GENJURÍDICO
Superendividamento e outros demônios

32

Ínicio

>

Artigos

>

Consumidor

ARTIGOS

CONSUMIDOR

O superendividamento e outros demônios

DECRETO 11.150

LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO

SUPERENDIVIDAMENTO

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

23/11/2022

Embora o fim de semana tenha sido marcado pelas eleições, poucos candidatos apresentaram propostas para lidar com os problemas concretos do país. Um exemplo dramático pode ser visto na questão do superendividamento das famílias brasileiras, tema solenemente ignorado pela maior parte dos postulantes a cargos no Poder Executivo e no Poder Legislativo.

Pesquisa divulgada no mês passado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismos (CNC) revelou que o percentual de famílias endividadas já chega ao impressionante patamar de 79%[1]. Os endividados já são maioria no país. E este cenário pode ser ainda agravado pelo declínio do rendimento real médio dos brasileiros, constatado pelo IBGE[2], e pelas elevadas taxas de juros estipuladas para combater a inflação.

Lei do Superendividamento

Não há, no Brasil, política pública consistente e duradoura para lidar com o problema do superendividamento. A ajuda, quando vem, aparece sob a forma de auxílios temporários, quase sempre revestidos de finalidade eleitoreira. A própria Lei 14.181 — a chamada Lei do Superendividamento — ainda enfrenta resistência em sua aplicação e sofreu um duro golpe recentemente, por meio de uma regulamentação que parece ter sido desenhada para minar o seu propósito central.

Como se sabe, a Lei 14.181, editada em julho do ano passado, promoveu importantes alterações no Código de Defesa do Consumidor, autorizando o consumidor superendividado a instaurar perante o Poder Judiciário ou determinados órgãos públicos um “processo de repactuação de dívidas”, por meio do qual apresenta, em audiência de conciliação, um plano de pagamento aos credores, com prazo máximo de cinco anos para cumprimento (CDC, art. 104-A). Se o plano não for aceito pelos credores, o consumidor poderá pedir ao Poder Judiciário a fixação de um “plano judicial compulsório” (CDC, art. 104-B). Em ambas as hipóteses, a lei determina que reste preservado o “mínimo existencial, nos termos da regulamentação” (CDC, arts. 54-A, §1º).

Decreto 11.150

Ocorre que, em 26 de julho de 2022, foi editado o Decreto 11.150, que se propôs a regulamentar a matéria. O artigo 3º do referido decreto estabelece como “mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário mínimo vigente na data de publicação deste Decreto”. Tal percentual corresponde, hoje, à quantia de R$ 303,00 — valor que, de acordo com a Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (Anadep), não permite a compra de uma cesta básica. Com efeito, a cesta básica mais barata no mês de julho de 2022, em que foi editado o Decreto 11.150, custava R$ 542,50[3].

Não bastasse isso, o artigo 4º do Decreto 11.150 excluiu expressamente da aferição do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo, como dívidas de financiamento imobiliário, dívidas tributárias, dívidas condominiais e dívidas decorrentes de operação de crédito consignado, entre outras[4]. É certo que a própria Lei 14.181 tratou do superendividamento a partir da perspectiva das dívidas de consumo, mas a maior parte da comunidade jurídica já vinha criticando esta opção legislativa e sustentando ser possível ampliar a noção de superendividamento para abranger também dívidas de outra natureza. Durante a IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 19 e 20 de maio de 2022, foi aprovado o Enunciado 650, segundo o qual “o conceito de pessoa superendividada, previsto no art. 54-A, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, deve abranger, além das dívidas de consumo, as dívidas em geral, de modo a se verificar o real grau de comprometimento do seu patrimônio mínimo para uma existência digna.

De fato, não há qualquer fundamento para que os instrumentos oferecidos pela legislação à pessoa superendividada somente abarquem as dívidas de consumo. Esta cisão produz um tratamento desigual entre credores, ficando uns sujeitos à imposição de um plano de pagamento e outros não. Se uma pessoa não dispõe de recursos para pagar todos os seus credores é justo que eventuais prorrogações de prazos ou redução das dívidas alcancem a todos os credores do modo mais uniforme possível — como recomenda a tradicional diretriz da par conditio creditorum.

Separar, de um lado, os credores de dívidas de consumo e, de outro, os demais credores (como o fisco, os locadores, etc.), impondo apenas aos primeiros a sujeição a um plano de pagamento fere a noção mais elementar de isonomia. De resto, a recuperação do devedor superendividado é do interesse de todos os credores e somente o tratamento unitário do superendividamento assegura que cada credor “receberá o que, de fato, é possível receber à luz da capacidade financeira de devedor[5]. O Enunciado 650 da IX Jornada de Direito Civil encampava este entendimento. Aprovado em maio deste ano pelos juristas que participaram do evento, acabou fulminado, apenas dois meses depois, pelo Decreto 11.150.

Não seria exagero concluir que o Poder Executivo Federal, a pretexto de regulamentar a Lei do Superendividamento, acabou por frustrar a finalidade da lei, reduzindo expressamente a amplitude da noção de superendividamento e “encolhendo o mínimo existencial[6]. Registre-se que a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e a Anadep ajuizaram duas arguições de descumprimento de preceito fundamental — ADPFs 1.005 e 1.006, respectivamente —, questionando o teor do Decreto 11.105. Ambas as ações tramitam sob a relatoria do ministro André Mendonça e ainda aguardam julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

Também vale registrar que o Conselho Nacional de Justiça instituiu, por meio da Portaria 55, de 17 de fevereiro de 2022,[7] um grupo de trabalho integrado por 24 juristas que, sob a coordenação do ministro Marco Buzzi, do Superior Tribunal de Justiça, tem a missão de monitorar a judicialização do superendividamento, realizar eventos e atividades de capacitação de magistrados atuantes em demandas de superendividamento e apresentar propostas de recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos sobre a matéria (Portaria CNJ 55/2022, art. 3º)[8].

Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento do Consumidor

O referido grupo de trabalho preparou uma “Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento do Consumidor”[9], publicada em agosto deste ano pelo Conselho Nacional de Justiça. Nas palavras do ministro Marco Buzzi, a cartilha “não visa exaurir a temática ou esgotar os vieses de análise e questionamentos acerca da aplicação das disposições introduzidas pela Lei n. 14.181/2021, na medida em que ultrapassaria os limites inerentes a uma cartilha. Do contrário, lastreada em uma necessidade prática, o conteúdo ora exposto circunscreve-se a estabelecer diretrizes mínimas e procedimentos uniformes para enfrentamento do tema. O objetivo da presente cartilha é, portanto, fornecer um instrumental prático, a título de orientação, sem caráter vinculante[10].

Nessa direção, a cartilha traz (a) quadros-resumos das fases do tratamento do superendividamento, (b) um “passo a passo” do atendimento aos consumidores nos núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos do superendividamento, (c) modelos de convênios e termos de cooperação, (d) sugestão de portaria-modelo para os Procons, (e) modelo de termo de audiências de conciliação e (f) uma lista de perguntas e respostas sobre o superendividamento.

São medidas que, conquanto simples, contribuem para afastar preconceitos e atrair atenção da sociedade para a necessidade de enfrentar abertamente a questão do superendividamento no país. Embora muitas pessoas compreendam a necessidade de oferecer instrumentos jurídicos para a recuperação econômica de empresas em dificuldade financeira — como se vê no instituto da recuperação judicial de empresas já disciplinado entre nós desde 2005 (Lei 11.101) —, não raro enxergam como oportunismo ou mera malandragem a situação do devedor individual que não consegue pagar suas dívidas, presumindo sua má-fé. Salvam-se empresas do declínio econômico ao argumento de que é preciso preservar os postos de trabalho, mas, quando é o próprio trabalhador que se vê em dificuldade, a lei brasileira não oferecia igual remédio.

A Lei do Superendividamento veio preencher esta odiosa lacuna, mas é preciso atenção permanente para que o propósito da lei não acabe frustrado por outras normas e, especialmente, por uma demonização do devedor endividado. Em tempos de eleição, não é demais lembrar que precisamos enfrentar os problemas reais do Brasil, sem combater inimigos imaginários.

Fonte: Jota

Veja aqui os livros do autor!


LEIA TAMBÉM


NOTAS

[1] “Endividamento cresce e atinge 79% das famílias; número de inadimplentes bate recorde, aponta CNC” (g1.globo.com, 5.9.2022). Extrai-se da reportagem, ainda, a seguinte declaração da economista responsável pela pesquisa, Izis Ferreira: “A alta do volume de famílias com contas atrasadas deu-se nas duas faixas de renda pesquisadas, mas foi maior entre as famílias de menor renda. Isso mostra os desafios que esses consumidores seguem enfrentando na gestão mensal de seus orçamentos.”

[2] “Famílias se endividam” (estadao.com.br, 12.9.2022).

[3] Informação do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), mencionada na reportagem do Valor intitulada “Mendonça levará ao plenário do STF análise sobre mínimo existencial de R$ 303 para superendividados” (valor.globo.com, 6.9.2022).

[4] “Art. 4º Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo. Parágrafo único.  Excluem-se ainda da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial: I – as parcelas das dívidas: a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário; b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; d) decorrentes de operações de crédito rural; e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES; f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no Capítulo V do Título III da Lei nº 8.078, de 1990; g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor; h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e i) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos; II – os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e III – os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas.”

[5] Daniel Bucar, Superendividamento, Ed. Saraiva, 2017, pp. 115-116.

[6] A título de exemplo, confira-se o artigo de Maria Inês Dolci, “No país do superendividamento, encolheram o mínimo existencial”, (folha.uol.com.br, 6.9.2022).

[7] Posteriormente alterada pelas Portarias 125, de 7 de abril de 2022, e 219, de 23 de junho de 2022.

[8] Esclareço ao leitor que, nos termos da Portaria CNJ 55/2022, sou um dos membros convidado a integrar o referido grupo de trabalho.

[9] A íntegra da Cartilha encontra-se disponível no sítio eletrônico do CNJ: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendivdamento.pdf.

[10] Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento do Consumidor, p. 8.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA