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Hayek e a intervenção estatal nos mercados

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Hayek e a intervenção estatal nos mercados

HAYEK

THE ROAD TO SERFDOM

Ana Frazão

Ana Frazão

13/06/2023

Em recente livro, cujo título é bastante provocativo – The big myth. How American Business taught us to loathe government and love the free market –, Naomi Oreskes e Eric Conway pretendem descrever como se formou o mito dos livres mercados nos Estados Unidos[1].

Como se trata de leitura indispensável para os que se interessam sobre o tema, ainda pretendo dedicar uma coluna para explorar o livro como um todo. Entretanto, gostaria de destacar, desde já, a interessante análise que os autores fazem da obra de Hayek, um dos intelectuais mais importantes para a defesa das ideias neoliberais e para a construção do mito dos livres mercados.

Hayek e o livre mercado

É verdade que Hayek era um vigoroso defensor dos mercados como espaços de distribuição de poder, que evitariam a concentração inerente a um governo centralizado. Ademais, ainda segundo o autor austríaco, o Estado não poderia reunir todas as informações para um planejamento efetivo da economia e qualquer tentativa nesse sentido necessariamente implicaria o controle das pessoas.

Não obstante, no capítulo 5 da obra, Oreskes e Conway procuram colocar tais ideias na correta perspectiva, oferecendo-nos interessante análise do provavelmente mais famoso livro de Hayek – The Road do Serfdom – para mostrar que somente uma leitura superficial da obra permite considerar o autor austríaco como defensor irrestrito dos livres mercados e contrário a qualquer forma de intervenção estatal.

Em uma das primeiras oportunidades que tive de explorar mais a fundo a obra de Hayek, eu já havia percebido as nuances e oscilações do seu pensamento[2]:

A profunda análise de Oreskes e Conway reforça tais conclusões, confirmando que, para Hayek, o mercado não pode ser completamente livre, devendo operar sob uma série de constrições. Tanto isso é verdade que Oreskes e Conway mostram que Hayek rejeitava o termo laissez-faire por considerá-lo enganoso. Ao defender o uso bem-sucedido da competição como um princípio de organização social, Hayek sabia que isso afasta certos tipos de interferência coercitiva na vida econômica, mas requer outros.

Não se trata de interpretação contextual ou sistemática da obra de Hayek. Oreskes e Conway trazem trechos em que Hayek afirma que a oposição ao planejamento estatal não pode ser confundida com uma atitude dogmática em prol do laissez-faire. Pelo contrário, o argumento liberal implica fazer o melhor uso possível das forças da competição para coordenar os esforços humanos, mas não simplesmente deixar as coisas como elas são.

Dentre as intervenções estatais nos mercados que Hayek considera possíveis e até mesmo desejáveis, encontram-se pagar por placas de sinalização nas estradas, prevenir os efeitos danosos de determinadas atividades – como desmatamento floresta, algumas formas de agropecuária ou mesmo o barulho ou fumaça das fábricas, proibir uso de substâncias venenosas que exigem precauções especiais, limitar horas de trabalho, exigir condições sanitárias nos locais de trabalho, controlar pesos e medidas e prevenir greves violentas.

Em todos esses casos, Hayek afirmava que, se o governo deve assumir tais funções, deve fazê-lo equitativamente, porque, se o fizer seletivamente, irá limitar a liberdade de grupos particulares ou indivíduos. Daí a conclusão de Oreskes e Conway de que o problema de Hayek não era a propriamente a intervenção estatal, mas sim o favoritismo. Aliás, os autores citam trecho interessante de Road to Serfdom, no qual o autor afirma que as regulações estatais sobre os mercados não conflitam com os princípios liberais desde que não sejam usadas para favorecer ou para prejudicar determinadas pessoas.

Outro ponto importante da obra de Hayek, muito bem explorado por Oreskes e Conway, é o de que o autor austríaco apoiava certo grau de seguridade social, compensação para trabalhadores e mesmo uma renda mínima. Consequentemente, para além de não poder considerar Hayek como avesso à intervenção estatal na economia, não se pode igualmente julgá-lo hostil a programas sociais.

Hayek, a existência de regras e a regulação dos mercados

Assim, a conclusão dos autores é que a obra de Hayek nunca foi propriamente um tratado contra a existência de regras ou contra a regulação dos mercados. Pelo contrário, para Hayek, seria uma bobagem entender que os mercados podem funcionar adequadamente sem intervenção governamental, razão pela qual a questão sobre se o Estado deve ou não intervir na economia nos põe diante de uma alternativa falsa. Se é certo que o Estado deve intervir, a questão é como avaliar os custos sociais da intervenção e julgar quando ela deve ser feita ou não.

Ademais, os autores chamam atenção para um pronunciamento de Hayek em que ele defende que o Estado deve até mesmo endereçar as vicissitudes do emprego causadas por ciclos empresariais, o que é bastante paradoxal para alguém que é visto como principal oponente de Keynes.

Mas estas não são as únicas partes de The Road to Serfdom que fogem ao estereótipo que foi imputado a Hayek. O autor austríaco também defendia que governos podem ter que suplementar a competição quando ela não pode ser efetiva, abrindo as portas para a discussão sobre que serviços podem ou devem ser ofertados pelo Estado e que serviços devem ser deixados para o mercado.

Daí a conclusão de Oreskes e Conway de que Hayek nem de longe pode ser considerado um absolutista ou um radical em prol dos livres mercados, assim como The Road to Serfdom não pode ser considerada uma carta contra a intervenção estatal. A obra de Hayek apenas pode ser vista como uma narrativa cautelosa contra o planejamento econômico central e contra o dirigismo.

Consequentemente, The Road to Serfdom não é o livro que muitos dos partidários do livre mercado consideram que seja. Chega a surpreender como Hayek tenha se tornado um herói para os que hoje se opõem à seguridade social ou à proteção do meio ambiente ou do ambiente de trabalho.

Se isso aconteceu é porque, dentre outras razões, as nuances da obra de Hayek não chegaram ao povo americano nem à opinião pública em geral. Para Oreskes e Conway, nas mãos de ideólogos, The Road to Serfdom passou por uma verdadeira metamorfose, por meio do qual deixou de ser um complexo e sutil ensaio sobre os riscos do controle governamental absoluto para se tornar uma espécie de manifesto antigoverno.

Não é sem razão que a própria vinda de Hayek, assim como a de Mises, para os Estados Unidos esteve vinculada à ação do empresariado norte-americano, capitaneada por associações como a National Association of Manufacturers (NAM), e por iniciativas daí decorrentes. Dentre estas, destaca-se a versão condensada do livro de Hayek, de apenas vinte páginas, que, publicada pela The Readers Digest, fez com que o pensamento do autor austríaco perdesse todas as suas nuances e complexidade e passasse a refletir apenas a visão simplificada da demonização do Estado.

Tais aspectos mostram o quanto é importante não apenas evitar compreensões pré-concebidas, mas ler com a atenção a obra de autores importantes como Hayek, inclusive para o fim de evitar o debate polarizado normalmente existente em tais matérias.

Se Hayek nunca negou a importância da intervenção estatal, assim como sempre ressaltou a importância da concorrência como um fator de disciplina natural dos mercados, tais conclusões são de extrema importância para a realidade prática dos dias atuais.

A questão fundamental deixada por Hayek não é, portanto, se o Estado deve intervir ou não na economia, mas sim em que hipóteses ele deve fazê-lo. E, para além das inúmeras hipóteses em que o próprio autor já ressalvou a necessidade de intervenção estatal, é importante ter em mente as atuais repercussões que a ausência de concorrência pode trazer para tal análise, especialmente diante de mercados cada vez mais concentrados.

Fonte: Jota

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[1] Bloomsbury Publishing, 2023.

[2] FRAZÃO, Ana. Propriedade e Empresa. Função Social e Abuso de Poder Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 211-214.

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