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Vivemos hoje em um tecnofeudalismo?

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Ana Frazão

Ana Frazão

28/08/2025

No seu livro Technofeudalism: what killed capitalism, Yanis Varoufakis[1] propõe uma tese arrojada: a de que o capitalismo tradicional não mais existe e foi substituído por uma nova forma de feudalismo, o tecnofeudalismo.

O Conceito de Tecnofeudalismo Segundo Yanis Varoufakis

Para o autor, os dois pilares do sistema capitalista – lucros e mercados – não mais governam nossas economias, já que o mundo atual vive dominado pelas big techs e a sua habilidade de monopolizar atenção, modificar comportamentos, extrair rendas dos capitalistas e transformar os usuários em servos digitais.

Um dos exemplos seria a Amazon, que pode parecer um mercado capitalista, mas não é. Afinal, mesmo em um mercado monopolizado, em que a empresa monopolista controla a oferta e o preço dos compradores, estes ainda podem trocar informações e se associar. Tais possibilidades deixam de existir diante de big techs, em que a mão invisível do mercado é substituída por um algoritmo.

O Papel das Big Techs na Nova Estrutura Econômica

Daí a associação que Varoufakis faz entre o atual cenário e o feudalismo. De forma similar ao feudalismo tradicional, em que o dono da terra cobrava dos vassalos taxas pelo seu uso, o mesmo acontece com os tecnofeudos, em que os donos das plataformas cobram também para que outros capitalistas possam estar no espaço virtual que é fundamental para o exercício de suas atividades econômicas.

O Impacto do Tecnofeudalismo na Economia e nos Consumidores

Para Varoufakis, a “terra” de Jeff Bezos pode ser digital, mas, ainda assim, continua sendo uma espécie de feudo, uma vez que, para ter acesso à Amazontown e aos clientes, as empresas vassalas precisam aceitar as regras unilateralmente impostas pela Amazon e pagar o que ela exigir.

Tal fenômeno não seria uma exclusividade da Amazon, mas também estaria presente nas outras big techs, que também funcionam a partir de “negócios feudais”. Disso decorre a pergunta essencial de Varoufakis: em um sistema econômico dominado por essas corporações, podemos falar ainda de capitalismo ou seria mais adequado falar em tecnofeudalismo?

É interessante notar que, para defender a hipótese do tecnofeudalismo, o autor parte das premissas de que, no capitalismo, a riqueza e o poder decorrem do capital e que há uma diferença entre renda (rent) e lucro, uma vez que apenas o segundo é suscetível e vulnerável à competição de mercado. Já a renda (rent) é uma extração de recursos que não necessariamente decorre de geração de valor.

No caso das big techs, a partir do momento em que os monopólios digitais são construídos, aplicar-se-ia a lógica do senhor feudal: não precisam fazer mais nada para extrair renda, pois podem fazer dinheiro mesmo dormindo. Tal postura é contrária à ideia de economia de mercado e é por esse motivo que Adam Smith via os senhores feudais como inimigos naturais do capitalismo, não só porque tinham interesse em manter terras fora do uso produtivo para inflacionar artificialmente a sua renda (rent), mas também pelo que faziam com suas rendas.

O destino do dinheiro é um aspecto importante para Varoufakis. Como trabalhadores consumem o que ganham e capitalistas reinvestem seus lucros, em ambos os casos, o ganho volta para a economia, ajudando a dinamizá-la. Já a renda (rent), pelo contrário, acaba muitas vezes se escondendo em bens especulativos como a arte, de forma que não entram em circulação, com o que diminuem os investimentos e minam o crescimento econômico.

Outro ponto importante é o próprio tipo de capital (cloud capital) e de atividade criados por tais empresas. Como elas não criam propriamente bens, não precisam de tantos empregados e querem dos usuários a sua atenção, pois é exatamente isso que consolida o seu feudo como mecanismo de extração de renda.

Para Varoufakis, a atenção é para as big techs o que a terra era para os senhores feudais, com a diferença de que, uma vez que detêm a atenção dos usuários, podem modificar o seu comportamento. Não é sem razão que os algoritmos buscam inicialmente criar confiança para depois começar a nos dar cutucões (nudges) para que possamos dar ainda mais informações, em um ciclo que se retroalimenta e nos tranca dentro do feudo criado.

Acresce que esse mecanismo faz com que os usuários criem conteúdos de forma gratuita para tais agentes, transformando-os em verdadeiros servos digitais. Mesmo não havendo coação, tais empresas criaram mecanismos pelos quais os usuários trabalham de graça para elas. Isso explica porque gastam somente 1% de seus faturamentos com trabalho: a maior parte das pessoas trabalha para elas sem remuneração.

Com isso, as big techs passaram a governar o mundo, transformando os capitalistas em vassalos que lhes pagam rendas e os cidadãos em servos digitais não remunerados. É por essa razão que o capitalismo baseado em mercado e lucros está morto.

Na verdade, o autor reconhece que os sistemas ainda coexistem, mas há uma significativa mudança de poder. Basta lembrar que não são mais os donos do capital tradicional que governam o mundo. O Google pode eliminar uma companhia simplesmente removendo-a da sua indexação, assim como várias big techs têm seus próprios meios de bloqueio, shadow-banning e deplatforming. A rigor, todos os agentes do capitalismo convencional passam a estar sujeitos a esse tipo de poder, mas os pequenos negócios são ainda mais vulneráveis.

Como se pode observar, o autor, partindo da premissa de que o feudalismo é um sistema baseado em extração de renda (rent), em que os senhores usam o seu monopólio sobre a terra para extrair renda dos seus subordinados, defende que essa lógica é replicada pelas big techs. Mais do que isso, demonstra que essa lógica é contrária ao capitalismo tradicional, que usa meios de produção para gerar bens e serviços vendidos em livres mercados com a finalidade de lucros e consolidação de capital, ao contrário do capital da nuvem, que é meio de modificação comportamental.

Verdade seja dita que, para defender a sua tese, o autor parece subestimar algumas questões importantes, tais como (i) os efeitos nefastos dos monopólios de forma geral, mesmo nos mercados convencionais, (ii) o fato de que a discussão sobre rentismo (rent-seeking) é inerente ao capitalismo, existindo em diversos outros setores, como é o caso dos serviços financeiros, e (iii) a circunstância de que o problema do capital especulativo ou não direcionado ao reinvestimento é observado em diversos outros mercados.

Por outro lado, muitos dos seus argumentos ignoram ou não dão o devido valor aos inúmeros serviços importantes prestados pelas big techs, assim como a própria modificação que o capitalismo passou com a crescente consolidação da importância dos serviços, mesmo fora dos mercados de tecnologia.

Não obstante, a analogia com o feudalismo é muito interessante e útil para entender muito do que ocorre na atualidade, uma vez que o controle do acesso ao espaço digital apresenta muitas semelhanças com o controle do acesso à terra durante o feudalismo. Não há dúvidas de que esses novos monopólios digitais alteram radicalmente o capitalismo, a ponto de ser pertinente a discussão sobre a própria subsistência do regime.

Entretanto, considero que mais importante do que saber se a nova realidade é mais próxima do capitalismo ou do feudalismo – até porque isso exige prévias delimitações conceituais que estão longe de ser triviais – é entender que estamos diante de formas de poder até então nunca vistas e que modificam estruturalmente o sistema capitalista.

Muito além do controle de acesso e da extração de renda, o poder das big techs se espraia em diversas outras frentes, dando margem a práticas preocupantes, como conflitos de interesses, manipulações e autopreferência.

O exemplo da Amazon quando concorre com seus usuários é bem ilustrativo: seria equivalente a um atleta que vai disputar uma partida com um concorrente que, além de jogador, é também dono da bola e do campo, criou as regras do jogo, é o juiz e ainda pode alterar as regras – de forma silenciosa, pois tudo se processa pelos algoritmos – durante o jogo a seu favor. É por essa razão que já tive a oportunidade de defender a necessidade de uma regulação ex ante para tais entes, a exemplo do Digital Markets Act[2].

Dessa maneira, concordemos ou não com as conclusões de Varoufakis sobre se o atual sistema é mais próximo do feudalismo do que capitalismo, fato é que precisamos estar atentos a todas essas transformações, que exigem novas abordagens regulatórias para a manutenção da própria existência e da funcionalidade do regime de mercado.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] Editora Bodley Headl, 2023.

[2]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/por-que-uma-regulacao-como-o-digital-markets-act ; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/por-que-o-antitruste-nao-consegue-resolver-o-problema-dos-gatekeepers

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