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Antitruste e gênero

Ana Frazão

Ana Frazão

12/07/2024

A economia feminista, dentre diversos outros ramos da economia, vem destacando os reducionismos da economia neoclássica mainstream, especialmente no que diz respeito à sua pretensão de ignorar as relações de poder existentes na sociedade – e as desigualdades inerentes – e os seus desdobramentos sobre as relações de mercado.

Essa reflexão tem impactos diretos no Direito Antitruste, diante de estudos recentes que demonstram que o abuso de poder econômico não tem efeitos lineares sobre todos, afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis, dentre os quais as mulheres. Nesse sentido, há evidências de que monopólios e mercados concentrados exacerbam a desigualdade de gênero, lesando de forma mais grave as trabalhadoras e empreendedoras mulheres, assim como aumentando a concentração de poder político em mãos masculinas.

Direito Antitruste

De fato, um dos reflexos da recente – e acertada – preocupação do Direito Antitruste com os mercados de trabalho é a constatação de que práticas abusivas que resultam do poder de monopsônio ou oligopsônio de empregadores podem prejudicar especialmente as mulheres – e, dentro desse conjunto, afetarem mais intensamente determinados grupos, como as mulheres negras e imigrantes, dentre outras.

No âmbito das concentrações, dados empíricos de fusões mostram que uma das consequências comuns é a diminuição de mulheres na força de trabalho, especialmente em cargos de direção[2]. Entretanto, como já se adiantou, o problema não se restringe às mulheres trabalhadoras, mas também às consumidoras e às empreendedoras.

Tais constatações suscitam a discussão sobre em que medida o standard do bem estar do consumidor propaga as desigualdades de gênero e também as raciais[3]. Afinal, tal standard, normalmente vinculado à noção de eficiência, é aplicado por meio da equiparação analítica de todos e ainda é medido por critérios que, como é o caso da eficiência alocativa de Kaldor-Hicks, focam na soma do bem estar total, sendo indiferentes a quem perde e a quem ganha. Assim, pode haver situações consideradas eficientes em que os perdedores são exatamente aqueles que, por já serem os vulneráveis, não poderiam perder de jeito nenhum.

Acresce que, como já se viu, a Escola de Chicago, mais do que levar a uma verdadeira desconstitucionalização do Direito Antitruste[4], acabou tendo como consequência a “desjuridicização” desta área, que foi reduzida a uma metodologia econômica[5] construída e desenvolvida por homens brancos do Hemisfério Norte, a partir de suas visões de mundo e sem considerar as desigualdades reais. Consequentemente, não surpreende que questões de gênero e as demais desigualdades, tais como a racial, tenham sido negligenciadas.

Acresce que a postura de neutralidade defendida pelo mainstream econômico não deixa de ser uma opção valorativa em favor da manutenção do status quo, mesmo que com todas as suas iniquidades.

Consequências da postura omissa do Direito Antitruste em relação ao gênero

As consequências dessa postura omissa do Direito Antitruste em relação às questões de gênero são bem sintetizadas no artigo de Kati Cseres com o título Feminist Competition Law[6]. Dentre as principais conclusões da autora estão as seguintes:

(i) as principais teorias normativas de justiça social, bem estar ou desigualdade continuam baseadas nas experiências e interesses dos homens, ignorando a existência e a relevância de sociedades estruturadas pelo gênero com instituições sociais, papéis, diferenças e dinâmicas de poder baseados no gênero;

(ii) as abordagens feministas questionam a alegada neutralidade e objetividade do Direito Antitruste, desvelando os impactos do gênero em suas regras, conceitos e práticas de enforcement;

(iii) a conceituação dos mercados na teoria econômica falha em capturar a complexidade do comportamento econômico.

Daí a autora propor um Direito da Concorrência que seja inclusivo sob a perspectiva do gênero, possibilitando investigações de mercado em que o gênero e outros fatores correlatos possam afetar as decisões de compra dos consumidores e tenham implicações para o exercício de poder de mercado. Consequentemente, a proteção do consumidor passa a considerar necessariamente os diferentes grupos e o grau de vulnerabilidade de cada um.

Tal postura se torna ainda mais necessária no contexto da economia digital, que, longe de atenuar, vem reforçando a discriminação contra mulheres, inclusive por parte de grandes plataformas. É conhecido o caso do algoritmo da Amazon que prejudicava indevidamente mulheres no recrutamento[7], que é apenas um exemplo dentre inúmeros outros[8].

Aliás, recentemente tive a oportunidade de mostrar como a desinformação de gênero e o aumento da misoginia e da incitação à violência contra as mulheres está relacionado às ações e omissões das plataformas digitais[9], o que reforça as relações entre o poder econômico e a discriminação de gênero.

Diante da importância do tema, a OCDE oferece um excelente roteiro (toolkit) para auxiliar na importante tarefa de tornar o Direito Antitruste mais inclusivo do ponto de vista do gênero[10]:

(i) coletar dados para entender quando e como diversos grupos de pessoas são prejudicados desproporcionalmente por comportamentos anticompetitivos;

(ii) usar pesquisas para melhor entender o comportamento do consumidor

(iii) aplicar lentes de gênero para a definição de mercados relevantes e para a análise dos efeitos anticompetitivos;

(iv) construir remédios sob medida para corrigir ou mitigar prejuízos de um grupo específico em desvantagem;

(v) considerar a diversidade de gênero nas investigações de cartéis;

(vi) incluir considerações de gênero no compliance e nas atividades de advocacy;

(vii) considerar diversidade e inclusão no nível institucional de autoridades antitruste;

(viii) focar no engajamento de stakeholders para assegurar inclusão;

(ix) considerar o gênero na priorização de decisões;

(x) aplicar lentes de gênero para a avaliação ex post das medidas antitruste.

Como se pode ver, diante da importância do tema e dos diagnósticos já mapeados, é fundamental que pensemos em como tornar o Direito Antitruste mais inclusivo do ponto de vista do gênero, ainda mais quando já se tem o importante guia delineado pela OCDE, propondo várias soluções, muitas das quais podem ser implementadas de imediato e sem maiores obstáculos.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] KSERES, Kati. Feminist Competition Law. Amsterdam Law School Research Paper No. 2023-43 Draft chapter for Cambridge Handbook on the Theoretical Foundations of Antitrust and Competition Law (Cambridge University Press, forthcoming 2024). https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4682906, p. 26.

[2]https://www.promarket.org/2023/01/09/how-the-consumer-welfare-standard-propagates-gender-and-racial-inequalities/

[3]https://www.promarket.org/2023/01/09/how-the-consumer-welfare-standard-propagates-gender-and-racial-inequalities/

[4] SCHUARTZ, Luis Fernando. A desconstitucionalização do Direito da Concorrência. https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/04f0da76-6321-448a-8793-9afbeffe5377/content

[5] FRAZÃO, Ana. Direito da Concorrência. Pressupostos e Perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, Capítulo 2.

[6]Amsterdam Law School Research Paper No. 2023-43 Draft chapter for Cambridge Handbook on the Theoretical Foundations of Antitrust and Competition Law (Cambridge University Press, forthcoming 2024)https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4682906

[7]https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2018/10/amazon-desiste-de-ferramenta-secreta-de-recrutamento-que-mostrou-vies-contra-mulheres.html

[8] LINDOSO, Maria Cristine. Discriminação de gênero no tratamento automatizado de dados pessoais. Rio: Renovar, 2021.

[9]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/industria-da-desinformacao-de-genero-03042024

[10]https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-gender-inclusive-competition-checklist-A4-en.pdf

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