. O ato de agora contempla (deve contemplar) o futuro: deve funcionar para a continuidade. Noutras palavras, é virtude ter um olhar ampliado que foca o presente sem perder a referência do prolongamento. A melhor compreensão da empresa, inclusive no que diz respeito ao Direito, é aquela que não se atém apenas ao atual, mas considera a evolução e seus efeitos. Em suma, ao redigir o ato constitutivo ou um acordo de sócios, é preciso assimilar o transcurso do tempo como referência inafastável.

É indispensável ter uma visão integrada quando se trabalha com assessoria e consultoria jurídica empresariais. O contencioso é reativo, inclusive face ao contraditório. Planejamento e acompanhamento jurídicos devem ser proativos, propositivos. É um fator de qualidade. E há que tomar a empresa como um processo, ou melhor, como um feixe de processos complementares. Há um iter corporativo e o advogado lhe é oportuno, para dizer o mínimo. Veja que o Direito reconhece que esse caminho (ou processo) principia antes mesmo da criação da pessoa jurídica, ou seja, antes do seu registro. A atribuição da personalidade jurídica pelo arquivamento dos atos constitutivos é parte de um processo que se principia antes. O iter corporativo tem início na formação da vontade que, nas sociedades pluripessoais (com mais de um sócio), constitui-se sob a forma de sinalagma, de acordo. Dali avançará por entre vários atos (comissivos ou omissivos) que se sucedem ao longo do processo; antes até o registro, insistimos. Aliás, mesmo que o processo seja abortado e não se chegue ao registro, há atos jurídicos (uma vez mais, comissivos ou omissivos) dos quais se pode retirar consequências, a incluir a responsabilidade civil, como exemplo fácil. Não são movimentos desprezíveis ou desconsideráveis.

Sociedade comum

Neste contexto, recordem-se os artigos 986 a 990 do Código Civil, a disciplinar o que chamou de sociedade em comum, pensada pelo legislador como um momento anterior à personificação da sociedade contratual, pois, logo no início da norma, usa uma oração subordinada adjetiva restritiva: enquanto não inscritos os atos constitutivos (artigo 986 do Código Civil). Algo extremamente salutar, mas que não foi assimilado pela prática jurídica e empresarial dominante. Aliás, os casos em que se faz correta contratação da sociedade em comum são raríssimos. Assustador é perceber que o perfil de profissionalismo e tecnicidade jurídicas que planejou o legislador malogrou na prática jurídica e empresarial. E assustador em face à classe advocatícia a quem caberia dar concreção àquelas disposições: um serviço profissional que deveria ser oferecido e prestado, mas do qual se abre mão.

Dirão tratar-se de burocracia apenas quando, na verdade, o regulamento da sociedade em comum traz vantagens para os envolvidos e para terceiros: cria segurança. A verdade é que a advocacia empresarial tem um produto/serviço na sociedade em comum que pode contribuir para que não haja da crise, senão mesmo incentivos aos bons resultados; ou, havendo conflitos, para oferecer instrumentos de garantia, de segurança. Mas é um benefício pouco conhecido pelo mercado empresarial, ou seja, por sua clientela. Aliás, tudo o que se refere à estruturação e reestruturação jurídicas, considerando a maior parcela das empresas. Isso mesmo: milhões de empresas precisam desse trabalho de advocacia, mas não o buscam. E não o buscam porque não sabem que precisam. 

 A bem da precisão, esses serviços de advocacia (criar um arcabouço normativo personalizado que dê melhor tradução e proteção para a sociedade e a empresa não são bem compreendidos pelos clientes que, assim, desinteressam-se. E não há aconselhamento que os estimule a compreender o ganho de bases jurídicas que melhor se encaixem em seus perfis. Na quase totalidade dos escritórios de advocacia, a regência da fase de organização da sociedade (a fase pré-registro) não é um serviço/produto que consta da prateleira.

Estruturação de empresas

Há uma questão que deve ser destacada: quando começa o planejamento jurídico? A partir de quando se deve compreender o desafio jurídico da estruturação corporativa? Com a constituição da pessoa jurídica, ou seja, com o registro dos atos constitutivos? Claro que não. É anterior! Desde que as partes – aqueles que decidem por investir num negócio e constituir uma sociedade – se ajustam, o iter corporativo principia-se: o processo tem curso. O próprio Código Civil reconhece que a contratação da sociedade antecede o seu registro. Desde quando as partes ajustaram entre si que irão constituir uma pessoa jurídica para explorar uma atividade negocial, já há um contrato de sociedade: a sociedade em comum. Os atos desenvolvidos ao longo do processo de constituição da pessoa jurídica e do estabelecimento em que atuará são atos de execução desse contrato. A primeira coisa que se deveria fazer, imediatamente após a decisão de montar um negócio e constituir uma sociedade , seria procurar um advogado para dar bom andamento a tudo: não apenas avançar nos atos jurídicos de constituição da pessoa jurídica, mas, já de princípio, dar regulação ao período formativo, protegendo todos os envolvidos.

Eis uma falha de assistência aos clientes, no período formativo, que, lamentavelmente, reflete um profissionalismo deficiente. É certo que na maioria dos casos os fatos desenrolam-se bem e chega-se à constituição da pessoa jurídica sem sobressaltos ou conflitos. Mas fiar-se pela maioria dos casos é referência que desautorizaria todas as medidas de segurança que, como se sabe, não servem para “a maioria dos casos”: sinistros são a exceção, mas ocorrem e, portanto, é preciso haver cautela para evitar danos maiores, como o cinto de segurança dos trabalhadores no alto das construções e/ou edificações. E, obviamente, há – e deve haver – medidas de segurança no Direito: pensá-las e executá-las é próprio da profissão, é um serviço, é trabalho. Grande parte dos dramas e problemas que resultam de um processo formativo frustrado seguido de litígio judicial longo e desgastante se dá por conta do desprezo à tecnologia aplicável para o iter corporativo em seus momentos anteriores ao registro.

Detalhe: não é uma tecnologia gerada meramente pela doutrina ou, pior, oculta em escritórios de advocacia como segredo profissional. É o Código Civil que não apenas a posiciona, como define grande parte dos assuntos que lhe concerne. Não se trata de um voo às cegas. É uma ferramenta positivada e, ainda assim, desprezada, legada a um incompreensível desuso. É um serviço que, sim, é útil para os clientes e que deixa de ser prestado em risco ao(s) cliente(s). O afastamento dos riscos já o justifica. Como se não bastasse, a seriedade com a fase formativa promove uma sensação, entre os envolvidos, de pertencimento, o que é muito positivo. Será melhor constituída da sociedade empresária (ou simples, inclusive profissional), se os envolvidos se engajarem, se estiverem motivados e sentirem-se próximos mesmo antes do registro.

Ademais, a existência de um instrumento de contrato dá maior segurança às relações jurídicas. Um instrumento que registre o que se acertou até então, que confesse as intenções das partes, o que se espera de seu comportamento, as obrigações que assumem e o tempo de realização, ou seja, uma cuidadosa regulamentação do que deverá (e, eventualmente, do que não deverá) ocorrer durante o período formativo, constituindo em ferramenta de proteção mútua, a afastar dúvidas. Em Estruturação Jurídica de Empresas (Editora Atlas, 2024; capítulo 2), listamos diversas matérias cuja regulamentação é possível, senão recomendável, nestes casos. Obviamente, é uma listagem meramente exemplificativa. É no diálogo com os interessados que o advogado percebe o que deve ser ajustado e posto no instrumento de contrato. No geral, não são regulamentos muito complexos, embora situações mais vultosas recomendem redobrado cuidado e, enfim, uma plataforma de previsões normativas mais extensa e detalhada.

No plano das relações com terceiros, o artigo 987 do Código Civil exige dos sócios que a prova da sociedade, nas relações com terceiros, seja feita por escrito. É fundamental alertar os clientes para a vigência de tal regra durante o período formativo, deixando clara a importância de colher tal prova escrita que poderá ser, inclusive, uma simples declaração, pelo terceiro, de ter consciência de estar a negociar com a sociedade em comum. Mais do que isso, em se tratando de situações mais significativas – e os exemplos são múltiplos: aluguel de imóvel, arrendamento de estabelecimento, trespasse, compra de maquinário, contratação de insumos etc. –, o respectivo instrumento de contrato deverá trazer, no próprio corpo ou em anexo (útil quando se trate de contrato de adesão, impresso), não só a ciência da sociedade em comum, mas também previsões que façam a proteção de todos em face de se estar em fase formativa, com o risco de malogro da operação.

Em oposição, para a proteção aos terceiros que mantenham relações jurídicas com a sociedade, o artigo 987 do Código Civil garante-lhes a faculdade de provar a existência da sociedade de qualquer modo. Veja que é uma desvantagem que, por si só, recomenda a adoção de cautelas jurídicas para ampla comprovação documental de tudo: da contratação entre os sócios/investidores, às relações estabelecidas com terceiro. Basta lembrar que o mesmo dispositivo prevê que, nas relações entre si, os sócios também estão obrigados a provar por escrito a existência da sociedade. Fica claro que, para o bom andamento das relações entre os sócios, bem como a preservação dos interesses legítimos e direitos de todos, é recomendável, sempre que contratada a sociedade, fazê-lo por escrito, atendendo de forma estrita o comando do artigo 987 do Código Civil.

A cultura de compreensão inconsequente do período formativo da sociedade antepõe-se à lei. Advogados deveriam influenciar uma alteração desse cenário: demonstrar como o uso de tecnologia jurídica tem maior importância e força para o sucesso das iniciativas empresariais, especialmente na constituição de uma qualidade jurídica da relação e de seus efeitos e prevenção de conflitos e prejuízos. Há que fazer um apelo a um maior cuidado jurídico, a necessidade de suporte profissional adequado por advogados capacitados, permitindo diagnósticos corretos dos desafios apresentados e prescrição de ferramentas contratuais adequadas. Tudo isso é essencial para um desfecho satisfatório.

Por fim, já que falamos há pouco em desfecho, o Código Civil é omisso sobre a hipótese de malogro da sociedade em comum no seu objetivo de tornar-se sociedade personificada. Noutras palavras, não há norma expressa e específica que regulamente a dissolução da sociedade em comum por desistência de formar a sociedade contratual. Quem já vivenciou um processo desses sabe do caos que é. A bem da verdade, tais demandas são o resultado de falhas jurídicas de advogados e imprudência de empresários: não dar importância ao período formativo, deixando de empregar boa tecnologia jurídica para lhe dar segurança, regularidade, evitando que descambe para um vale-tudo se algo dá errado. Corre-se um risco desnecessário quando não se rege a fase formativa com um instrumento de contrato de sociedade em comum e, mais do que isso, quando não se elabora um registro contábil adequado e sustentado por respectivos elementos de prova (recibos, notas fiscais, instrumentos de contrato, declarações etc.). Escritórios de advocacia empresarial de excelência não permitem que seus clientes sejam envolvidos neste inferno. E a prevenção é muito simples: fazer constar do instrumento de contrato de sociedade em comum, assinado por todos os envolvidos, regras para eventual dissolução do vínculo (trouxemos exemplos no livro), além da manutenção de registros contábeis específicos para o período formativo, com respectivos comprovantes. 

De todos esses tópicos, exsurge claro haver todo um serviço de assessoria jurídica a empresas, empresários e empresários que não está sendo prestado. Não se lhe deu importância, o que é insólito: qual outra classe profissional dispensa a prestação desse ou daquele serviço? Em muitos restaurantes, assenta-se e lá está o courvert sobre a mesa. O dentista se apressa em oferecer o branqueamento, o lavador de carros recomenda o polimento, a lavagem do motor, o agente de viagens oferece o receptivo, o city tour. Mas escritórios de advocacia recebem clientes que estão se organizando para a constituição, daí a um mês, dois ou mais, mas não lhe oferecem o contrato de sociedade em comum ou a assessoria para os atos pré-registro. Seria bom alterarmos tal cultura jurídico-empresarial brasileira.

Este artigo foi composto a partir de excertos da primeira parte do capítulo 2 de Estruturação Jurídica de Empresas(Editora Atlas: 2024).

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