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A Lástima dos Atos Constitutivos Capengas

25/09/2025
Em meio ao oceano fatigante dos litígios societários, nota-se que as partes buscam remar entre páginas de jurisprudência e doutrina, mas, raramente, encontram ancoragem no ato constitutivo. Não surpreende. No geral, tais documentos são vexados na concepção e na execução: folhas fracas, resultado de ação advocatícia negligente. Entre nós, já o dissemos e insistiremos na denúncia à exaustão, o ato constitutivo (contrato social ou estatuto social) é encarado como mero detalhe para a obtenção de um número no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas. Eis a matriz a partir da qual se forma tal patuléia de documentos mal escritos, lacônicos, capengas, a rescender de um fedor de mau direito (foetor malae iuris). E disso não resulta sequer grande benefício profissional: o advogado que quer ter sucesso em sua atividade precisa ser capaz de proporcionar sucesso à atividade de seus clientes. A proatividade deve vencer a tendência à inércia que, vício humano comum, reduz-nos – ou trabalha por reduzir em nós – o empenho. Pensando bem, é um esforço ético – compreendendo-se a ética como a estética da existência e do comportamento, nos moldes propostos por José Américo Motta Pessanha – tal resistência aos vícios que se esforçam por levantar em nós para, enfim, limitar nossa excelência.
O papel estratégico do contrato social e do estatuto social
Um advogado responsável e experiente oferecerá ao seu cliente um ato constitutivo que reflete sua experiência sobre os problemas comuns numa corporação. É melhor do que esses modelos básicos que confundem formulário elementar com instrumento de autorregulação corporativa. E, como demonstramos em “Estruturação Jurídica de Empresas” (2.ed. Editora Atlas, 2025), o ato constitutivo faz exatamente isso: nos limites licenciados pela lei (de um lado, o que não é proibido; do lado oposto, o que não é obrigatório), permite às partes desenhar a arquitetura da corporação com suas especificações, suas particularidades. Então, um advogado cuidadoso, mais do que oferecer apenas sua experiência, questionará os envolvidos (os sócios, quotistas ou acionistas), como querem isso ou como querem aquilo, construindo uma plataforma normativa que reflita o que convencionaram, o que querem para si. É por essa via que se chega a um documento que efetivamente reflita o que os sócios são, o que a empresa e a corporação devem ser. Isso é um serviço de luxo e não o resultado de uma linha-de-produção em massa.
Falhas comuns na elaboração do ato constitutivo
Quer ver? O descaso com a definição mais acurada, mais miúda, das obrigações e das faculdades jurídicas dos sócios. Isso é assustador. Está-se a bulir em caixa de marimbondos, como se diz interior afora. É óbvio que a sociedade empresária, seja lá qual for, irá experimentar as forças cotidianas de desagregação. É o ramerrão hobbesiano do homo homini lupus: o ser humano é o lobo do ser humano, afastando qualquer pretensão a imunidade de gênero. Não dá para desconhecer que os grupos – neles incluídos as sociedades mercantis – padecem dos agentes comezinhos da desagregação e, consequentemente, mais cedo ou mais tarde, a porca vai torcer o rabo. Ainda mais quando, por fragilidade jurídica, vive-se num terreno de vale-tudo, salvo as disposições genéricas da legislação. Por isso, listamos vários modelos de cláusulas e artigos sobre direitos e deveres dos sócios no “Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios” (8.ed. Barueri: Atlas, 2024). Isso é essencial para almejar uma maior estabilidade corporativa.
É ingênuo crer que um contrato social ou um estatuto social efetivamente cumpram suas funções quando se apresentam como mero catado de uma dúzia de disposições gastas e surradas que dizendo o mínimo tão reiterado, na prática não diz (nem regulamenta nada). Parece uma fanfarrice (há quem prefira farromba; dá igual): chapar o comum mínimo para calar-se dizendo, qual passantes que, ambos a dizer tudo bem?/tudo bem?, não estão querendo saber da vida do outro, ainda que esteja um inferno danado da moléstia. O formulário comum mínimo é um dizer para se calar. Dizer necessário: a lei manda; mas sem nada dizer. Para o advogado, uma recusa do seu múnus público: um amesquinhamento da função: passa sobre a estruturação jurídica da empresa, para a qual foi contratada, como um gato em brasa: foge. Em meio a isso, a Ordem dos Advogados do Brasil, volta e meia, lança campanhas de valorização da advocacia e respeito ao advogado. Pois leia-se lá em Albert Camus que a grandeza do ser humano está na decisão/disposição de ser mais forte do que a condição humana. Permita-nos a paráfrase: a grandeza do advogado está na decisão/disposição de ser melhor do que comum: essa condição média que faz, mas pouco realiza.
Cláusulas essenciais para evitar conflitos societários
Na omissão do ato constitutivo, contrato ou estatuto, bem como suplementação de eventual plataforma acessória (secundária)– usando a nomenclatura de nossa Teoria Dinâmica do Direito Societário, inscrita em “Estruturação Jurídica de Empresas” (2.ed. Editora Atlas, 2025), o sócio majoritário pode agir como senhor de baraço e cutelo; pretende não ter que dar satisfações a ninguém e de ninguém aceita pedidos para tanto, no que o silêncio da plataforma normativa primária lhe ajuda e estimula. Em sociedades familiares, isso pode se tornar um câncer entre os parêntes e transformar fraternidade em inimizade amplamente indesejada. Por isso, tomamos o cuidado de chamar a atenção dos colegas sobre o tema em “Holding Familiar e suas Vantagens” (17.ed. Editora Atlas, 2025); o profissional que arquiteta uma operação dessas, explicamos no livro, precisa ter consciência do desafio que representa a unidade familiar, sua história, seus dramas, seus desafios. A negligência na estruturação pode ser trágica; aliás, tais tragédias já se contam aos milhares, infelizmente. E, na maioria esmagadora dos casos, percebe-se nítida falha na prestação do serviço o que, mais cedo, mais tarde, pode chegar às barras dos tribunais.
A importância da mediação e conciliação nas sociedades empresariais
Não sejamos tacanhos; não é questão que toque exclusivamente às famílias. Um conflito pode mandar a sociedade às urtigas; quiçá também a empresa. E aí? O advogado responsável pela estruturação jurídica da empresa discutiu com os interessados sobre cláusula de mediação em caso de conflito? A eclosão do litígio torna improvável a continuidade da sociedade e, assim, a previsão de instâncias de mediação e/ou conciliação funciona como juntas de dilatação (ou amortecedores), criando uma alternativa para nervos esfrangalhados pelo desencontro e desentendimento. Corporações promissoras veem-se inviabilizadas por picuinhas, caprichos, vaidades; percalços que, levados ao diálogo tecnicamente intermediado, superam-se e permitem a continuidade do negócio e da sociedade. Décadas de cultura contenciosa nos impediram de perceber os méritos da conciliação e da mediação, oferecendo-a como parte da tecnologia societarista que disponibilizamos aos clientes.
Jurisprudência recente sobre dissolução parcial e apuração de haveres
Curiosamente, um dos pontos em que a jurisprudência sobre os atos constitutivos é mais farta refere-se à discórdia, o que dá cadeira ao pessimismo. São julgados sobre dissolução parcial de sociedade: resolução da sociedade em relação ao sócio e a apuração de haveres relativa à sua participação no capital social/azienda empresarial. Uma lástima. Assim, julgando o Agravo de Instrumento nos Embargos Declaratórios no Agravo em Recurso Especial 2.583.693/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu: “Na dissolução parcial da sociedade, a apuração de haveres se processa na forma estipulada no contrato social, em razão do princípio da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos. Ausente a previsão contratual ou havendo a mera reprodução do dispositivo legal, deve-se adotar o balanço de determinação como critério de apuração, uma vez que o sócio não pode receber valor diverso do que receberia, como partilha, na dissolução total. Precedentes.” No corpo do acórdão, é útil realçar, os ministros repreenderam a instância de origem que não só desrespeitou o contrato social, como reconheceu que o fez, “afastando as disposições da cláusula contratual ao bel prazer do Juízo, em sociedade empresária, vulneração aos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, como se simplesmente não houvesse qualquer previsão definindo a forma de apuração de haveres.” E, para que se possa compreender a extensão do julgado, validou-se tanto a cláusula que estabelecia a forma de apuração dos haveres, quanto a cláusula que cuidava da forma de seu pagamento.
O reconhecimento do poder vinculante das disposições licitamente ajustadas entre os sócios é tanto que, em face do Agravo de Instrumento no Recurso Especial 2.037.102/SP, a Terceira Turma assim se manifestou: “A cláusula contratual que prevê a apuração dos haveres pelo valor nominal das quotas, desprezando valores imateriais e intangíveis, reflete a livre estipulação entre as partes e está em consonância com a legislação aplicável e a jurisprudência desta Corte, afastando alegações de violação aos artigos 606 do CPC e 884 e 1.031 do CC.” Se bem que, no caso, havia uma particularidade: o precedente referia-se a uma sociedade de advogados: “O acórdão recorrido reconhece que a sociedade de advogados, por expressa disposição legal (Lei nº 8.906/1994, artigos 15 e 16), possui natureza de sociedade simples, não podendo adotar critérios típicos de sociedade empresária, como a consideração de clientela ou fundo de comércio na apuração de haveres.” Assim, reforçou-se o que decidira o Tribunal Paulista, ou seja, a dimensão da operação da banca de advocacia não poderia ensejar sua desnaturação para, assim, tomar a carteira de clientes como um ativo intangível ou imaterial, incluindo-a na apuração em haveres. E, nestas bases, reconheceu-se a validade e eficácia do contratado, afastando o argumento de que seria “ilegal, abusivo e desproporcional”.
Pacífico? Nem tanto, infelizmente. Também recente foi o julgamento do Agravo Interno nos Embargos Declaratórios no Recurso Especial 2.160.132/DF; não pela Quarta Turma, mas pela Terceira que, por seu lado, decidiu: “Segundo a jurisprudência do STJ, na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. Precedentes.” Não há no corpo do acórdão enunciação de particularidades e, assim, fica a questão: “o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado”? Então, é possível discordar do resultado e, assim, desvencilhar-se da previsão inscrita no contrato? Não se chegaria à “vulneração aos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos, como se simplesmente não houvesse qualquer previsão definindo a forma de apuração de haveres” criticada pela Quarta Turma no já citado julgamento do Agravo de Instrumento nos Embargos Declaratórios no Agravo em Recurso Especial 2.583.693/SP?
Destacamos serem todos julgados recentes, de 2025. Como também o é o julgamento do Recurso Especial 1.900.838/SP, também pela Terceira Turma, com a seguinte ementa: “No que respeita ao método a ser empregado para apuração de haveres, a jurisprudência desta Corte Superior está orientada no sentido de que, na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação.” A condicionante “na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres” alinha o entendimento com aquele enunciado pela Quarta Turma. Outra condicionante é inteiramente cabível: desde que o critério de apuração de haveres previsto no contrato social seja constitucional e lícito; é o óbvio que pulula e ulula: toda e qualquer norma individual privada tem que atender aos pressupostos de validade (artigo 104 do Código Civil).
Parece-nos, entrementes, que o citado julgamento do Agravo Interno nos Embargos Declaratórios no Recurso Especial 2.160.132/DF dá mostras de ser um ponto fora da curva. Talvez atenda a particularidades do caso em concreto que o acórdão, desatento, deixou de enunciar em suas razões. De qualquer sorte, o precedente alimentará litigiosidade. Afinal, ao advogado cabe lutar por decisão favorável ao seu cliente; é seu múnus público, diz a lei: artigo 2º, §2º, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. E, no afã de melhor desempenhar tal múnus, qualquer julgado favorável é explorado até a última gota (mesmo que não ofereça suco farto). Só a estabilidade dos entendimentos judiciários desarma as aventuras processuais que ainda encontram terreno fértil entre nós.
Conclusão: segurança jurídica como diferencial competitivo
Demonstra talento quem está atento às transformações em sua área, em seu mister, compreendendo-as como necessidade técnica, além de adivinhar a oportunidade profissional que ostentam. Julgados que reconhecem o primado das previsões estipuladas no ato constitutivo (contrato social ou estatuto social), “em razão do princípio da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos” (como se lê no Agravo de Instrumento nos Embargos Declaratórios no Agravo em Recurso Especial 2.583.693/SP, Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça), pintam um cenário no qual tratar as plataformas normativas como um detalhe para tão-somente obter um número de CNPJ, são perspectiva e prática simplistas, tacanhas, avarentas. Advogados, empresários, investidores e administradores societários precisam despertar para isso rapidamente. Estão a subestimar a estruturação jurídica das empresas e nisso renunciam a benefícios e partejam riscos desnecessários.
O espaço para esse trabalho? Enorme. Advogados devem se mostrar capacitados a redigir parâmetros jurídicos em três dimensões (de existência, de funcionamento e de atuação) e em três níveis: plataformas normativas primárias (ou principais: atos constitutivos), secundárias (ou acessórias) e terciárias (ou laterais), para não falar na redação de instrumentos de contrato por meio dos quais essa atuação concretiza-se no mercado. Foi o que demonstramos em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas). Usando tecnologia jurídica adequada, criam-se situações desinsofridas; no Direito, a melhor técnica é alcoviteira da segurança. Nisso há valia de sobra, méritos aos montes: como se diz por aí, é bom pacas! E a julgar pelo estado calamitoso da grande maioria das estruturações jurídicas existentes atualmente, há muito trabalho à frente. S’embora!

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