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Crise da COP30: há limite para preços no direito brasileiro?

Anderson Schreiber
27/08/2025
O Brasil sediará, entre os dias 10 e 21 de novembro, a COP30, célebre conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas. A cidade escolhida foi Belém do Pará, conhecida por seus marcos históricos e belezas naturais. Considerada a “porta de entrada da floresta amazônica”, Belém talvez represente, como poucas capitais brasileiras, a importância de lutar pelo equilíbrio climático e ambiental.
Todavia, a honra e o prestígio de sediar um evento tão importante converteram-se em embaraço no último dia 31 de julho, quando o presidente da COP, André Corrêa do Lago, revelou que delegações de diversos países haviam solicitado a alteração da sede do evento em virtude dos preços “completamente abusivos” cobrados pelos hotéis da cidade.[1]
Preços abusivos na COP 30 para hospedagem em Belém
Na última semana, diferentes veículos de imprensa confirmaram a cobrança de preços bastante elevados por hotéis e pousadas de Belém. Jornalistas informaram, por exemplo, que um hotel chegou a alterar seu nome de Hotel Nota 10 para Hotel COP30 e estaria cobrando diárias de, aproximadamente, R$ 5.600, quando, até abril de 2023, cobrava apenas R$ 70 por noite de hospedagem.[2]
Outra reportagem informou que diárias de hotéis três estrelas em Belém estão superando valores de hotéis de luxo em São Paulo, como Rosewood e Fasano, e até do icônico Copacabana Palace, no Rio de Janeiro.[3]
A preocupação dos governos federal e estadual é grande, pois os preços elevados podem acabar impedindo a participação das delegações dos chamados países em desenvolvimento, que são, usualmente, os maiores defensores de medidas protetoras do equilíbrio climático, já que os países desenvolvidos contribuem, em maior parcela, para a emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa.
Neste cenário, uma COP30 em que países em desenvolvimento restassem “barrados” pelos altos preços de hospedagem exprimiria verdadeiro contrassenso, gerando constrangimento internacional.
O setor hoteleiro do Pará defendeu-se das críticas divulgadas na imprensa, afirmando que as empresas do ramo “certamente estão aplicando uma lei antiga: oferta e procura”.[4] A Constituição da República protege, de fato, a livre iniciativa (art. 1º, IV), não havendo, em regra, no direito brasileiro tetos legais ao estabelecimento de preços ou às margens de lucro que podem ser alcançadas no mercado, guiado que é apenas pelas “leis” econômicas da oferta e da demanda.
Devemos nos perguntar, porém, se à luz do nosso ordenamento jurídico não existe nenhuma espécie de limite à liberdade geral de fixação de preços especialmente em relação a bens e serviços que se afiguram essenciais à realização de interesses coletivos.
Nesse sentido, é importante examinar, em primeiro lugar, o Código de Defesa do Consumidor. O artigo 39, X considera prática abusiva a elevação “sem justa causa [do] preço de produtos ou serviços”.[5] Neste cenário, embora o Brasil seja um país capitalista, é possível encontrar precedentes judiciais que se insurgiram contra uma elevação desarrazoada de preços praticados perante o consumidor.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso, por exemplo, considerou abusivo o preço de combustível praticado por um posto de gasolina que chegou “a faturar 7,33% a mais por litro de gasolina comum” que seus concorrentes.[6] Por outro lado, o Tribunal de Justiça de São Paulo não vislumbrou prática abusiva na elevação do preço de produtos durante a pandemia de Covid-19, revertendo multa que havia sido aplicada ao estabelecimento pelo Procon.[7]
A Legislação Brasileira sobre Práticas Abusivas de Preço
Vale lembrar que o Código de Defesa do Consumidor também proíbe ao fornecedor de produtos ou serviços “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva” (art. 39, V). Tal dispositivo legal já foi invocado pelo Superior Tribunal de Justiça para condenar em indenização por danos morais uma instituição financeira que, ao renegociar empréstimo concedido por uma concorrente, acabou obtendo um aumento exponencial do débito suportado pelo mutuário.[8]
O Código Civil também traz normas contra o desequilíbrio excessivo entre as prestações contratadas pelas partes, especialmente em caso de premente necessidade ou inexperiência de um dos contratantes. É o caso da lesão, disciplinada no artigo 157 da codificação civil.[9] Originária do direito romano (laesio enormis), a lesão foi incorporada entre nós como defeito do negócio jurídico, capaz de conduzir à anulabilidade da avença, independentemente de qualquer intenção de aproveitamento por parte de quem se beneficia do desequilíbrio.
Não é, todavia, incomum que, em meio a tragédias, pululem, em paralelo aos esforços valorosos de solidariedade, exemplos de exploração da necessidade alheia, como a venda de água e alimentos por preço extorsivo em meio a chuvas torrenciais em São Sebastião, litoral de São Paulo.[10]
Este tipo de atitude pode ter consequências que transcendem a esfera cível. Em 2024, o Ministério Público do Rio Grande do Sul obteve a prisão de duas pessoas e autuou 65 empresas pela cobrança de preço abusivo por água durante as chuvas e enchentes que afetaram o território gaúcho.[11] E já há notícias de que o Ministério Público do Pará pretende integrar uma força-tarefa voltada a verificar se há cobrança abusiva de preços no caso da COP30.[12]
É evidente que a situação da COP30 se afigura inteiramente distinta de uma calamidade pública. A elevação dos preços, segundo o setor hoteleiro, deve-se à realização de um evento de grande porte, o que sempre é anunciado pelos governos justamente como uma oportunidade de fomento ao comércio local. Neste sentido, a elevação dos preços não seria um fenômeno inédito, como se vê do Círio de Nazaré, celebrado em todos os anos desde 1793 e que atrai, atualmente, cerca de 2 milhões de pessoas.
Ocorre que, diversamente de uma celebração religiosa, a COP30 é também um evento de interesse público estratégico. O debate sobre o clima não se mostra apenas relevante para o Brasil, país que possui a maior floresta tropical do mundo, mas também para todos os países cujas riquezas naturais vêm sendo afetadas por práticas industriais desatentas ao aquecimento global e outros fenômenos. Privar as delegações destes países de comparecimento à COP30 por força de preços elevados não deixa de ser, neste sentido, contrário ao interesse nacional.
A alusão simplista à proporção entre oferta e procura não parece suficiente para justificar a cobrança de preços que correspondem a múltiplos exorbitantes dos preços cobrados ordinariamente dos consumidores, especialmente se os insumos para a prestação destes serviços não tiverem se elevado.
Trata-se de um tema que merece aprofundamento em um momento em que o uso de IA para a medição de buscas por produtos e serviços já produz repercussão imediata nos preços ofertadas, como se vê com frequência cada vez maior na compra de passagens aéreas para grandes eventos.
Impactos da Elevação de Preços na Participação de Países em Desenvolvimento
Neste novo cenário, a tutela do consumidor talvez esteja exigindo instrumentos mais eficientes para evitar a elevação abusiva de preços, vedada pelo artigo 39 do CDC. A COP30 não pode, contudo, esperar. O melhor seria que os governos federal, estadual e municipal unissem esforços para obter junto ao setor privado a redução das diárias ou oferecer alternativas para hospedar as delegações estrangeiras dos países em desenvolvimento, bem como os próprios especialistas brasileiros que não residam em Belém.
Qualquer resultado distinto periga transmitir uma imagem indesejável do Brasil em um momento em que assumir algum protagonismo no debate climático se afigura mais importante do que nunca para o país.
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NOTAS
[1] “Hotéis criaram uma crise e países querem COP30 fora de Belém, diz presidente da conferência” (Folha de S. Paulo, 31.7.2025).
[2] “Hospedagem de Belém muda nome de ‘Nota 10’ para ‘Hotel COP30’ e passa a cobrar 80 vezes mais na diária para conferência” (O Globo, 2.8.2025).
[3] “Crise da hospedagem na COP30 faz diárias ‘três estrelas’ em Belém superarem hotéis de luxo em SP e RJ; compare preços” (O Globo, 5.8.2025).
[4] “Hotéis se recusam a explicar preços exagerados para COP30” (Folha de S. Paulo, 5.8.2025).
[5] Art. 39, X do CDC: “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.”
[6] TJMT, 2ª Câmara de Direito Público e Coletivo, Apelação 0034285-98.2008.8.11.0041, Rel. Des. Gilberto Lopes Bussiki, j. 22.4.2024.
[7] TJSP, 3ª Câmara de Direito Público, Apelação / Remessa Necessária 1016087 91.2022.8.26.0309, Rel. Des. Paulo Cícero Augusto Pereira, j. 23.8.2023, em que se concluiu que a “elevação do preço de venda de produtos” aconteceu “devido ao aumento do custo do produto”, tendo sido constatada “justa causa para elevação, nas específicas circunstâncias, dos preços dos produtos revendidos em período de instabilidade no contexto da pandemia.”
[8] STJ, 3a Turma, REsp n. 2.159.883/MG, Rel. para acórdão Min. Moura Ribeiro, j. 5.11.2024: “Não obstante seja possível o decote das abusividades constatadas no negócio jurídico, sem a sua extinção, forçoso reconhecer que o caso concreto traz peculiaridades próprias e excepcionais aptas a ensejar a condenação por danos morais. Isso porque não pode passar despercebido por esta Corte Superior o descomedido desiquilíbrio contratual, que colocou o consumidor em desvantagem exagerada.”
[9] Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
[10] “Exploração na tragédia das chuvas em SP: bancária escapou da morte e ficou 24h sem comer e beber até pagar R$ 144 por água e dois biscoitos” (O Globo, 24.2.2023).
[11] “MP autua 65 empresas por preço abusivo no RS: água a R$ 80” (O Tempo, 18.5.2024).
[12] “Força-tarefa vai fiscalizar preços abusivos de hotéis para COP, diz MP” (ECOA Uol, 5.8.2025).