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Deus me livre de CEO misógino

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Deus me livre de CEO misógino

Ana Frazão

Ana Frazão

15/10/2024

Um dos assuntos mais comentados da semana passada foi a declaração misógina de Tallis Gomes, então CEO da G4 Educação, sobre o que pensa de mulheres que ocupam cargos de CEO: “Deus me livre de ter mulher CEO”.[1]

Verdade seja dita que a afirmação foi feita no contexto de pergunta de um de seus seguidores em redes sociais: “Se sua mulher fosse CEO de uma grande companhia, vocês estariam noivos?”. Isso inclusive permitiu a defesa inicial de Tallis no sentido de que ele estava falando do assunto sob perspectiva exclusivamente pessoal. Entretanto, é óbvio que a declaração foi interpretada de forma mais abrangente e ensejou diversas reações contrárias.

Além do infeliz comentário inicial, o episódio impressiona igualmente pelos argumentos mencionados pelo executivo para justificar a sua rejeição em relação às mulheres que ocupam tal cargo[2]:

(i) ocupar o cargo de CEO leva a uma indevida masculinização da mulher: “Salvo raras exceções, (eu particularmente só conheço 2), essa mulher vai passar por um processo de masculinização que invariavelmente vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e os meus filhos em segundo plano”;

(ii) ocupar o cargo de CEO envolve habilidades que talvez não possam ser exigidas das mulheres: “Vcs não fazem ideia da quantidade de stress e pressão envolvida em uma cadeira como a minha. Fisicamente vc fica abalado, psicologicamente vc precisa ser MUITO, mas MUITO cascudo para suportar”;

(iii) ocupar o cargo de CEO implica a subversão do papel feminino em prejuízo da própria mulher: “Na média, essa não é o melhor uso da energia feminina. A mulher tem o monopólio de construir um lar e ser base de uma família – um homem jamais seria capaz de fazer isso. Pra quê fazer a vida dessa mulher pior dessa forma?”;

(iv) ocupar o cargo de CEO estaria provavelmente relacionado ao papel nefasto do feminismo, que teria obrigado a mulher a fazer papel de homem e tirado a sua energia dos lugares certos, que seriam o lar e a família: “O mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer papel de homem. Hoje, vejo um bando de marmanjo encostado trabalhando pouco e dividindo conta com a mulher. Eu entendo que temporariamente pode acontecer, eu mesmo já passei por isso no passado – mas tem que ser algo transitório. Homem que tem condições de bancar sua mulher e não o faz, está perdendo o maior benefício de uma mulher, que é o uso da energia feminina nos lugares certos, lar e família”.

Machismo

Fiz questão de reproduzir textualmente os comentários feitos pelo empresário, inclusive com os erros de português, porque se trata de uma verdadeira aula de machismo em vários passos, dentre os quais se destacam:

  • (i) a desvalorização ou desconfiança das habilidades femininas para cargos tradicionalmente ocupados por homens;
  • (ii) o egocentrismo machista, refletido até na utilização dos pronomes possessivos, pois o executivo, ao descrever a relação com a sua mulher, refere-se aos “meus filhos” e à “minha família” e não aos “nossos filhos” e à “nossa família”, o que remete à posição de comando do homem no âmbito doméstico;
  • (iii) a assimetria na própria definição do que deve ser uma relação conjugal entre homem e mulher, já que cabe unicamente a esta colocar o lar, o marido e os filhos em primeiro plano, enquanto o homem pode perfeitamente colocar o seu trabalho em primeiro plano;
  • (iv) a naturalização das desigualdades de gênero e dos papéis de gênero, o que se observa na afirmação de que cabe à mulher o monopólio da construção do lar e de ser a base da família, premissa que é constantemente utilizada para desonerar os homens da responsabilidade respectiva.

Acresce que a narrativa do executivo é cercada de falsos argumentos, típicos do machismo estrutural, tais como (i) invocação da igualdade de gênero como um processo de indevida masculinização da mulher, (ii) defesa de que a desigualdade de gênero protege a mulher, na medida em que ela poderá usar a sua energia feminina nos lugares certos, ou seja, no lar e (iii) afirmação de que o feminismo destrói o mundo e obriga as mulheres a trabalhar, desconsiderando por completo que a pauta principal é simplesmente assegurar a igualdade de gênero e a emancipação feminina.

Dessa maneira, muito mais do que um comentário infeliz, trata-se aqui de um discurso misógino estruturado e justificado por parte de um líder corporativo. Por essa razão, o que ele pensa de questões tão importantes certamente transcende a dimensão pessoal da sua vida e se reflete também no seu modo de gestão empresarial, nos valores das organizações que estão sob o seu comando e na percepção que investidores e consumidores têm da empresa e da marca.

Mais do que isso, falas como as descritas são ao mesmo tempo reflexo e combustível de uma cultura corporativa ainda muito machista, o que continua a ser surpreendente, especialmente quando se observa que mesmo CEOs mais jovens – como é o caso de Tallis – parecem ainda impermeáveis às pautas de equidade.

Talvez por essa razão pesquisa recente do Instituto Ethos, feita com 130 empresas que estão entre as maiores do Brasil, mostra que apenas 27,4% dos cargos executivos, que incluem diretores e CEOs, são ocupados por mulheres, embora elas sejam mais da metade dos trainees[3].

Em razão de todas as implicações dessas declarações, as reações contrárias foram contundentes e imediatas. Várias vozes, especialmente de lideranças femininas, demonstraram sua indignação com o ocorrido, o que custou muito caro a Tallis Gomes, que renunciou ao cargo de CEO da G4 e ainda deixou de ocupar o Conselho de Administração da Hope.

Repercusão da declaração de Tallis Gomes

Aliás, é bastante significativa a declaração de Sandra Chayo, sócia-diretora da Hope, explicando as razões do desligamento de Tallis Gomes:

“Acreditamos que esse é um momento em que ele precisa refletir sobre a importância das lideranças femininas e como essa evolução traz ganhos e benefícios para toda sociedade, que não irá retroceder.

A Hope é liderada por mulheres, e a liberdade e o respeito em escolher nossos caminhos pessoais e profissionais são valores inquestionáveis para nós. Temos esperança em nossa essência e acreditamos na força da construção em conjunto de uma realidade em que a equidade de gênero não seja mais um tema a ser discutido”[4].

A repercussão na internet também foi grande. Como conclui Lilian Carvalho, “segundo um levantamento do Centro de Marketing Digital da FGV, utilizando o software de social listening da Buzzmonitor, a maior parte da repercussão sobre este comentário ocorreu no Instagram, com predominância de comentários negativos. Este dado é um sinal encorajador de que, apesar das vozes contrárias, a sociedade não está disposta a aceitar passivamente tais retrocessos”.[5]

Lilian Carvalho ainda menciona que “a nota de repúdio da Assespro (associação de startups e empresas do setor de TIC), que rapidamente se tornou o post com maior repercussão sobre o assunto, é um exemplo eloquente de como a comunidade pode e deve se unir contra declarações que buscam minar os esforços pela igualdade de gênero no ambiente corporativo. A entidade se posicionou firmemente ao lado da justiça e da progressividade, valores que devem nortear nosso comportamento enquanto profissionais e seres humanos”.[6]

Tal episódio mostra que, apesar de todas as ambivalências em torno do que se chama de capitalismo de propósito ou da pauta ESG, assim como dos riscos de posturas meramente retóricas e disfarces como o ethics washing, há claros sinais de que nem as empresas nem os consumidores e investidores estão mais dispostos a aceitar ou tolerar algumas posturas dos líderes corporativos, especialmente quando estes demonstram um desalinhamento com os valores da empresa e podem comprometer sua reputação e seu potencial de negócios.

Isso tem como desdobramento imediato uma ressignificação do papel das lideranças corporativas, já que o que pensam e defendem em termos de valores e posições também se reflete na organização. O problema torna-se proporcionalmente maior de acordo com a importância e a centralidade do líder corporativo.

Nesse sentido, o jornal Valor Econômico traz declaração do professor Gilberto Sarfati, coordenador dos programas de alta gestão da FGV, de que “em modelos de negócio baseados na figura do empreendedor, em que o fundador é a bandeira da marca – como é o caso da G4 Educação, fundada por Tallis –, o dano reputacional tende a ser maior”. Ele acrescenta que “no caso da G4, a empresa será colocada à prova. Existe o risco de boicote dos usuários e de ter a marca associada a uma fala misógina, o que pode impactar inclusive quem atua na companhia”.[7]

A reportagem ainda prossegue mostrando diversas outras reações à fala de Tallis Gomes, incluindo iniciativas no LinkedIn para as pessoas excluírem seus dados pessoais da G4 e cancelamento de palestra que seria proferida pelo executivo.

Entretanto, é importante observar que tais reações e danos reputacionais podem ser enfrentados por qualquer tipo de empresa, mesmo companhias abertas mais impessoais nas quais não haja propriamente a figura de um fundador. Com efeito, os executivos são a exteriorização concreta da empresa perante o público, de forma que suas falas e opiniões importam.

Aliás, em um mundo em que a internet e as redes sociais podem amplificar e potencializar a repercussão de qualquer tipo de fala, é defensável que o dever de cuidado que se exige dos administradores projete-se igualmente sobre o seu discurso público, sempre que este puder causar dano à empresa.

Tal preocupação torna-se ainda mais importante quando os executivos, a exemplo de Tallis, dispõem-se a ser também influencers, interagindo com um público amplo e diverso, de forma mais direta e informal, sobre os mais diferentes assuntos. É preciso entender tais falas como discursos públicos ou atos de comunicação social, que serão interpretados não a partir do contexto ou da intenção de quem fala, mas sobretudo a partir da percepção dos destinatários, os quais, nas redes sociais, são heterogêneos, apressados e muitas vezes tendenciosos, beligerantes ou perversos.

O caso de Tallis Gomes é particularmente interessante porque o CEO já demonstrava claramente tendências para excessos no seu discurso. Em agosto deste ano em um podcast, defendeu jornada de trabalho semanal de 80 horas, de forma contrária ao limite legal de 44 horas semanais e afirmou não contratar “esquerdistas”, por supostamente “não trabalharem tão bem”[8].

Essa postura mostra um déficit no cuidado que seria exigível de grandes líderes corporativos no âmbito do discurso público. Segundo Andiara Petterle[9], se a responsabilidade dos líderes empresariais é a de proteger a reputação da empresa e assegurar que o seu propósito esteja profundamente enraizado nas decisões estratégicas, “isso implica não apenas gerenciar riscos, mas antecipar com as atitudes e palavras dos líderes podem ressoar com o público”.

Consequentemente, não se pode negar a importância do peso da palavra dos líderes empresariais, não apenas do ponto de vista da credibilidade da empresa e da marca que representam, mas também do ponto de vista dos incentivos que criam para a sua própria organização, como também adverte Petterle[10]:

“Para as mulheres que trabalham nessas organizações, a contradição é ainda mais grave. Enquanto são incentivadas a buscar desenvolvimento e crescimento, uma figura central sugere que seu lugar não é na mesa de decisão. Essa dissonância é prejudicial não apenas para o ambiente interno, mas para a própria missão da empresa”.

Daí a conclusão da autora que, sob diversas perspectivas, “em um mercado onde as expectativas sociais moldam o sucesso corporativo, o verdadeiro valor está em harmonizar lucro e impacto”, o que é mais um argumento para levar as pautas corporativas de inclusão a sério.[11]

Como se pode observar do que foi dito, o episódio Tallis Gomes é uma excelente oportunidade para refletir sobre as novas exigências do capitalismo de propósito, mas também sobre o papel da cultura corporativa e das narrativas para a formação das instituições do mercado, especialmente as informais.[12]

Por essa razão, a reação ao episódio não foi exagerada. Afinal, se quisermos realmente avançar nas pautas de inclusão, é fundamental pensarmos sobre como as instituições podem ser transformadas a partir da mudança da cultura corporativa e das narrativas que lhe dão sustentação.


Fonte: Jota

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NOTAS

[1]https://istoedinheiro.com.br/quem-e-o-empresario-que-disse-deus-me-livre-de-mulher-ceo-e-pediu-desculpas-apos-reacoes/

[2]https://istoedinheiro.com.br/quem-e-o-empresario-que-disse-deus-me-livre-de-mulher-ceo-e-pediu-desculpas-apos-reacoes/

[3]https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/09/21/deus-me-livre-de-mulher-ceo-apos-comentario-polemico-empresario-deixa-cargo-e-escola-de-negocios-passa-a-ter-lideranca-feminina.ghtml

[4]https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/09/21/deus-me-livre-de-mulher-ceo-apos-comentario-polemico-empresario-deixa-cargo-e-escola-de-negocios-passa-a-ter-lideranca-feminina.ghtml

[5]https://www.mundorh.com.br/tallis-gomes-e-o-medo-dos-pequenos-grandes-homens/

[6]https://www.mundorh.com.br/tallis-gomes-e-o-medo-dos-pequenos-grandes-homens/

[7]No capitalismo de propósito, a narrativa é essencial.Valor Econômico. Edição de 21, 22 e 23 de setembro de 2024. Página B6.

[8]https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/jornada-de-80h-empresa-sem-esquerdista-e-contra-ceo-mulher-as-polemicas-de-tallis-gomes/

[9]PETTERLE, Andiara, No capitalismo de propósito, a narrativa é essencialValor Econômico. Edição de 21, 22 e 23 de setembro de 2024. Página B6.

[10]PETTERLE, Andiara, No capitalismo de propósito, a narrativa é essencialValor Econômico. Edição de 21, 22 e 23 de setembro de 2024. Página B6.

[11]PETTERLE, Andiara. No capitalismo de propósito, a narrativa é essencialValor Econômico. Edição de 21, 22 e 23 de setembro de 2024. Página B6.

[12]Sobre economia das narrativas, ver FRAZÃO, Ana.Jota.https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/por-que-o-mercado-anda-nervoso-com-as-recentes-declaracoes-de-lula

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