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Fraudar a Partilha com o Passivo

Gladston Mamede
Gladston Mamede

05/06/2024

Há quem pense em patrimônio como um conjunto de bens e nisso vai mal. Resumindo o que demonstramos em Divórcio, Dissolução e Fraude à Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias (Editora Atlas, 5.ed. 2022), patrimônio é o conjunto de relações jurídicas, o que os clássicos chamam de universitas iuris. Inclui, sim, os bens. Para ser mais exato, inclui todas as relações jurídicas em que haja uma titularidade ativa: as faculdades jurídicas da pessoa e, no plano do Direito de Família, de um casal, nas situações em que haja comunhão total ou parcial de patrimônio. Então, bens imóveis, bens móveis, direitos, investimentos, créditos etc. Mas, no anverso da moeda, estão as relações jurídicas passivas. As obrigações jurídicas da pessoa e, enfim, do casal. Então, teremos, a grosso modo: patrimônio ativo (faculdades jurídicas) e patrimônio passivo (obrigações jurídicas). Aí pelas ruas, a turma simplifica e fala em ativo e passivo: a empresa tem um passivo de tanto, disse um. Eles estão interessados nos ativos da da companhia, disse outro.

Não é preciso queimar a moleira para, já na leitura do primeiro parágrafo, concluir-se que essas duas faces ou dimensões do patrimônio submetem-se a um encontro: uma conta. Mais especificamente uma subtração. Na contabilidade, são duas colunas do chamado balanço patrimonial: patrimônio ativo à esquerda, patrimônio passivo à direita. Do ativo se subtrai o passivo (do que se tem subtrai-se o que se deve) e chega-se ao patrimônio líquido. E, cá entre nós, é o que importa. Tem muita gente por aí arrotando bens que totalizam milhão e fazendo força para esconder dívidas que superam os milhões: tem muito, deve mais ainda: está quebrado: insolvente, falido, conforme o regime; se bem que o Judiciário está embolando tudo, aplicando institutos de um regime para pessoas submetidas a outro regime e, no fim das contas, vive-se uma barafunda em que ninguém se entende direito. Mas isso ainda não interessa no ponto em que estamos: o Judiciário ainda (ainda!) não estendeu o regime da Lei 11.101/05 às famílias. Ainda…

Apesar de se falar em regimes da comunhão universal ou parcial de bens, há uma comunhão de patrimônios e não apenas das faculdades ativas. Aliás, não só aqui, no Brasil, mas em diversos outros lugares do mundo, há um esforço para conter o uso ilícito do divórcio como meio para fraudar credores. No início deste ano, por exemplo, noticiou-se que a atriz Erika Jayne, de “The Real Housewives of Beverly Hills”, estaria sendo processada, em litisconsórcio passivo com seu ex-marido, Tom Girardi, sob o fundamento de que o divórcio teria sido forjado para prejudicar credores dele. Em 2020, juíza distrital do condado de Washington indeferiu o acordo de divórcio entre Derek Chauvin, ex-policial de Minneapolis acusado pela morte de George Floyd, e sua ex-mulher. A ação foi proposta dias depois da denúncia criminal e o acordo deixaria a maior parte dos bens para a esposa, o que foi considerado “divórcio de conveniência”, cujo fim seria proteger os bens de eventuais ações cíveis dos familiares de Floyd.  

Regime de comunhão de patrimônio

Então, vamos lá: o regime é de comunhão (total ou parcial) de patrimônio. No cálculo para a partilha, leva-se em conta o ativo e o passivo; enfim, partilha-se o patrimônio líquido comum. Sim! Isso quer dizer que, sendo negativo o patrimônio passivo, partilham-se dívidas. Vamos pegar a situação mais comum: comunhão parcial de [bens] patrimônios. Os bens e direitos e créditos totalizam R$ 5.000.000,00; as dívidas totalizam R$ 7.000.000,00. Logo, o patrimônio líquido comum é negativo em R$ 2.000.000,00 e cada ex-cônjuge ou ex-convivente sairá do casamento devendo R$ 1.000.000,00. Em se tratando de sociedades empresárias, se essa situação é percebida ao longo do processo de dissolução da pessoa jurídica (mais especificamente, ao longo da liquidação patrimonial), deve o liquidante pedir a falência da sociedade.

A compreensão dessa equação jurídico-contábil conduziu a uma evolução no plano das fraudes à partilha de patrimônio no divórcio ou na dissolução da convivência. Antigamente, urdiam-se operações apenas no plano dos ativos: ocultavam-se bens, direitos ou créditos, a incluir a aquisição de bens em nome de terceiros (laranjas, dizem por aí; testas-de-ferro, já se disse também), procedia-se alienações simuladas entre outras situações que são listadas e explicadas no livro. Isso pode envolver mesmo a renúncia a direito, como falsamente perdoar dívidas, conceder abatimentos, entre outros atos que, aparentando ser algo, na verdade ocultam acordos cuja finalidade é desviar o ingresso de valores para contas secretas, em sentido largo: compra de ouro, joias, criptomoedas, manutenção de papel moeda etc. Pais, irmãos, primos, amigos íntimos, entre outros, não-raro se voluntariam para o recebimento e a guarda provisória. E nisso pode haver problemas tributários, é bom lembrar; mas isso seria assunto para outro artigo.

É preciso especial atenção para os atos com repercussões patrimoniais negativas. Uma tal análise toma-se como expressão interdisciplinar: considera a perspectiva teórica jurídico-empresarial (usa sua base, seus conceitos e ferramentas), bem como todas as regras e princípios das Ciências Contábeis, para repensar uma questão de Direito de Família: o direito à partilha correta do patrimônio comum, seja ele universal, seja ele parcial, conforme o regime que se aplica a cada parelha. Afinal, está-se diante de atos que são velhos conhecidos de advogados empresarialistas e de contadores e auditores, como o arrolamento de dívidas inexistentes e, mesmo, a contração de obrigações como meio para efetuar um desvio de ativos. E o remédio para tal envenenamento das contas comuns também é conhecido há décadas em nossos sítios: a auditoria contábil. E isso é ainda mais indispensável quando, do patrimônio a partilhar, constam empresas, ou melhor dizendo, sociedade(s) empresarial(is).

A chave de tudo é a normalidade, a continuidade. Essa é a tendência: uma evolução que não é retilínea e uniforme (o que, por si só, mostra artificialidade: a vida não é assim; e menos ainda no plano do mercado), mas que se faz dentro de uma faixa contínua de normalidade. Incrementos e aminguamentos mais fortes podem ocorrer mas, procurando em elementos informativos de apoio, serão explicados: foi por isso, foi por aquilo. O que é atípico deve ser demonstrado, explicado e comprovado. Entre os elementos informativos, aliás, é preciso especial atenção para a prova documental respectiva, quando não seja recomendável ir adiante: aferir se as relações registradas pela escrituração e respetivos documentos são verdadeiras. Exemplo? No segundo semestre de 2023, a imprensa britânica noticiou uma fraude na partilha de bens em divórcio que envolveu uma milionária emissão de faturas frias, no setor de construção civil; os títulos escriturados e documentados, referiam-se a obras que jamais foram realizadas.

Não é e não pode ser uma questão de achismo. Se foram investimentos emergenciais, será possível indicar a causa, a natureza, o que se fez, qual o resultado. O registro contábil, o acervo documental que lhe dá sustentação e os balanços anuais servem para isso. Foi o câmbio? É só conferir. Os custos de produção aumentaram? É só conferir e, sim, o mercado é uma baliza. É o caminho dos experts em suas perícias: checar cotações, verificar os rastros e os contextos e os cenários, entre outras referências. Se há pontos estranhos, são apontados e, então, a matéria vai para o contraditório e a instrução, incluindo, se necessário, depoimentos e testemunhos: o que causou a redução (ou o aumento) da demanda? Por que não se operou em plena capacidade? Por que os números estão acima dos patamares de empresas similares que atuam no mesmo mercado? Em que se baseiam as decisões de ampliação? Por que se direcionaram os recursos do caixa ou da rubrica de investimentos para isso ou para aquilo? Sim: mesmo as estimativas são questionáveis e devem ser justificadas quando se trata de patrimônio em comum, nomeadamente em momentos sensíveis (a proximidade da dissolução) e com resultados que impactam diretamente os direitos e interesses do cotitular.

Mais do que isso, melhor seria se, a partir do que se coletou, do que se ouviu, das justificativas pedidas e fornecidas (ou não), o Judiciário definisse, para cada ponto, o ônus probatório. Isso foge ao nosso sistema, mas seria a melhor tradução de uma cautela no cumprimento da função jurisdicional. E já o vimos ocorrer em processo arbitral (em Direito Empresarial, esclarecemos; nada a ver com Direito de Família, área em que não militamos): ao fim da instrução, os árbitros listaram uma série de pontos que não restaram esclarecidos ao longo da instrução, até aquele ponto, indicaram o estado em que estavam sua compreensão sobre os pontos assinalados e fizeram algumas inversões do ônus probatório: tais e tais e tais pontos não ficaram totalmente claros; esse e esse e esse apontam na direção alegada pelo autor e o ônus probatório está sendo invertido pois, na condição de administrador societário, cabe ao demandado comprovar a regularidade de atos que aparentam não o ser. Uma decisão fantástica por não colocar o feito como um jogo, mas como um meio para a melhor solução do conflito e, assim, dar a cada um o que é seu. Tirar o tatu da toca e fazê-lo contribuir, se tem elementos para tanto. Se não tem, comprova-se que os elementos que permitiam presumir contra si eram verdadeiros.

Claro que nossa narrativa encontra um obstáculo nas diferenças de contextos jurídicos entre o Direito Empresarial e o Direito de Família. No plano do mercado, a opção massiva pela arbitragem, conduzida por juristas que dedicaram sua vida a compreender o Direito Empresarial, permitiu que a própria abordagem do conflito fosse reciclada para impedir que o apego à forma e ao rito, pura e simplesmente, pudesse levar perdas ao conteúdo. Boas arbitragens focam-se na solução do imbróglio, mais do que nos procedimentos, e nisso há uma evolução brutal em relação a repartições atoladas de autos de grande espessura e entregue à tendência de reiterar uma burocracia que, alfim e ao cabo, permite dizer que estão funcionando. Isso não acontecerá em repartições estatais ou, se vier a ocorrer algum dia, será o resultado de ações de longo prazo que se revelem capazes de transformar a jurisdição pública, dar-lhe mais eficiência e menos pompa (que, de resto, não serve muito aos jurisdicionados). 

Essencialmente, é preciso dar aos envolvidos as mesmas condições em face à partilha, ainda que um esteja na gestão do patrimônio comum e o(s) outro(s) não estejam. Afinal, a dissolução do vínculo afetivo-patrimonial impacta a todos os cotitulares da azienda, nos respectivos contornos (que, por óbvio, devem ser precisados). E isso precisa ser valorizado, nomeadamente num momento de tanta dificuldade emocional. O melhor julgador fará o que for necessário para que todos os copartícipes alcancem o mesmo grau de informação jurídica, econômica e financeira, fortalecendo o Direito e não os casuísmos que, não-raro, buscam desequilibrar a liquidação das relações patrimoniais. Se há condições desiguais de conhecimento, se não se trabalha pela indispensável transparência, está aberto o caminho para a injustiça. Não há contraditório efetivo se ambas as partes não têm as mesmas condições de combatividade e, mais, de competitividade por um resultado favorável à sua pretensão. É preciso dar alicerce para que todos os envolvidos, partes e julgador, possam avaliar a configuração econômico-financeira da universitas iuris, evitando práticas desleais, pressões indevidas, enfim, que não seja dada a cada um o que é seu.

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