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Como conter as dark patterns?

Ana Frazão

Ana Frazão

24/06/2024

Já tive a oportunidade da falar sobre as dark patterns ou deceptive patterns[1], práticas que podem ser consideradas, de forma simplificada, como nudges do mal, sludges ou aspectos da arquitetura do mundo virtual que são construídos e utilizados para impedir uma decisão racional e informada por parte do consumidor e, em casos extremos, até mesmo para impedir a execução de uma decisão ou manipular o processo decisório das pessoas.

Apesar das diferenças, as diversas práticas que podem ser consideradas como deceptive patterns acabam instrumentalizando o que Akerlof e Shiller[2] descrevem como a economia da manipulação e do engodo, em que as decisões de consumo decorrem cada vez mais de estratégias ilícitas e abusivas das empresas.

Como normalmente acontece em problemas decorrentes das novas tecnologias, é comum que se pense que a solução depende de novas regulações. Entretanto, não é esse o caso de inúmeras deceptive patterns, que podem ser facilmente encaixadas em uma série de vedações da legislação brasileira.

Para dimensionar o problema e as suas soluções, é preciso compreender que existem diversos tipos de deceptive patterns, cada uma delas com solução regulatória distinta. Em outras palavras, como tais práticas não correspondem a um conjunto homogêneo, é importante entender seus principais tipos.

Classificações de deceptive patterns

Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, gostaria de apresentar aqui algumas classificações de deceptive patterns[3], a fim de demonstrar que, conforme o tipo, há número considerável de soluções jurídicas já disponíveis.

Adverte-se apenas que (i) as categorias a serem expostas não são estanques, apresentando diversas áreas de sobreposição e (ii) muitas delas são feitas de maneira personalizada, com base nos dados pessoais dos consumidores, o que atrai necessariamente a incidência da LGPD.

O primeiro tipo de deceptive pattern é o que eu chamaria de armadilhas ostensivas de arquitetura e design de plataformas ou meios virtuais, como acontece nos casos de:

  1. obstrução (obstruction);
  2. ação forçada (forced action);
  3. contratação indesejada de serviços;
  4. imposição de dificuldades ou distrações para que o usuário realize o que deseja (nagging); ou mesmo
  5. criação de barreiras para o cancelamento de serviços (hard to cancel).

Em tais situações, não há interferências no processo decisório do consumidor em si, mas se busca impedir ou dificultar a execução do que ele deseja. Como resultado prático, ou o consumidor não consegue o que quer – cancelar um serviço, por exemplo – ou acaba fazendo o que não quer – contratar um serviço indesejado, por exemplo.

Trata-se de práticas enganosas, que não apenas aniquilam a autodeterminação dos consumidores, como implicam violações a diversos direitos básicos do consumidor, como a liberdade e escolha e igualdade nas contratações (CDC, art. 6º, II) e a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais (CDC, art. 6º, IV).

Além disso, tais práticas subsumem-se a vários tipos de condutas vedadas, como a de se aproveitar da fraqueza ou ignorância do consumidor para impingir-lhe produtos ou serviços (CDC, art. 39, IV) ou exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva (CDC, art. 39, V).

Dessa maneira, é inequívoco que esse tipo de deceptive pattern já pode ser adequadamente coibido no Brasil com a mera utilização do Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da utilização cumulativa de outras legislações, como a LGPD, em caso de utilização indevida de dados pessoais, ou da legislação antitruste, caso se tratar de agente com posição dominante.

Um segundo grupo de deceptive patterns diz respeito a ações que procuram interferir no processo decisório dos consumidores, explorando indevidamente as suas limitações de racionalidade não a partir de informações falsas, mas sim com base em recursos ou expedientes que impedem uma decisão racional por parte dos consumidores.

Nesse segundo grupo poderiam entrar estratégias como:

  1. preselection: a opção apresentada ao usuário (a opção default) é previamente selecionada de forma favorável aos interesses da empresa mas contrariamente aos interesses do consumidor;
  2. confirmshaming: a manipulação emocional do consumidor, de forma que ele se sinta envergonhado ou diminuído caso opte por alternativa diversa daquela que lhe é apresentada pelo ofertante do produto ou serviço;
  3. visual interference: utilização do design para que o consumidor não encontre as informações que ele deseja; e
  4. comparison prevention: criação de dificuldades para que o consumidor faça as comparações necessárias para avaliar um produto ou serviço, tal como ocorre quando as características e os preços dos produtos são combinados de forma complexa.

Apesar de distintas do primeiro grupo, as mesmas regras do CDC invocadas para este último também se aplicam aqui, uma vez que todas essas estratégias procuram se aproveitar das fraquezas e vulnerabilidades do consumidor, dificultando, de forma abusiva, a tomada de decisão racional e que leve em consideração os interesses do usuário.

Além disso, a depender do grau de exploração da ignorância do consumidor, poder-se-á cogitar igualmente de lesão, que é causa de anulação do negócio jurídico, assim como se deverá aplicar a LGPD ou a legislação antitruste, conforme o caso.

Em um terceiro grupo de deceptive patterns poderíamos incluir as estratégias que se baseiam em informações falsas ou parciais, que buscam igualmente interferir na tomada de decisão pelo consumidor a partir de falsas representações da realidade.

Dentre elas, podem ser citadas as práticas de:

  1. disguised ads: publicidade disfarçada;
  2. fake scarcity: pressão do usuário com base em falsa indicação de limitação de oferta;
  3. fake social proof: indução em erro do consumidor quanto à popularidade ou credibilidade do produto ou serviço a partir de reviews falsos;
  4. fake urgency: pressão do usuário com base em falsa limitação de tempo;
  5. hidden costs: convencimento do usuário com base em um preço que não reflete o custo total, no qual normalmente são embutidas inesperadas taxas ou cobranças adicionais;
  6. sneaking: o usuário é levado a contratar com base em falsas premissas, pois a informação pertinente é escondida ou apenas é apresentada em atraso; e
  7. trick wording: o usuário é levado a tomar uma ação em razão da apresentação de uma linguagem confusa ou enganosa.

Todas essas práticas, além de atraírem a incidência das normas do CDC que já foram mencionadas, também estão sujeitas aos dispositivos específicos sobre dever de informar e sobre a vedação da publicidade abusiva ou enganosa.

Acresce que situações como essas podem ser descritas igualmente como atentatórias à boa-fé objetiva, notadamente no que diz respeito ao dever de informar e, quando levam o consumidor a contratar com base em falsa representação da realidade, configuram dolo, defeito do negócio jurídico apto a ocasionar a sua anulação.

Por fim, ainda merecem ser mencionadas as deceptive patterns manipulatórias, desenhadas para não serem perceptíveis, com a finalidade de subverter o processo decisório, por diversas técnicas que vão do vício psicológico até a manipulação digital.

Nesse último caso, para além das regras do Código Civil e do CDC, a aplicação da LGPD é ainda mais imperiosa, já que tais técnicas são usualmente implementadas a partir da coleta indevida de dados pessoais dos consumidores e da exploração das suas vulnerabilidades. Daí por que o tema igualmente se conecta às discussões sobre neurocapitalismo e negócio de dados cerebrais[4], como também ao direito ao livre arbítrio e à autodeterminação[5].

Também nesse último caso, é inequívoco que a LGPD, especialmente quando conectada às regras específicas do CDC, já confere proteção aos usuários, na medida em que assegura a autodeterminação e o livre desenvolvimento da personalidade.

O que se observa desses diversos exemplos é que, apesar da complexidade de vários dos casos de deceptive patterns, o ordenamento jurídico brasileiro já conta com instrumental diversificado e apropriado para conter as suas principais apresentações.

Assim, o que parece estar faltando não é propriamente legislação ou regulação nova, mas sim uma atuação consistente de autoridades – como órgãos de defesa do consumidor e ANPD –, organizações da sociedade civil e mesmo de consumidores para combater tais práticas nefastas.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns-12072023?non-beta=1

[2] AKERLOF, George; SHILLER, Robert. Phishing for Phools. The economics of manipulation and deception. New Jersey: Princeton University Press, 2015.

[3] Embora a classificação de grupos de dark ou deceptive patterns seja proposta de forma original pela autora, levou em consideração os tipos de deceptive pattners que foram mapeados no website https://www.deceptive.design/ , mais precisamente na parte específica destinada aos tipos: https://www.deceptive.design/types. Vale ressaltar que há diversas outras classificações de tipos de dark ou deceptive patterns, sendo que uma delas foi abordada em coluna anterior: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns-12072023?non-beta=1

[4]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/neurocapitalismo-e-o-negocio-de-dados-cerebrais-25092019?non-beta=1

[5] FRAZÃO, Ana. Direito ao livre pensamento na era digital: a necessária proteção das pessoas contra as múltiplas e variadas estratégias de manipulação. In: MENEZES, Joyceane; BARBOSA, Fernanda. A Prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional, Editora Foco, 2024.

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