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Comportamento societário coerente

06/01/2025
Neste artigo, Gladston Mamede, Eduarda Cotta Mamede e Roberta Cotta Mamede discorrem sobre affectio societatis e o comportamento societário coerente. Acompanhe.
Affectio Societatis
Muito se fala em affectio societatis, uma das mais tormentosas questões que envolve o Direito Societário. As abordagens para a questão são variadas, o que se percebe tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Em latim, o vocábulo affectus tem, entre os seus significados, a ideia de afeito, fazer na medida para algo; ser-lhe próprio, por decorrência. “A contratação da sociedade exige comprometimento de seus sócios, não apenas com o cumprimento das cláusulas avençadas, mas igualmente um comportamento compatível com a constituição de uma coletividade com objetivos econômicos. Isso demanda atenção ao conjunto de princípios jurídicos aplicáveis ao Direito Societário.” (Direito Societário. 14.ed. Atlas, 2022, p. 79)
Essa é uma questão essencial, elementar: quem está numa sociedade deve manter um comportamento coerente com a ideia/conceito de sociedade. Dito pelo ângulo oposto, não se pode usar da condição de sócio para trabalhar contra a coletividade social: os demais sócios e/ou a pessoa jurídica. Há sim aqueles que, tanto no mercado, quanto na teoria e na prática jurídicas, aceitam o contrário. Consideram ser lícito a qualquer um assumir a condição de sócio e, uma vez no seio da corporação, agir orientado exclusivamente por seus interesses e metas, ainda que isso implique em prejuízo aos demais sócios e/ou à própria sociedade (a pessoa jurídica). Julgamos haver nisso um contrassenso que trabalha contra a própria ideia de compor um grupo, uma coletividade, com um objeto social comum. Sociedades não foram pensadas para isso, não surgiram com tal finalidade, não se amoldam a tal compreensão. A interpretação é incoerente com a figura e, portanto, não se sustenta. Como se não bastasse, agride princípios do Direito Privado Moderno, nomeadamente eticidade (boa-fé), moralidade (probidade) e socialidade (função social).
Portanto, não se pode descurar que “os sócios devem agir de maneira coerente com o que contrataram, o que inclui o dever de fidúcia (de se fazer confiar, de agir de maneira coerente com haver contratado uma sociedade) e de lealdade. […] Assim, os sócios devem revelar em seu comportamento (comissivo e omissivo) uma disposição para a vida societária. Em suma, dever de fidúcia e lealdade para com a sociedade e para com os demais sócios, todos parceiros de uma mesma contratação.” (Direito Societário. 14.ed. Atlas, 2022, p. 80) Trata-se de um parâmetro mínimo: quem compõe uma sociedade deve adotar postura e atuação compatível com a assunção da condição de sócio. Noutras palavras, é preciso revelar postura colaboracional. Pelo ângulo inverso, é necessário limitar os impulsos agressivos, conter as disputas em âmbito razoável, cadenciar eventuais enfrentamento, limitar o individualismo, o egoísmo e egocentrismo. A partir daí se estabeleceriam contextos de desconfiança e inconfidência, deslealdade e sujeição, ambientes de má-fé e imoralidades (maiores ou menores), vale dizer, sem principiologia jurídica sustentável. Romper-se-ia com o animus contrahendi que é próprio e específico da assunção das faculdades/obrigações próprias da condição jurídica de sócio, mesmo nas pessoas jurídicas institucionais (estatutárias). Quem quer ser individual, deve agir por meios diversos, lembrando que o Direito Brasileiro permite a sociedade limitada unipessoal.
São considerações que podem ser compreendidas como óbvias, sabemos. Chover no molhado, dirão alguns. Mas certas verdades precisam ser repetidas e reiteradas a bem da realidade, do cotidiano e da construção do futuro. Há correntes doutrinárias e práticas jurídicas e negociais que se assentam sobre a lógica da rapinagem: uma extremação do interesse individual sobre o bem-estar da coletividade. No entanto, sociedades são coletividades e como tais devem ser compreendidas e concretizadas. Quem adere a um espaço coletivo deve ser comportar de forma coerente. Essa é a melhor tradução de affectio societatis. Agora, esse aspecto das sociedades pode ser melhorado? Parece-nos que sim.
Tecnologia Societarista
Escreveu-nos uma leitora: estou lendo um livro de vocês e vejo que sempre mencionam o termo “tecnologia jurídica”; usam-no numa acepção de novos e/ou diferentes caminhos de soluções jurídicas, que os advogados podem apresentar aos clientes para prevenir danos e tal. Também vejo que usam muito o termo “inovação jurídica”. Gostaria de saber, se possível, se vocês usam “inovação jurídica” como sinônimo de “tecnologia jurídica” ou se são termos distintos, mas que estão intrinsicamente ligados? Refletindo sobre os seus ensinamentos, tenho certa dificuldade em compreender com clareza essa parte.
Vamos por aí. Na acepção usual, tecnologia é algo que se afere no plano da ciência para a resolução de problemas. Métodos, técnicas, mecanismos etc, desenvolvidos e estudados no âmbito do que se pode chamar de conhecimento científico ou conhecimento teórico, usados para resolver problemas. A partir da teoria dos títulos de crédito, forma-se a tecnologia cambiária que será usada por todos os que trabalham com cártulas. Quando um advogado é contratado para uma incorporação societária, usará a respectiva tecnologia que, de resto, é estudada, em suas bases, nas faculdades de Direito: Direito Societário. Mais do que isso, há uma vasta bibliografia que explora a questão jurídica: teoria mais profunda; tecnologia mais sofisticada. Aliás, melhor tecnologia, melhor feitura. Agora, essa tecnologia comporta inovações, que podem surgir da lei, da jurisprudência, da academia e, mesmo, da prática. Exemplo? A incorporação reversa.
Temos um bom começo: a teoria que nos foi ensinada na faculdade e nos é ensinada pelos livros jurídicos é tecnologia para o restante da sociedade. Há uma tecnologia empresarialista, uma tecnologia imobiliária, tecnologia trabalhista, tecnologia consumerista etc etc. Uma tecnologia, aliás, que os atores sociais precisam. Há mesmo casos em que são implicados por essa tecnologia, sem se dar conta ou sem dar importância. Acontece a toda hora; por exemplo junto à frase: “é só assinar aqui, no x”; isso para não falar do checkbox, ou seja, da caixa de diálogo que se clica desavisadamente e, ao fazê-lo, concorda-se com os termos e condições do que não se leu, nem se entende. Então, quando o problema estoura, senta-se à frente de um advogado, olhos de criança caçula diante do pai, os cacos do vaso ou da jarra bem ali perto. De nossa parte, vamos seguir em nossa ladainha: advogados são úteis; advogados são necessários; advogados podem ser investimento, em lugar de despesa. Isso precisa ser aprendido.
Julgando-se seguros do que querem da vida, nossos investidores e administradores estão sempre certos de que conseguirão o que querem. Não se consultam, não se assessoram, pois sabem como é e deve ser. Herdamos essa certeza das gerações anteriores e as deixamos por herança para as seguintes. O resultado disso é termos um mercado impressionantemente amador, vale dizer, um ambiente negocial avesso ao profissionalismo, embora haja exceções. A cultura empresarial brasileira reitera a mesma personagem que sempre se julga eficiente, certo de seus passos, sem precisar de ninguém. Não estamos falando apenas de regras jurídicas, mas de parâmetros mercadológicos, logísticos, econômico-financeiros. No plano do Direito, então, ouvem-se asneiras declamadas com empáfia. É que fulano disse que fulano disse que fulano disse. Nenhum deles um bom advogado. Bazófia: discursos vaidosos e presunçosos; na culinária, bazófia é um ensopado feito com restos de comida; os italianos são ainda piores: bazzofia são essas barafundas (mesmo refeições e pratos) que juntam de um tudo, sem harmonia; o murundum do idioma quimbundo.
Há sucesso possível assim? Claro! Quando a sorte bafeja. Mas a julgar pelo número de sociedades empresárias que malogram não muito depois de iniciarem suas atividades, a sorte é a exceção, não a regra. Já ouvimos profissionais repetirem-se cansados de uma vida em que não são ouvidos ou são contestados quando tentam explicar o que está efetivamente na lei ou nas decisões dos tribunais (embora sejam elas tão cambiáveis), em oposição às opiniões de ouvir dizer. Crê-se no que se quer crer, como se fosse sustentável criar um mundo próprio. Esses equívocos de opinião são inimigos terríveis que levam dentro de si e podem se revelar mais nocivos que a concorrência, as crises, os bandidos. A esperança de levar uma vida de rotina nos negócios, proveitosa, mas quieta, recomenda profissionalismo, postura indispensável para evitar eventos hostis e impiedosos que, infelizmente, compõem o mercado. Evitar o profissionalismo, em todas as dimensões da empresa, não é fugir das perturbações; é correr para elas. O paradoxo é inverso: a inconciabilidade da vida mercantil harmoniosa com amadorismo mercantil. Serve para artesãos autônomos (costureiras, sapateiros, bombeiros-eletricistas), não para empresas e empresários.
O caminho para dominar tecnologia jurídica é estudar. Não há escapatória. Estudar normas jurídicas (Constituição, leis e, não-raro, normas regulamentares a dar com pau); estudar e acompanhar a jurisprudência (que dá sentido às normas, a incluir alguns posicionamentos que desafiam os leitores da normas estatais); estudar a doutrina, que explora as possibilidades legais, dialogando com os tribunais e com a sociedades em geral; e vamos além: no plano do Direito Empresarial, acompanhar a imprensa especializada em assuntos do mercado para, ali, ver tendências, novidades, ousadias (que deram ou não certo) etc.
Autorregulação Societária
Quando trabalhamos com a base de uma ‘teoria dinâmica do Direito Societário’ em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas, 2024), demonstramos que o Direito Brasileiro lega aos atores mercantis privados um poder de autorregulamentação corporativa. Como se disse ali, ao renunciar a essa faculdade jurídica que se compreende no âmbito da liberdade constitucional de livre iniciativa jurídica, os atores privados aceitam o generalismo do regramento legal, permitindo uma invasão exegética pública em face à ausência de parâmetros privados. Não entendeu? Explicamos: Código Civil e Lei 6.404/76 trazem parâmetros largos; no âmbito das plataformas normativas societárias, seja o ato constitutivo (contrato social ou estatuto social), sejam os pactos parassociais (a exemplo dos acordos de sócios), é possível definir parâmetros específicos para cada sociedade empresária (claro, respeitando os limites constitucional e legais). Quando isso não ocorre, os litígios resolvem-se a partir dos parâmetros largos da lei. O julgador parte deles e, em construção exegética, especifica uma solução para o caso em concreto.
Não definir regras próprias é aceitar a presença de outro regramento. A casa abandonada é tomada. É o comum: o que resulta do emprego de baixa tecnologia societarista: vê-se pegado à força pelo estatal (nomeadamente, se não há cláusula compromissória). O regramento próprio, no ato constitutivo ou em pacto parassocial, é uma precaução corporativa. Quem se deixou seduzir pela pretensão de não definir preceitos, de si e para si, julgando que experimentaria mais liberdade, vê-se enredado pela própria ilusão e se torna um brinquedo hermenêutico. Leitores habituais da jurisprudência já estão cansados e enfastiados de tanto perceber a loteria de resultados, os mais diversos, alguns com a virtude de não agradar a qualquer das partes, outras causando sustos profissionais e estudiosos, mesmo porque o Direito Empresarial não é confortável a todos, infelizmente, e, entre nós, o Tribunal do Comércio existiu somente entre 1850 e 1875.
Para evitar situações indigestas, melhor é purgar-se na prevenção, recorrendo à melhor tecnologia jurídica, insistimos. É a nossa ladainha. No caso, importa observar que, recusando a generalidade da lei, tecnicamente lacunosa para não engessar todos as sociedades empresárias a um só parâmetro, é possível, senão recomendável, criar normas que definam os próprios parâmetros. Sim, as partes podem definir o que consideram comportamento societário coerente; podem mesmo ir além. Não há solução única, mas uma miríade de soluções possíveis; essencialmente, fugir ao comum e traduzir o que é próprio de cada coletividade, como demonstramos em “Estruturação Jurídica de Empresas” (Editora Atlas, 2024) e, para facilitar, exemplificamos no “Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios” (8.ed. Editora Atlas, 2024). Exemplo? Claro. É possível arrolar atitudes que são consideradas incompatíveis e justificam a exclusão do sócio. É possível prever punições alternativas, como a indenização pelos danos decorrentes, ou medidas prévias, como a advertência como pressuposto para posterior exclusão. O espaço para inovação tecnológica é largo: basta não infringir a Constituição e as leis. É lícito mesmo estatuir processo para apuração e decisão (punição ou absolvição).
Não é pouco. Mais do que isso: é e pode ser muito útil. Contudo, exige domínio do Direito para propor soluções sustentáveis. Só assim é possível otimizar juridicamente as corporações e, via de consequência, evitar que enfrentem esses acidentes de percurso tão comuns e deletérios. O melhor agir advocatício é aquele que atende às necessidades dos clientes; advocacia não é custo, nem despesa; é (e deve ser) investimento. Juristas devem se esmerar em garantir esse ganho, oferecer esse avanço, atender a essa expectativa. Isso se faz revelando capacidade de levantar os elementos que desafiam a empresa e dedicar-se em oferecer ajustes saudáveis e proveitosos. Esse é um desafio de classe.
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