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Ana Frazão

Ana Frazão

26/11/2025

No último dia 17 de setembro, Jerry Greenfield, um dos criadores da famosa marca de sorvetes Ben & Jerry’s, publicou no X uma declaração explicando as razões de uma das decisões mais dolorosas da sua vida: sua saída da companhia, onde exercia o cargo remunerado de embaixador da marca, após 47 anos[1].

Segundo Jerry, apesar de continuar amando a companhia e os que nela trabalham, a empresa, após ter sido vendida para a Unilever, havia perdido o que tinha de mais precioso: a autonomia para buscar seus próprios valores, embora isso tivesse sido assegurado pela Unilever no processo de aquisição.

Com efeito, a história da companhia é marcada pelo seu ativismo social e ambiental e pela defesa de direitos civis e de voto, especialmente das minorias. Daí por que, na sua declaração pública[2], Jerry reconhece que, mesmo após a aquisição pela Unilever, a Ben & Jerry’s teria, por mais de vinte anos, se mantido firme e ativa na defesa da paz, da justiça e dos direitos humanos, procurando concretizá-los diante dos eventos reais do mundo.

Entretanto, a referida independência, segundo Jerry, teria acabado na atualidade, em um momento especialmente crítico, em que os Estados Unidos passam por inúmeros ataques aos direitos civis, aos direitos de voto e aos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+.

Jerry finaliza a sua declaração dizendo que o propósito da companhia nunca foi apenas produzir e vender sorvetes, mas também espraiar amor e convidar as pessoas a lutar por justiça e equidade. Daí por que o silenciamento da companhia seria tão grave.

Vale ressaltar que as relações entre os antigos donos da Ben & Jerry’s e a Unilever já estão desgastadas há um certo tempo[3]. Em 2021, a empresa disse que ia parar de vender sorvetes nos assentamentos israelenses na Cisjordânia, sob o fundamento de que isso seria incompatível com os valores de uma marca socialmente consciente, o que provocou forte reação de Israel e parece ter contrariado a Unilever[4]. Em janeiro de 2025, a companhia alegou que a Unilever unilateralmente impediu publicação que fazia referência a aborto, mudanças climáticas e saúde universal por mencionar o presidente Trump[5].

Além dos desconfortos e desgastes, essa dissonância acabou sendo judicializada em mais de uma oportunidade. No final de 2024, a Ben & Jerry’s entrou com uma ação judicial contra a Unilever, sob o fundamento de que a sua controladora estaria censurando suas declarações públicas de apoio a refugiados palestinos e às resoluções para encerrar a ajuda militar a Israel[6]. Em março de 2025, a companhia ingressou com nova ação contra a Unilever, sob o fundamento de que a demissão do seu CEO, em razão de seus pronunciamentos progressistas e do seu ativismo político, violaria o acordo de fusão[7].

É esse o quadro que nos propicia uma amostra de vários dos desafios a serem enfrentados pelo chamado capitalismo de propósito, ou seja, o engajamento voluntário de empresas na busca de outros fins e interesses que não apenas o lucro.

Os desafios do capitalismo de propósito no caso Ben & Jerry’s

Como já tive oportunidade de sustentar em minha tese de doutorado, hoje transformada em livro[8], não vejo problema, nem à luz do direito societário brasileiro nem à luz do direito societário estadunidense, que companhias possam assumir voluntariamente outras responsabilidades e propósitos que não apenas o atendimento do interesse dos seus acionistas[9].

É o que eu chamo de responsabilidade social voluntária, conceito que utilizo em contraste à função social da empresa, para o fim de destacar que somente esta última pode ser cogente, especialmente quando concretizada por meio de regras legais obrigatórias.

Desde que mediante a observância de alguns cuidados, tais como a a plena transparência dos propósitos e iniciativas buscados pela companhia, tanto perante consumidores como perante investidores, e desde que tais propósitos sejam compatíveis com o objetivo fundamental da manutenção da lucratividade da empresa a longo prazo, seria perfeitamente possível a responsabilidade social voluntária das empresas.

Tal posição é hoje respaldada por inúmeras iniciativas recentes, muitas das quais já tive oportunidade de abordar em colunas anteriores, tais como as mudanças do Roundtable e do Fórum Econômico Mundial sobre os propósitos das companhias, todas no sentido de que preocupações sociais e ambientais, longe de serem contraditórias com a finalidade essencial das companhias, são com elas compatíveis e, portanto, devem ser incentivadas e protegidas[10].

Logo, não apenas a postura histórica da Ben & Jerry’s seria justificável, como também seria justificável que, por meio do acordo de fusão negociado com a Unilever, tais aspectos da gestão empresarial fossem observados pela futura controladora.

Mais delicado é o problema da liberdade de expressão das companhias e o seu engajamento no discurso público, notadamente porque isso somente pode acontecer por meio daqueles que, como os seus administradores, podem falar em seu nome. Isso porque a chamada responsabilidade social voluntária ou capitalismo de propósito não se traduz apenas em ações, mas também em falas e discursos. Nesse sentido, o episódio ilustra muito bem o desconforto da Unilever com o engajamento político do CEO da Ben & Jerry’s, o que acabou levando à sua demissão.

Ocorre que, na atualidade, nem sempre fica clara a distinção entre as posições pessoais e as posições institucionais de um CEO, problema a que se soma o fato de que a facilidade e a instantaneidade das comunicações na atualidade podem incentivar manifestações sem a devida reflexão.

Trata-se, sem dúvida, de tema espinhoso, especialmente quando CEOs resolvem se pronunciar sobre temas complexos e atuais, ainda mais quando alheios à atividade empresarial. Não é sem razão que a The Economist dedicou uma de suas edições para tratar do problema do political CEO, mostrando que, apesar de não se poder negar a importância do posicionamento das companhias a respeito de assuntos fundamentais para a sociedade, há inúmeros riscos de excessos e partidarismos que podem comprometer a reputação da própria companhia e, consequentemente, a própria atividade empresarial[11].

Dessa maneira, saber se a demissão do CEO da Ben & Jerry’s foi adequada ou não, mesmo pelo crivo do capitalismo de propósito, exige o exame de uma série de variáveis, ainda que não houvesse regras expressas no acordo de fusão.

Este, aliás, é outro dos importantes tópicos da discussão, que igualmente evidencia o papel e a importância de acordos de fusão na manutenção dos propósitos originais da companhia adquirida. Daí por que uma das razões da disputa entre os antigos proprietários e a atual controladora Unilever diz respeito precisamente à observância dos propósitos e compromissos assumidos na aquisição.

Por mais que se trate de acordos confidenciais, a imprensa noticiou que o processo de compra da Ben & Jerry’s pela Unilever envolveu um acordo detalhado para que a companhia resguardasse o seu direito de se manifestar sobre temas relevantes, o que incluía a criação de um conselho independentemente para supervisionar a sua missão social[12]. Em parte, é essa a razão pela qual Jerry e Ben já manifestaram a sua intenção de recomprar a marca, embora a Unilever tenha dito que não intenção nesse negócio[13].

Logo, o caso sob exame ainda requer a análise aprofundada dos limites contratuais e institucionais de manifestação dos CEOs, a partir dos compromissos assumidos no acordo de fusão, assim como dos devidos limites e controles.

O que importa observar de todo esse cenário é que, tal como constou da declaração pública de Jerry ao se desligar da companhia, a discussão vai realmente muito além da produção e venda de sorvetes. Trata-se de exemplo marcante que evidencia as tensões entre um capitalismo de propósito e um capitalismo mais “tradicional” – aquele que supostamente é mais afinado com o perfil da controladora Unilever – para as quais as soluções não são fáceis.

Resta aguardamos o desfecho da disputa, assim como dos processos judiciais já movidos. Mais uma vez, caberá ao Poder Judiciário estadunidense definir, do ponto de vista prático e operacional, quais são as consequências exigíveis do chamado capitalismo de propósito.

[3]https://www-npr-org.translate.goog/2025/03/20/nx-s1-5334417/ben-jerrys-ceo-removed-unilever-lawsuit-activism?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tchttps://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/ben-jerrys-sem-o-jerry-cofundador-se-demite-apos-disputa-com-unilever/

[4]https://www-npr-org.translate.goog/2025/03/20/nx-s1-5334417/ben-jerrys-ceo-removed-unilever-lawsuit-activism?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tchttps://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/ben-jerrys-sem-o-jerry-cofundador-se-demite-apos-disputa-com-unilever/

[5]https://www-npr-org.translate.goog/2025/03/20/nx-s1-5334417/ben-jerrys-ceo-removed-unilever-lawsuit-activism?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tchttps://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/ben-jerrys-sem-o-jerry-cofundador-se-demite-apos-disputa-com-unilever/

[6]https://www-npr-org.translate.goog/2025/03/20/nx-s1-5334417/ben-jerrys-ceo-removed-unilever-lawsuit-activism?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tchttps://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/ben-jerrys-sem-o-jerry-cofundador-se-demite-apos-disputa-com-unilever/

[7]https://www-npr-org.translate.goog/2025/03/20/nx-s1-5334417/ben-jerrys-ceo-removed-unilever-lawsuit-activism?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tchttps://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/ben-jerrys-sem-o-jerry-cofundador-se-demite-apos-disputa-com-unilever/

[8] FRAZÃO, Ana. Função Social da Empresa. Repercussões sobre a Responsabilidade Civil de Controladores e Administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

[9] FRAZÃO, Ana. Função Social da Empresa. Repercussões sobre a Responsabilidade Civil de Controladores e Administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

[10]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-liberdade-economica-e-os-propositos-da-atividade-empresarialhttps://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/capitalismo-de-stakeholders-e-investimentos-esghttps://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ano-novo-capitalismo-novo

[11]https://www.economist.com/leaders/2021/04/15/the-political-ceo

[12]https://www.infomoney.com.br/business/fundador-da-ben-jerrys-renuncia-e-acusa-unilever-de-calar-ativismo-da-marca/

[13]https://www.infomoney.com.br/business/fundador-da-ben-jerrys-renuncia-e-acusa-unilever-de-calar-ativismo-da-marca/

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