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EMPRESARIAL
O propósito das companhias a partir da perspectiva histórica
Ana Frazão
12/09/2023
“Democracy and capitalism must be allies, not antagonists. They should work hand in hand to ensure that corporations are institutions for the common good, as has always been the intention behind them.”Willian Magnuson
Para os que se interessam sobre Direito Comercial, especialmente sobre Direito Societário, é altamente recomendável a leitura da obra de Willian Magnuson For Profit: A History of Corporations[1]. O livro trata da evolução das companhias desde o Direito Romano até os tempos atuais, tendo como fio condutor a análise crítica do papel de tais entes.
Para o autor, apesar da inegável contribuição das companhias para o crescimento econômico e para a prosperidade, as críticas contra elas são também contundentes, notadamente as de que não raro ultrapassam todos os limites para a obtenção de lucros, mesmo quando isso envolve usar o seu poder para minar instituições e a própria democracia, para corromper políticos e para contratar lobistas para distorcer a opinião pública.
Para o autor, não se pode admitir que as companhias, na busca do lucro, possam gerar esse tipo consequência, até diante da sua própria origem, que está inequivocamente conectada à promoção do bem comum. Com efeito, as companhias foram criadas, recebendo personalidade jurídica e uma série de direitos e privilégios, exatamente porque se partia da premissa de que contribuiriam com suas nações.
Para Magnuson, mesmo Adam Smith, ao defender a mão invisível, nunca quis sustentar que a busca individual de lucros sempre promoveria o bem comum. O filósofo escocês, considerado o pai da economia como ciência, era claro no sentido de que o lucro seria meio para um fim e não um fim em si mesmo, até porque também acreditava que as companhias tinham um propósito publico.
O problema é que o espírito verdadeiro das corporações, segundo Magnuson, foi perdido no último século, quando a busca de lucros deixou de ser um meio para se transformar em um fim em si mesmo. E tal mudança contou com a contribuição parcial do direito, por meio de diversos mecanismos, tais como a substituição do regime de autorização estatal pela livre criação das companhias. Como consequência, as companhias foram gradativamente substituindo a moralidade pela eficiência do mercado, com a perda do propósito fundador que as vinculava ao florescimento da sociedade.
Para o autor, o momento atual é particularmente perigoso, porque o poder econômico das companhias está se convertendo em poder político, com todos os desvirtuamentos da própria democracia. Aliás, o autor parte da premissa de que as companhias devem ficar fora da política, pois não são forjadas para ter a sabedoria necessária para entender o que é o bem comum.
Do contrário, Magnuson defende que as companhias precisam responder e cumprir as normas estabelecidas por governos democráticos, o que implica diversos comprometimentos, inclusive o de não usar o seu poder para moldar opiniões e fixar objetivos. Ao assim fazer, o autor entende que elas desvirtuam o seu propósito, que é de servir ao bem comum e não fixar o bem comum.
É por isso que o autor nos oferece, ao final da saga histórica das companhias, algumas propostas para que as companhias possam novamente voltar ao rumo adequado:
- Preocupações democráticas = as companhias não podem minar as fundações da democracia, o que ocorre quando procuram manipular a opinião pública, limitando ou distorcendo as informações que chegarão aos eleitores, ou por meio de lobby a favor de medidas que apenas as beneficiam e causam danos aos cidadãos. Outra forma de minar a democracia é a assunção excessiva de riscos, especialmente quando estes se projetam sobre terceiros ou sobre a sociedade como um todo, gerando o risco sistêmico;
- Preocupações com o longo prazo = as companhias não podem ser geridas apenas com base nos resultados de curto prazo, razão pela qual o direito deve exercer o seu papel para assegurar tal aspecto, por meio do desenvolvimento de rigorosos deveres fiduciários, regras de transparência e regras de responsabilidade;
- Preocupações com os acionistas = as companhias devem tratar seus acionistas de forma justa e adequada, o que exige diversas medidas, tais como a prestação de informações adequadas sobre a companhia, a adequada distribuição de frutos e a vedação de práticas como insider trading e golpes. Para o autor, não se pode esperar que os acionistas protejam a si mesmos;
- Preocupações com uma competição justa = as companhias devem concorrer lealmente, o que abre margem para o papel do Antitruste e outras medidas que possam assegurar a livre iniciativa e a competição pelo mérito;
- Preocupações com os empregados = as companhias devem tratar seus empregados de forma adequada e justa, inclusive para o fim de oferecer remunerações justas e locais de trabalho seguros, assim como respeitar os limites entre o trabalho e a casa;
- Preocupações ambientais = as companhias precisam assumir a responsabilidade de não destruir o planeta e de serem boas cidadãs planetárias;
- Preocupações distributivas (don’t take all the pie for yourself) = as companhias precisam distribuir os resultados de forma mais equitativa, o que abre margem para a discussão sobre a desproporcionalidade da remuneração de CEOs e/ou a falta de transparência sobre o assunto, assim como sobre a parcela dos resultados que deve ser distribuída entre os empregados;
- Preocupações com mudanças abruptas ou riscos excessivos, especialmente nas questões tecnológicas.
ESG e o propósito das companhias
Como se pode perceber, sob vários ângulos, as preocupações de Magnuson convergem – ou pelo menos não se distanciam muito – de várias teorias institucionalistas ou de muitas discussões atuais sobre a pauta ESG. O que há de interessante na narrativa do autor é realmente retomar a origem histórica das companhias, para mostrar que elas foram criadas de forma atrelada ao interesse público, se perderam nesse caminho e devem de alguma forma voltar a ele.
O próprio autor ressalta que o objetivo do seu relato não foi o de levar o leitor a concluir, sem qualquer esperança, que as companhias são seres naturalmente corruptos. Pelo contrário, o seu relato histórico tem por objetivo ressaltar o papel das companhias como uma das maiores criações da humanidade.
Aliás, para o autor, a história das companhias lembra-nos a verdade simples de que a humanidade trabalha melhor quando trabalha em conjunto. Daí o fundamental papel das companhias em estruturar a capacidade de cooperação e de possibilitar os avanços que até hoje nos inspiram.
Segundo Magnuson, a história das companhias é repleta de exemplos de ambição, bravura, esperança e confiança. Entretanto, assim como foi necessário que a sociedade, ao longo dessa história, tivesse várias vezes que desafiar, corrigir, disciplinar e colocar as companhias em um melhor caminho, tal necessidade está presente igualmente na atualidade.
Em vários momentos da obra, o autor nos mostra, inclusive, o quanto a política e a sociedade não podem ser colonizadas pela economia e o quanto a democracia é importante, inclusive para definir o papel das companhias. Com isso, fica clara a sua crítica contra o determinismo econômico e a concepção de eficiência como valor absoluto.
Por fim, deve ser ressaltado que, para o autor, o objetivo de correção de rumos ou de realinhamento das companhias com seus necessários compromissos públicos não pode ficar dependendo apenas da boa vontade de CEOs. Daí por que ele destaca, ao longo de todo o texto, o papel da política e do direito na implementação de mudanças que se fazem necessárias para o bem comum.
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NOTAS
[1] MAGNUSON, Willian. For Profit. A History of Corporations. New York: Basic Books, 2022.