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Responsabilidade de plataformas de transportes por acidentes com terceiros

Ana Frazão
12/12/2025
Recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou a responsabilidade da Uber por acidente causado por um de seus motoristas que trouxe danos a terceiros[1]. A fundamentação da decisão é bastante interessante porque não só acolheu a relação de consumo por equiparação – aplicando a regra da responsabilidade objetiva e solidária para todos os agentes da cadeia de serviços, nos termos do Código de Defesa do Consumidor – como porque avançou na relação entre a plataforma e seus motoristas.
Em primeiro lugar, a decisão acertadamente recusa o argumento de que a Uber é mera empresa de tecnologia, entendendo que é serviço de transporte, até porque gerencia todas as fases da contratação:
“Refira-se que o serviço da Uber não se restringe ao fornecimento de tecnologia digital para aproximar passageiro e motorista, mas de serviço prestado diretamente ao consumidor, com disponibilização de aplicativo em nome próprio no mercado de consumo, para armazenamento de dados e meios de pagamento, havendo aceite do consumidor na plataforma digital após estipulação do preço, indicação do motorista que irá realizar o serviço, acompanhamento geográfico da corrida e pagamento diretamente à Uber.
Destarte, o serviço da plataforma ultrapassa a tecnologia e se confunde com o transporte de passageiro, porquanto gerencia todas as fases da contratação com regramento por adesão, respondendo em razão do risco do empreendimento.”
Como se pode observar, o TJRJ acertadamente entendeu que esse tipo de plataforma, por exercer direção empresarial e ingerência direta em todas as fases do serviço, inclusive a precificação e todos os demais termos da contratação – que ainda é de adesão – precisa ser considerado como prestador de serviços de transporte. Vale ressaltar que foram mencionados outros julgados do TJRJ no mesmo sentido.
Tenho sustentado que as plataformas digitais podem envolver diversos tipos de interação, denominando de plataformas empresariais aquelas que abrangem relações econômicas protagonizadas por um agente empresarial, cujo papel não apenas possibilita negócios jurídicos por meio de plataforma virtual, mas também controla o conteúdo dos negócios jurídicos e, portanto, limita o grau de autonomia dos usuários, sendo comum que se suprima a possibilidade real de negócio jurídico direto entre os usuários.
Nestes casos, a plataforma, mais do que um intermediador, torna-se o verdadeiro contratante entre as distintas pontas do networking. A cooperação paritária entre agentes cede lugar à direção do agente empresarial detentor do meio virtual ou da plataforma, que normalmente exerce nítida direção e comando sobre a atividade econômica ofertada, estabelecendo as regras e as cláusulas dos contratos, a forma como o serviço será prestado e, o mais importante, o preço dos serviços.
Veja-se que a diferença é nítida: se um agente empresarial é apenas plataforma, conector ou matchmaker, ele pode ter relação de consumo com os usuários das pontas, mas isso não afasta a possibilidade de haver relação jurídica direta entre os usuários, até porque estes têm autonomia para decidir se, quando e como querem contratar. Por mais que haja algumas regras a serem cumpridas pelos usuários da plataforma, estes mantêm a autonomia privada em relação aos aspectos centrais do contrato, incluindo o preço.
Já no modelo empresarial, não se está perante propriamente de cooperação entre os agentes que estão nas pontas do mercado, diante da tendência dominante de hierarquia e direção unitária, que são as características da organização empresarial. Consequentemente, como as partes usuárias da plataforma não têm propriamente liberdade sobre os elementos centrais do contrato, como é o caso do preço e das condições do serviço, fixados exclusivamente pelo agente empresarial detentor da plataforma, as conclusões do TJRJ estão corretas.
Outro ponto importante da decisão do TJRJ é o fato de ressaltar que a sua conclusão não depende da inexistência de relação trabalhista entre o motorista e a plataforma, pois se basearia na culpa in eligendo da plataforma:
“A ausência de relação trabalhista com o motorista não afasta outrossim a responsabilidade da plataforma por atos do motorista parceiro, na modalidade de culpa in eligendo, tendo em vista as exigências prévias de cadastro do motorista e seu carro na plataforma, bem como a possibilidade de sanções, incluindo suspensões e descredenciamento.”
Por mais que o argumento da culpa in eligendo seja interessante, é importante observar que se poderia aplicar a casos como esse igualmente a regra do Código Civil que determina a responsabilidade objetiva dos preponentes por atos de seus prepostos.
Como já tive oportunidade de defender em artigo doutrinário[2], não há como afastar a relação de preposição entre a plataforma e o motorista, uma vez que este age sob a direção da plataforma, representando-a perante o usuário do serviço.
Nessa hipótese, todos os elementos da preposição estão presentes, tendo em vista que, além da direção e da supervisão da plataforma sobre o serviço, este é prestado em seu nome e em seu interesse econômico. Da mesma forma, não se tem como negar o elemento de representatividade, uma vez que a plataforma seleciona os prestadores de serviços, que agem em seu nome. Aliás, do ponto de vista da teoria da aparência, há elementos até para afirmar que é a plataforma que se apresenta como o efetivo contratante perante o usuário.
Na verdade, em muitos casos, estarão presentes até mesmo os elementos para a configuração da relação de emprego entre o motorista e a plataforma. Entretanto, ainda que não seja este o caso, não se poderia afastar a relação de preposição, inclusive para o fim de aplicar a regra da responsabilidade objetiva da plataforma pelos atos praticados pelos seus prepostos, nos termos do art. 932, III, do Código Civil.
Do ponto de vista comparativo, a identificação da relação de preposição nas plataformas digitais empresariais é até mais evidente do que na terceirização, pois, enquanto no primeiro caso são claros os elementos simultâneos de direção e supervisão, no segundo, a depender da situação, está presente apenas, pelo menos de forma mais clara, o elemento de supervisão.
Por essas razões, a jurisprudência brasileira progressivamente vem reconhecendo a relação de preposição nessas hipóteses. Veja-se, por exemplo, interessante julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo em caso envolvendo a responsabilidade da Uber por dano sofrido pelo consumidor, em que trecho do voto do Desembargador Marcelo da Cunha Bergo, ao lado de mencionar as regras específicas do Código de Defesa do Consumidor, também fundamenta suas conclusões na relação de preposição entre a plataforma e o “motorista-parceiro”[3]:
“Ao contrário do alegado, a empresa UBER explora o serviço de transporte, oferecendo conexão entre usuários e motoristas — estes previamente cadastrados em seu banco de dados –, e bem ainda administrando e gerindo os serviços por meio de sua plataforma digital (programa-aplicativo), mediante remuneração (art. 4º, X, da Lei 12.587/2012).
O exercício de tal atividade se dá de maneira habitual, com controle, gestão e auferição de lucro, de modo que é inequívoca a qualidade de fornecedora de serviços, nos termos do art. 3º, do CDC.
Em consequência, sua responsabilidade pelos danos causados culposamente pelo motorista/parceiro é objetiva (art. 18, do CDC).
(…)
Conclui-se, assim, que a UBER deve responder pelos danos causados aos coautores, que são equiparados a consumidores (by stander), ressarcindo os prejuízos comprovados, como bem asseverado na r. sentença.
(…)
Percebe-se, pois, de forma clara, que pouco interessa a natureza da relação mantida entre preposto e preponente, se de trabalho ou outra espécie contratual, mas apenas a vinculação à atividade empresarial desenvolvida.
Aliás, é cediço que as modernas relações de trabalho já não se encontram firmadas somente nas figuras estáticas das relações empregatícias, testemunhando-se o surgimento de novas relações negociais na gestão de empregados, como por exemplo as figuras da “pejotização” e, mais modernamente, a da “uberização”. (grifos nossos)
Do mesmo modo, a oferta e contratação no mundo digital têm recebido contornos de imaterialidade e dinamicidade, que relativizam as estruturas empresariais tradicionais.
Enfim, forçoso afastar as alegações da recorrente no sentido de se tratar de mera empresa de aplicativo, alheia a todo funcionamento das viagens realizadas pelos chamados “motoristas/parceiros”. Afinal, a recorrente não atua como mera fomentadora desta atividade, mas como a própria fornecedora dos serviços, diretamente contratada pelo consumidor, e a quem é direcionado o pagamento, gerenciando todo o trabalho de seu preposto (que sujeita-se às suas diretrizes e recebe para tanto).
Como se observa, há incidência de responsabilidade pelos mais variados critérios previstos na legislação civil e consumerista que, em complemento, reforçam-se mutuamente para confirmar a obrigação da empresa UBER pelos danos decorrentes de acidente de veículo ocasionado culposamente pelo “motorista/parceiro”, seu preposto.”
Dessa maneira, fica claro que o conceito de preposição, no atual contexto econômico, vem ocupando papel cada vez mais decisivo para a alocação de riscos e responsabilidades, especialmente, quando houver dúvidas sobre a natureza jurídica entre os agentes econômicos envolvidos – se é relação de parceria comercial, de trabalho subordinado ou qualquer outra.
Desde que haja o comando ou a supervisão da plataforma sobre os serviços, tais aspectos são considerados suficientes para a caracterização da relação de preposição e para a incidência do art. 932, III, do Código Civil, sem prejuízo de outras regras que, a exemplo das constantes do Código de Defesa do Consumidor, também preveem a responsabilidade solidária de todos os integrantes da cadeia de prestação de serviços.
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NOTAS
[1] TJRJ, Quarta Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº: 0059695-06.2025.8.19.0000, Relatora Des. Cristina Tereza Gaulia, decisão de 28.10.2025.
[2] FRAZÃO, Ana. A renovada importância da noção de preposição. Impactos sobre os casos de terceirização de serviços e de serviços prestados por plataformas digitais empresariais. In: MUSSI, Luiz Daniel Haj. Direito Empresarial Brasileiro. Estudos em homenagem ao Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Revista dos Tribunais, 2024.
[3] TJSP – RI: 00360329420168260114 SP 0036032-94.2016.8.26.0114, Relator: Marcelo da Cunha Bergo, Data de Julgamento: 13/04/2018, 6ª Turma Cível.