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Direito: a palavra é ferramenta; o texto é equipamento

26/05/2025
Cloud Kitchens. Sabe o que é? Uma empresa criada em 2015 por Travis Kalanick, o fundador do Uber. Foi constituída ainda outro dia e já está avaliada em coisa de US$ 5 bilhões. E com que ela trabalha? Dark kitchens. Está ficando complicado, né? Mas vamos lá: dark kitchens são cozinhas profissionais que se apresentam ao mercado como restaurantes, embora sem mesas, garçons etc. Trabalham exclusivamente com serviço de entrega (em português contemporâneo: delivery). Você ouve falar muito bem do restaurante Piedade das Gerais, especializado em culinária mineira da região central; mas não pode ir até lá, assentar-se, escolher no cardápio, pedir bebidas etc. Será por telefone e/ou internet. A bem da precisão, o restaurante se limita a uma cozinha fechada que recebe pedidos, prepara e embala a comida, mandando. Uma parte nova da chamada indústria de alimentos e bebidas(A&B). Daí dark kitchens ou, dizem outros, restaurantes fantasmas ou, mais precisamente, cozinhas fantasmas. No Brasil, os negócios de Travis Kalanick se realizam por meio da Cozinhas do Futuro Administração de Imóveis Ltda. Sociedade que tem como objeto social aluguel de imóveis próprios, gestão e administração de propriedade imobiliária, consultoria em tecnologia da informação e holding de instituições não-financeiras. Mas, calma lá. Há que saltar de dark kitchens para cloud kitchens (cozinhas em nuvem), que foi a ideia dele. Trata-se de um estabelecimento empresarial estruturado para receber vários restaurantes fantasmas. Em lugar de montar a sua cozinha fantasma, você pode contratar um lugar (spot – eita povo que não gosta de português! Nusga!) na cozinha em nuvem. E isso está fazendo tanto sucesso, aqui e alhures, que já se avalia a empresa naqueles bilhões todos dos quais falamos.
Preste muita atenção nessa história. Veja-a com olhos técnicos. Do ponto de vista da engenharia, uma cozinha em nuvem só é possível a partir de um projeto de otimização do espaço para que várias atividades empresariais possam conviver sob um mesmo teto, cada qual produzindo, embalando e mandando entregar suas refeições. Cinco, seis, sete, dez, uma dúzia de negócios convivendo cotidianamente. E não são, nem serão, dois ou três estabelecimentos desses, mas milhares por todo o mundo. Agora, se não é simples a engenharia do espaço; mais complicada é a engenharia jurídica de tudo isso. E, sim, tudo isso aconteceu e está acontecendo por haver advogados que são capazes de fazer o projeto jurídico e de o concretizar. Por falar nisso, o que não faltam são pessoas com ideias fantásticas; elas precisam de técnicos que possam fazer com que tudo aconteça; elas precisam de tecnologia, inclusive jurídica. E tal advocacia só cresce e é demandada mais e mais e mais.
O contrato social de Cozinhas do Futuro Administração de Imóveis Ltda. é a base, a plataforma normativa primária, como demonstramos em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas, 2024). Ali se assentam outras plataformas normativas, sejam secundárias (pactos parassociais), quanto terciárias; é a parte mais trabalhosa e rica: os contratos da cozinha em nuvem com os restaurantes fantasmas, as normas internas de convivência (regimentos internos), contratos de parceria, prestação de serviços, garantias etc. Se os engenheiros precisam ser competentes para tirar o máximo de cada espaço do imóvel, os advogados precisam ser competentes para dar uma estrutura jurídica que não desande para uma briga em que hambúrgueres são arremessados contra arremessadores de pizzas ou talharim. É preciso haver normas que garantam que a atividade funcione. Ou, como temos reiterado: plataformas normativas que, neste caso, são terciárias, também chamadas de laterais: normas da administração societária para regrar o empreendimento.
Vivemos em tempo propício para o crescimento da advocacia empresarialista de alta tecnologia. Mas o que temos por aqui, na realidade mercadológica brasileira? Salvo raras e honrosas exceções, vemos atos constitutivos genéricos; são contratos sociais que servem a qualquer limitada, estatutos que pouco dizem sobre as especificidades das respectivas companhias. São esses os equipamentos que habitualmente vemos por aí. Como se a autorregulamentação jurídica das corporações não tivesse importância alguma. E olha que são resultado do trabalho de advogados: são profissionais que se desmerecem, como seriam arquitetos de prédios mal desenhados, engenheiros de construções mal-acabadas, cirurgiões de cicatrizes grosseiras e coisa e tal. Se a base jurídica de uma empresa (o contrato social ou estatuto) não é boa, o empreendimento está errado, mesmo que ninguém ainda o tenha percebido. É como problema no freio: mais cedo ou mais tarde, deixa a gente na estrada.
No trabalho do advogado societarista, a palavra é uma ferramenta a partir da qual se podem construir equipamentos jurídicos: textos como atos constitutivos (plataformas normativas primárias), pactos parassociais (plataformas secundárias) e regulamentos (plataformas terciárias), viabilizando operações como cozinhas em nuvem, entre outras. É bizarro verificar que temos milhões de sociedades empresárias que ainda se apresentam assentadas sobre atos constitutivos genéricos, incapazes de traduzir suas especificidades e atender a seus desafios particulares. Obviamente, não serão avaliadas em bilhões de dólares. Não exprimem arquitetura jurídica compatível. Seus negócios podem até estar indo bem, mas o problema está lá; mais cedo ou mais tarde, vai dar as caras; pode ser mesmo numa tarde plácida, preguiçosa, com jeito de nada a ver. É o que ocorre com qualquer equipamento defeituoso ou frágil ou inadequado: ele não cumpre adequadamente o seu papel.
O pior é que essa degradação da regência corporativa é uma realidade com fortes lastros culturais no mercado brasileiro, apesar de fazer o contexto em múltiplas disputas entre quotistas ou acionistas. Simplesmente falta conscientização: o contrato social e o estatuto social são a lei singular da corporação e da empresa; o que não está ali regido, cai na vala comum das leis federais, ou seja, vai para o tratamento genérico dado pelo Congresso Nacional: um mesmo para todos e, cá entre nós, isso geralmente não agrada aos indivíduos quando a demanda está em curso e, assim, passam a se roer de inveja daqueles que, ao tempo certo, definiram regras para isso ou para aquilo, atingindo patamares aceitáveis de identificação entre a plataforma normativa primária e o cotidiano corporativo. Pois essa cultura mercantil de dar pouca atenção ao ato constitutivo é um erro enorme. É imperioso destinar redobrada atenção a tais estruturas normativas para que contribuam para a segurança e o sucesso empresarial. Há que ensiná-lo aos empresários.
Durante anos, isso foi usado como meio para escamotear sociedades pluripessoais de aparência, permitindo a um dos sócios agir como dono, como empresário, embora usando firma social e beneficiando-se do limite de responsabilidade. A Lei 13.874/2019, permitindo sociedades limitadas unipessoais no Direito Brasileiro, alterou as bases legais permitindo questionar a tendência anterior e, mais do que isso, acelerando as condições para uma elevação da qualidade do equipamento jurídico das sociedades. Antes de mais nada, foi um choque: a sociedade de um (coisa que apenas copiamos do Direito Estrangeiro): o conjunto unitário, em oposição do conjunto plural (dois ou mais elementos, quotistas ou acionistas). E isso feito no âmbito de uma sociedade por quotas, também chamada de contratual, o que levou a soluções diversas, como a proposição de um contrato consigo mesmo (coisa que os europeus já falavam) ou, quiçá, na figuração da declaração social: sendo unitário o conjunto, o ato constitutivo seria declarado pelo sócio; em contraste, sendo plural o conjunto, o ato constitutivo seria contratado.
Consolida-se a ideia da corporação (ou sociedade) como uma instituição e o arquivamento do ato constitutivo (declaração, contrato ou estatuto) como ato jurídico de entificação: a criação de uma pessoa jurídica. Mais do que isso, com a possibilidade de unipessoalidade societária veio a oportunidade de reinvenção da sociedade limitada, resolvendo o desafio de sociedades que, apesar de plurais no ato constitutivo, eram unipessoais na prática. Como se diz por aí, fulano emprestou o nome para beltrano criar uma sociedade: cônjuge, parente, simpatizante. Em muitos casos, uma ou poucas quotas, num universo de milhares. Embora ainda aconteça, não é mais necessário. E há nisso um enorme mercado a atender: dar expressão adequada às sociedades unipessoais, no mínimo para expurgar do “sócio de aparência” os riscos e ônus da sociedade, com efeitos e reflexos benéficos: cadastros de crédito, obrigações tributárias (diretas ou indiretas), partilhas de bens etc. Se não há uma sociedade pluripessoal de fato, é tolo manter as aparências; melhor dar tratamento jurídico à sua essência unipessoal.
Em qualquer caso, é indispensável atenção para a qualidade jurídica do ente que se cria. Num ambiente altamente competitivo, é bom ter um controle integrado para a melhor gestão jurídica da empresa, embora sejamos obrigados a reconhecer que a maioria dos atos empresariais não dá atenção a isso; tocam-se negócios num amadorismo jurídico de dar dó. Parece que só tino e boa-vontade bastam e, assim, muitos experimentam não só o fracasso mas, pior!, um agravamento dos danos que podem advir desse fracasso. A advocacia empresarialista ainda não conseguiu sensibilizar os atores mercantis para a importância de estruturar um equipamento jurídico que lhes dê sustentabilidade jurídica. Tais equipamentos são as plataformas normativas (primária, secundárias e terciárias) como visto em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas, 2024). Não custa reiterar: advogado não é despesa, não é custo, é investimento. Mas isso precisa ser ensinado ao mercado. E nisso deve haver avanços constantes: mais e melhor e mais e melhor tecnologia jurídica a bem do sucesso das empresas.
Precisamos superar a cultura de reiterar o mesmo formulário chapado para qualquer sociedade. Se os próprios escritórios de advocacia fazem uso reiterados de modelos, por que não o fariam escritórios de outras áreas (contabilidade, assessoriais gerenciais ou mercadológicas): modelos são fáceis de obter e de copiar. Enfim, porque não o faria o próprio empresário ou seus gerentes? Eis o motor que gera uma cultura de empobrecimento técnico, vitimando as empresas, assim como os profissionais do Direito. A verdade nua e crua é que a prestação advocatícia fundada em cópias facilitou o trabalho de muitos profissionais, mas acabou por criar um mercado de serviços baratos e, pior, com menor valor intrínseco (a peça em si, o instrumento) e extrínseco (o seu uso). Sob o título de instrumento de contrato ou estatuto, encontram-se verdadeiras porcarias. Mesmo que sejam aprovados por Juntas e Cartórios – e não é incomum a condescendência perversa que aceita o que ao menos se apresenta como quiçá razoável – são equipamentos impróprios para o fim a que visam, instrumentos defeituosos; em situações de estresse, emperrarão. Então, o cliente pensa: “Isso eu também faço, não preciso pagar advogado!” Passa a ser uma economia, fruto de uma visão distorcida da função que o documento tem para o sucesso da corporação.
Em meio a isso, vemos ampliar-se uma onda empresarialista na qual a constituição de sistemas mais sofisticados abre a rodada de investimentos no negócio. Por isso optamos, ao confeccionar o “Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios” (8.ed. Barueri: Atlas, 2024), por modelos fracionados e abertos, ou seja: (1) modelos fracionados: em lugar de modelos de contrato, modelos de cláusulas que, assim, são adicionadas ou omitidas conforme as circunstâncias; (2) modelos abertos: em lugar de textos completos (fechados), textos que expressamente reconhecem a possibilidade de alteração (abertos a alteração). Há mais: dispusemos notas explicativas que abordam aspectos complementares. Noutras palavras, procuramos realçar o ambiente livre para cláusulas diversas, embora fornecendo sugestões que possam autogerar a resposta demandada por nossos leitores. Modelos abertos auxiliam; não limitam; não funcionam como regulamento. Aliás, são um canteiro para acréscimos pessoais. Aliás, nós mesmos, a cada nova edição, mostramos que não estamos estacionados.
Como proceder? Antes de mais nada, fazer a coleta e o tratamento de dados junto aos clientes. A redação do ato constitutivo não pode ser executada apesar dos investidores (os sócios) e da empresa em si. Pelo contrário, a metodologia correta parte justo desses elementos particulares, certo que os elementos genéricos são ordinários, comezinhos: o de sempre que se reitera. Dar tratamento ao específico é medida de valoração da sociedade como ator comercial, elemento essencial para a sua consolidação e sua perenidade, auxiliando-as a prosperar e, com elas, a economia nacional. Valorizando as instituições (inclusive as corporações mercantis), proporcionamos a oportunidade de transcenderem o humano, o personalíssimo. Não se trata de uma tarefa complexa; envolve tecnologia jurídica conhecida, mas que precisa ser adequadamente utilizada, de forma comprometida para produzir os efeitos corretos. Os modelos de cláusulas, divididos e subdivididos por assunto, auxiliam a encontrar a redação final ideal.
O mercado dos contratos sociais foi sendo perdido pelos advogados – mais ainda pode (e deve) ser recuperado – na proporção em que ofereçam maior qualidade técnica, a incluir o regramento de boas práticas de administração societária, soluções que acomodem a multiplicidade de perspectivas dos sócios e ainda prevejam mecanismos para impedir ou solucionar rapidamente conflitos, com baixo impacto sobre harmonia societária. O cliente precisa ver que se trata de um trabalho que foge ao comum, que o resultado é robusto, aumentando o benefício para a empresa, sócios e administradores. O principal impulso para a contratação do profissional jurídico está na constatação de que vale a pena, de que eleva a qualidade da empresa, ou seja, que a vantagem excede o dispêndio. E isso não se obtêm com baixa tecnologia jurídica. Não são poucos as histórias de advogados contratados para uma parte do iter negocial, mas que se mostram tão proativos que, dali em diante, passam a ser engajados em outras fases. Há muitos casos de advogados que, revelando seu interesse e suas habilidades a bem de clientes menores, vão sendo contratados para ir atender empresas de maior porte, negócios de maior porte ou operações mais dinâmicas e com maior envergadura. É um caminho que se poderia definir como quase-natural (mas não se trata de nada ligado à natureza para justificar a qualificação).
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