GENJURÍDICO
terras devolutas

32

Ínicio

>

Clássicos Forense

>

Constitucional

>

Revista Forense

CLÁSSICOS FORENSE

CONSTITUCIONAL

REVISTA FORENSE

Terras devolutas de fronteira – domínio da união e dos estados – servidão de direito público

REVISTA FORENSE 159

Revista Forense

Revista Forense

08/11/2023

– Uma concessão de terras públicas para fins de povoamento, ou colonização, ainda que revestindo a forma de contrato de direito civil, conserva o caráter público de tais outorgas.

– As terras devolutas não são bens que os Estados possuam por aquisição privada; são porções de seu território que outrora pertenciam à Nação e lhes foram adjudicadas por fôrça do artigo 64 da Constituição de 1891; é um domínio que independe de título e que se define por exclusão do que estiver no patrimônio particular, por título legítimo.

– As terras de fronteira, na zona ou faixa reservada à União, a esta pertencem não a título de propriedade, mas como bens do seu domínio público afetado a um uso especial que é a defesa militar da fronteira, e na medida do necessário a essa defesa; mas as áreas remanescentes, que não estiverem no domínio particular por título legítimo de aquisição, pertencem ao Estado, que delas poderá dispor, como terras devolutas, ainda que na dependência do assentimento do Conselho de Segurança Nacional.

– Interpretação do art. 180 da Constituição.

PARECER

A concessão das terras devolutas, para fins de colonização, teria de ser feita, e o foi, em pequenos lotes, de 5 a 25 hectares, nos têrmos da lei estadual nº 1.642, de 5 de abril de 1916, a colonos individualmente considerados, os quais, todavia, se juntaram formando uma sociedade, configurando-se assim uma concessão global, e maior, que, de transferência em transferência, passou à Companhia Paranaense de Colonização “Espéria”, S. A., quando, anos depois, o govêrno do Estado, por ato do interventor, aos 17 de julho de 1934 (dec. nº 1.678), baseado em parecer do Conselho Consultivo, declarou caducas aquelas concessões, enfeixadas, já então, nas mãos da “Espéria”, de vez que não cumpridas várias estipulações concernentes ao fim visado, isto é, ao aproveitamento e colonização das terras concedidas, fazendo-as reverter ao domínio do Estado, conforme o expresso na cláusula legal dos ns. 4 e 5 do art. 2° daquela lei, em virtude dos quais as áreas concedidas teriam de ser colonizadas dentro do prazo de oito anos, com a cominação expressa em o nº 5: “Findo o prazo de oito anos de que trata o artigo anterior, a “parte não colonizada voltará ao domínio do Estado, sem ônus algum para o mesmo”. A êsse ato do interventor nada opôs a “Espéria”, dêle não recorrendo nem contra êle requerendo qualquer medida judicial.

Mais tarde, Carlos Ferreira ingressou em juízo, numa das varas cíveis de Curitiba, como credor da “Espéria”, propondo contra esta uma ação cominatória, com base num instrumento de confissão de dívida e pacto de melhor comprador, de referência às terras da concessão estadual, ação que se processou à revelia da devedora, e para a qual não foi citado o Estado do Paraná, sendo afinal julgada procedente e adjudicadas ao autor as ditas terras. Da sentença não apelou a ré revel, passando em julgado a sentença, transcrita no registro competente.

Em conseqüência da recuperação do seu domínio sôbre as áreas colonizadas, por efeito do decreto interventorial de 1934, o govêrno do Paraná, autorizado pelo dec.-lei nº 646, de 19 de junho de 1947, pela lei nº 125, de 30 de outubro de 1948, e pela resolução nº 16, de 17 de agôsto de 1950, do Senado Federal (visto tratar-se de concessão de terras devolutas, nos têrmos do art. 156, § 2°, da Constituição federal), instituiu a Fundação Paranaense de Colonização e Imigração, concedendo-lhe parte das terras recuperadas e outras que, posteriormente, foram adjudicadas a êsse ente suo-rogado nas atribuições do Estado de promover a imigração e colonização das terras devolutas do seu domínio sendo transcritos no Registro de imóveis tais atos alienativos.

A Fundação, interessada em remover a sentença adjudicatória, propôs a competente ação rescisória, estando também pendente de solução ação do Estado para cancelar as transcrições indevidamente feitas. E trouxe ao meu exame a consulta diante formulada por seu ilustre advogado, Dr. Edgar Linhares Filho, consulta que passo a responder, quesito por quesito na ordem de sua formulação:

I – 1º) “Não cumpridas as condições estabelecidas nas leis ns. 1.642, de 5 de abril de 1916, e 2.548, de 30 de março de 1928, e nos contratos para fins exclusivos de colonização de 4 de fevereiro e 30 de abril de 1920, tendo em vista os interêsses coletivos, podia o interventor federal no Estado do Paraná baixar o decreto nº 1.678, de 17 de julho de 1934, na forma por que o fêz?

2º) “Nas condições em que foi celebrado o documento sob nº 7, o domínio da Companhia Paranaense de Colonização “Espéria”, S. A. sôbre as aludidas terras era pleno ou era limitado, resolúvel (Cód. Civil, art. 525)?

“Expirado o prazo impôsto por lei e por dispositivo contratual, as terras não colonizadas reverteram automàticamente ao domínio e possa do Estado, na conformidade do princípio estabelecido no artigo 647 do Cód. Civil e das determinações constantes das leis ns. 1.642, de 5 de abril de 1916, e 2.548, de 30 de marco de 1928?”

– Uma concessão de terras públicas para fins de povoamento ou colonização, ainda que revestindo a forma de contrato de direito civil, conserva o caráter público de tais outorgas. Não perde essa característica pelo fato de tratar-se de uma compra e venda, de uma doação, de um arrendamento, etc. São formas contratuais de que lança mão o Estado para realizar fins públicos no destino ou utilização do seu patrimônio.

O regime legal do aproveitamento de tais bens e, em particular, das terras públicas, que não devem permanecer indefinidamente inaproveitadas ou devolutas, diz com a Ciência da Administração e inspira-se em princípios de direito público, pelo que, acrescenta BIELSA, a interpretação das regras legais deve obedecer a um critério jurídico-político (“Derecho Administrativo”, 4ª ed., I – “Regimen jurídico de los contratos sobre tierras fiscales”, págs. 540-541).

Terras devolutas são terras despovoadas ou inaproveitadas para o uso a que naturalmente se destinam (agricultura, pastoreio); são bens que outrora, ao tempo do Império, pertenciam à Nação e passaram para o domínio patrimonial dos Estados, por fôrça do art. 64 da primeira Constituição republicana. O interêsse do Estado – interêsse público – é povoá-las, colonizá-las, fazê-las produzir, e daí as concessões com êsse objetivo, que domina tais operações – realizadas, observa GABINO FRAGA, no interêsse comum do particular beneficiado e do Estado interessado em povoar o território desocupado e improdutivo. É, pois, um direito de propriedade (o do particular) vinculado a fins de interêsse público ou geral.

GABINO FRAGA é, dentre os expositores do Direito Administrativo, o que melhor e mais desenvolvida mente expõe a matéria, partindo das origens do domínio colonial no seu país (México) a tantos respeitos semelhante ao nosso nas inspirações idênticas a que obedeceram lá, como aqui, as concessões de terras para fins de colonização.

Distingue êle as duas modalidades da concessão, isto é, a concessão pròpriamente dita, conhecida do Direito Administrativo, e definida como execução de um serviço destacado da órbita estatal ou como exploração de dada atividade industrial erigida em serviço público pela lei, exploração que supõe a instalação do serviço com os meios materiais adequados, ou seja, a obra pública (usina elétrica, gasômetros, trilhos e aparelhamento ferroviário, ou tranviário, cabos de transmissão de energia, telefones, rêde de abastecimento de água, esgotos, etc.), com (ou sem) a utilização do domínio público (ruas, subsolo, espaço aéreo), a concessão de minas, águas (no interêsse da agricultura) e terras públicas, um pouco diversa, é certo, mas conservando, como a outra, a característica do interêsse público dominante.

O traço essencial da distinção entre as duas modalidades está em que, nas concessões de serviço público, a remuneração do concessionário é feita pelos usuários do serviço uti singuli, mediante taxas, que correspondem à prestação individual da utilidade; ao passo que na concessão de u’a mina, inexiste êsse elemento, porque a exploração da mina ou jazida proporciona ao concessionário o lucro da venda dos produtos extraídos, refugindo àquele tipo-padrão, que tem na remuneração tarifada e na prestação uti singuli o seu principal elemento de diferenciação.

As concessões de minas, que o autor não inclui entre as concessões do tipo-padrão, bem como as de águas para fins outros que não os da indústria hidrelétrica, são de uma categoria à parte, como, por igual, as concessões de terras para o fim público de colonização, porque lhes falta o terceiro elemento, usuário (concedente – concessionário – utentes do serviço), pressuposto no plano contratual da concessão. Já então (nas concessões de minas ou de terras, em que a remuneração do concessionário consiste nos frutos da exploração), a prestação pública objetivada se entende uti universi, dado o interêsse público que, em benefício de todos os habitantes, redunda da utilização, cultivo e exploração do solo e do subsolo.

O interêsse público da atividade contratada pelo Estado está, pois, presente em tais contratos. Eis a lição de GABINO FRAGA: “El servicio público realizado por un concesionario y la explotación de bienes del Estado mediante concesión, implican, como antes se ha dicho, la concurrencia de un interés general y de un interés particular del concesionario; pero mientras que en el primero el particular se obliga a prestaciones frente al público, que por su carácter remuneratorio compensan las inversiones de capital privado, en el segundo caso falta la prestación en favor del público, limitándose el concesionario a aprovecharse de los produtos de la explotación”.

E acrescenta, páginas adiante, o autorizado expositor: “Un examen etenido del sistema de concesiones que estudiamos nos demuestra, en primer término, que el derecho que otorgan no está establecido en interés exclusivo del concesionario y en segundo lugar, como consecuencia de lo anterior, que el aprovechamiento otorgado al concesionario tiene al mismo tiempo el carácter de derecho y de obligación” (“Derecho Administrativo”, 1948, págs. 380-381 e 481-482).

Na outorga da concessão de terras de que se trata, deu entrada a cláusula legal (lei nº 1.642, de 1916) em virtude da qual reverteriam ao domínio do Estado as terras que, dentro do prazo de oito anos, não estivessem colonizadas. Verificou-se a inobservância dessa cláusula (além de outras constantes da motivação do decreto interventorial de 1934, declarando a caducidade da concessão), e, pois, a condição resolutiva que nela se expressava, com os efeitos previstos no Cód. Civil, dispensada a prévia rescisão judicial, nos têrmos dos arts. 119 e 647. “A realização da condição (resolutiva expressa) produz a revogação automática do contrato”. Em se tratando de contratos administrativos, é um caso típico de caducidade (CUNHA GONÇALVES, “Tratado de Direito Civil”, vol. IV, pág. 413; GABINO FRAGA, ob. cit., pág. 461).

Di-lo BIELSA, focalizando precisamente a hipótese de concessões de terras em face da legislação argentina: “La atribución de la tierra, en propiedad o arrendamiento, lleva como condición, respecto del adquirente o arrendatario – en los plazos que fije el Poder ejecutivo -, el poblarla con haciendas y construcciones cuyo valor no sea menor de 500 pesos moneda nacional por legua kilométrica. Esta obligación importa, como se ve, una verdadera condición resolutoria respecto del contrato de compraventa o locación, pues su incumplimiento faculta al Estado para declarar la caducidad de la concesión o locación”, etc. (ob. cit., vol. I, pág. 542).

Respondo, assim, afirmativamente aos dois quesitos acima.

Legitimidade das terras devolutas

II – 3°) “São legítimas as terras havidas pela Fundação Paranaense de Colonização e Imigração mediante a doação constante do doc. sob nº 14, transcrita no Registro Geral de Imóveis de “Foz do Iguaçu?”

– A resposta se contém na solução afirmativa das duas perguntas anteriores. Se o Estado do Paraná podia declarar a caducidade das concessões descumpridas e, não obstante, fronteiriças, podia dispor das terras devolutas revertidas ao seu patrimônio por efeito da caducidade, é claro que a adjudicação de tais terras para formação do patrimônio da Fundação instituída para lhes promover o povoamento e colonização foi um ato conseqüente à livre disponibilidade dos bens revertidos ao seu domínio, isento, pois, de censura o ato de alienação autorizado, nos têrmos do art, 156, § 2°, da Constituição, pelo Senado Federal.

III – 4°) “O Estado tem necessidade de transcrever os títulos de propriedade sôbre terras devolutas para poder transferi-las?”

– Não. Resolvida a concessão, o Estado do Paraná voltou à sua condição de titular do domínio sôbre as terras devolutas.

As terras devolutas não são bens que êle possua por aquisição privada; são partes ou porções do seu território, que outrora pertenciam à Nação e foram acjudicadas aos Estados com assento no artigo 64 da primeira Constituição republicana. É um domínio que independe de título, e que se define por exclusão do que estiver no patrimônio particular, por título legítimo (ARTURO BAS, “Derecho Federal Argentino”, vol. II, pág. 30; TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI, “Tratado de Direito Administrativo”, vol. 5°, pág. 56). Se independe de título o domínio patrimonial do Estado sôbre as terras públicas, não há que cogitar de transcrição.

IV – 5°) “Precisa ser promovido o cancelamento das transcrições das alienações feitas por Méier, Annes & Cia. Ltda. à Cia. Industrial, Agrícola, e Pastoril d’Oeste de São Paulo S. A. e desta vara a Companhia Paranaense de Colonização “Espéria”, S. A.?

“Nos têrmos do art. 3º do citado decreto nº 1.678, de 17 de julho de 1934, e não obstante a doação a que se refere o doc. sob nº 8, o Estado do Paraná é parte legitima, tem interêsse moral e econômico para promover tal cancelamento?”

– O cancelamento da transcrição ou transcrições conseqüentes às antigas concessões é uma decorrência da caducidade decretada e da recuperação, pelo Estado, do seu domínio.

O art. 860 do Cód. Civil dispõe que:

“Se o teor do registro de imóveis não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar que se retifique”.

É óbvio o legítimo interêsse do Estado do Paraná em promover a anulação do registro, até pela obrigação, que lhe incumbe, de tornar boa, firme e valiosa a adjudicação feita à Fundação; deverá, porém, fazê-lo por ação (e não simples requerimento de retificação dirigido ao oficial do registro, como parece indicar o texto).

Com base na sentença anulatória é que se fará a retificação, scilicet cancelamento da transcrição. O vício que a inquina é o fato superveniente da recuperação, pelo Estado, do domínio alienado, desaparecendo, assim, o título transcrito, do que decorre a impossibilidade jurídica de manter a transcrição (veja-se CLÓVIS, “Comentários”, vol. 3°, art. 860; FILADELFO AZEVEDO, “Registros Públicos”, nº 190).

V – 6º) “Tendo-se em consideração que o dec. nº 1.678, que anulou a concessão em favor da Companhia Paranaense de Colonização “Espéria”, S. A., é de 17 de julho de 1934 e que o prazo da concessão era de oito anos, começando em 12 de setembro de 1930 e terminando em 12 de setembro de 1938, consumou-se contra a referida Companhia “Espéria” a prescrição prevista no dec. federal nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932?”

– Sim. O lapso prescricional de cinco anos começou a correr da publicação do ato interventorial de 17 de julho de 1934, expirando na data correspondente de julho de 1939. Se a interessada não interrompeu a prescrição, é claro que esta se consumou precludindo o direito que lhe assistiria de impugnar em juízo a validade daquele ato. Prescrito o direito de acionar o Estado, não poderá ser recebida a argüição de nulidade do ato administrativo em ação que contra o Estado promova a interessada para cancelar a transcrição do título de adjudicação das barras à Fundação; porque importaria em admitir, por via oblíqua, a relevação da prescrição já consumada, ou seja, em admitir-se que, após o decurso de cinco anos, possa o prejudicado ingressar em juízo postulando a nulidade do ato administrativo.

A prescrição consumada indica que a prejudicada se conformou com a caducidade de sua concessão e conseqüente recuperação pelo Estado do seu domínio, do qual poderia êle dispor, alienando-o; daí decorrendo que à antiga concessionária desassiste até interêsse legítimo para impugnar as alienações ulteriores, que são efeitos daquele ato.

É válida a doação que o Estado do Paraná fêz em favor da Fundação Paranaense de Colonização e Imigração?

VI – 7º) “Não tendo sido regulamentados até hoje os arts. 34, II, e 180, § 1°, da Constituição federal, na ausência de especificação das zonas indispensáveis à defesa nacional, é válida a doação que o Estado do Paraná fêz em favor da Fundação Paranaense de Colonização e Imigração, tendo-se em vista que a gleba em questão está situada na fronteira com a República do Paraguai?”

– A Constituição de 1891, passando para os Estados as terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, reservou à união “sòmente a porção de território que fôr indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”.

Suscitou-se a questão de saber se, em face dêsse texto, subsistiria a legislação imperial, isto é, a lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, e o dec. nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que estabeleciam uma faixa fronteiriça de 10 léguas para dentro; e o entendimento que predominou, de acôrdo com os pareceres de SOLIDÔNIO LEITE, OROZIMBO NONATO e SÁ FILHO, quando consultores gerais da República e da Fazenda Pública, em contrário ao de RODRIGO OTÁVIO (“Domínio da União e dos Estados”, 2ª ed., págs. 92 e segs.), aliás sufragado, aquêle, pelo Supremo Tribunal, foi o da vigência da legislação imperial, ou seja, da faixa de 10 léguas, ou 66 quilômetros (TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI, “A Constituição Federal Comentada”, vol. 1°, págs. 435 e segs.).

Observa o Prof. SAN TIAGO DANTAS: “Não ficou pacificada, entretanto, a delicada controvérsia. Os Estados fronteiriços se atribuíram muitas vêzes a propriedade de terras devolutas localizadas a menos de 66 km da linha de fronteira, supondo que o direito da União só emergiria depois que o poder federal manifestasse in concretu o interêsse da segurança nacional em relação a cada imóvel ou conjunto de imóveis.

“Foi o que permitiu ao presidente EPITÁCIO PESSOA, em mensagem de 15 de julho de 1922 ao Congresso Nacional, falar da necessidade de uma lei que ponha fim ao condomínio ora existente entre a União e os Estados, nos territórios que separam o Brasil das outras Nações”.

“Condomínio aí significaria, não a comunhão da União e das Estados no mesmo direito de propriedade, mas a confusão material entre os objetos dos direitos de propriedade de uma e de outros, “naquela região” (“Problemas de Direito Positivo”, ed. “REVISTA FORENSE”, 1953, págs. 117-118).

A Constituição de 34 fixou, ela mesma, a largura da faixa de fronteira em 100 quilômetros, estabelecendo que nenhuma concessão de terras seria feita sem audiência do Conselho Superior de Segurança Nacional, além de outras estipulações constantes do seu art. 166; a de 37, igualmente – “dentro de uma faixa de 150 quilômetros ao longo das fronteiras, nenhuma concessão de terras…”

Na vigência do texto de 37 vários diplomas legais dispuseram acêrca do assunto, entre os quais os decs.-leis números 1.164, de 18 de março de 1939, 3.438, de 17 de julho de 1941, e 7.724, de 10 de julho de 1945.

No primeiro (dec.-lei nº 1.164), em que se dispôs peculiarmente sôbre concessões de terras na faixa de fronteira, fixada, nos têrmos da Constituição, em 150 quilômetros, estabeleceu-se uma subfaixa de 30 quilômetros, contados da linha da fronteira, para distribuição em lotes pelo Ministério da Agricultura. Os dois outros sujeitaram às normas sôbre aforamento de marinhas e de terrenos situados na “Fazenda Nacional de Santa Cruz” as terras devolutas existentes na faixa fronteiriça.

Foi êste o regime legal encontrado pela Constituição de 18 de setembro de 1946, que dispõe sôbre a matéria nos arts. 34 e 180 pela forma seguinte:

“Art. 34. Incluem-se entre os bens da União:

“………………………….

“II – a porção de torras devolutas indispensável à defesa das fronteiras, às fortificações, construções militares e estradas de ferro”.

“Art. 180. Nas zonas indispensáveis à defesa do país, não se permitirá, sem prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional:

I – qualquer ato referente à concessão de terras, abertura de vias de comunicação e instalação de meios de transmissão;

……………………………….

§ 1º A lei especificará as zonas indispensáveis à defesa nacional, regulará a sua utilização e assegurará nas indústrias nelas situadas predominância de capitais e trabalhadores brasileiros”.

Percebe-se, desde logo, que a Constituição de 46, encontrando fixada nas Constituições e leis anteriores, em 66, 100 e 150 quilômetros, a faixa territorial ao longo das fronteiras, e não adotando o mesmo critério, isto é, a prefixação de uma faixa territorial fronteiriça, determinando, ao invés disso, que ficaria ao critério da lei ordinária, aí prevista (art. 180, § 1°), especificar, vale dizer, determinar, fixar, estabelecer, as zonas indispensáveis à defesa nacional (nem sequer alude a faixa), criou direito novo, adotou um regime legal diferente, que tanto poderá ser o traçado de uma faixa de igual largura em tôda a extensão das nossas fronteiras com os países limítrofes, como poderá obedecer a outros critérios mais adequados ao objetivo que se tem em vista.

A êsse pensamento de deixar maiores larguezas ao legislador ordinário obedeceu a elaboração do atual texto constitucional, como se vê da discussão da matéria, em consonância com o seu enunciado.

O Anteprojeto, seguindo a orientação antiga, cogitava de uma “faixa de território indispensável à defasa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”.

O deputado MAGALHÃES BARATA (aliás oficial do Exército) propôs a modificação para suprimir a referência à faixa, e até mesmo às palavras zonas de fronteiras. E justificando a sua emenda, explicou “que não existem mais zonas de fronteiras compreendendo, pròpriamente, as militares, entre as nações, pelo menos no Brasil”. “Hoje”, acrescentou, “há zonas estratégicas que o Estado-Maior do Exército escolhe e estuda para teatro de operações, fortificações e outras medidas militares”. Propõe, assim, que aquelas zonas, “não compreendidas na conceituação de estratégicas, não sofram a restrição contida no inciso em questão”.

Na discussão do dispositivo que se converteu no atual art. 180, voltou o mesmo deputado ao assunto, esclarecendo que a sua emenda visava “facilitar a exploração das terras nas fronteiras”. E acrescentou: “A zona estratégica vai do Chuí ao Oiapoque e dentro da imensa faixa que contorna o Brasil, nem tôda ela é imprescindível à defesa nacional” – emenda que aprovada (JOSÉ DUARTE, “A Constituição Brasileira de 1946”, vols. I, página 583, e III, págs. 313 e 315).

LAFAYETTE, depois de definir o que se entende por fronteiras (“as extremidades do território nacional que confinam com território estrangeiro”), indaga: “dentro de que raio as extremidades constituem fronteiras? Ou antes, qual é a latitude da zona considerada fronteira?” E responde: “Não existe uma medida determinada e geralmente admitida. Costumam os Estados marcar, para fronteias, uma zona mais ou menos larga, segundo a configuração do terreno, a densidade da população e a natureza dos interêsses; acontecendo que, não raro, um só Estado possui ao mesmo tempo zonas diferentes em largura, como uma criminal, outra militar e, ainda, a aduaneira” (LAFAYETTE, “Princípios de Direito Internacional”, vol. 1°, parágrafo 87).

Informa FAUCHILLE que era de uso na antiguidade estabelecer uma faixa de cada lado da linha da fronteira, a ser conservada deserta e desabitada, como uma espécie de zona neutra entre os países limítrofes. Era por êsse modo que na antiguidade, como na Idade Média, os romanos se protegiam contra os germanos, os russos contra os tártaros, os austríacos contra os turcos, etc. Acrescenta a seguir: “Mais, au fur et à mesure que la civilisation se répandit et qu’on se rendit davantage compte de la valeur des territoires, ces zones-limites se rétrécirent peu à peu et finalement disparurent presqué complètement en se transformant en une simple ligne séparative entre les deux pays limitrophes”.

Já hoje, portanto, os territórios fronteiriços, ainda que suportando certas restrições decorrentes de sua contigüidade com a linha divisória, não têm mais o sentido de um tampão territorial, convindo antes que sejam aproveitados, cultivados, industrializados, habitados. Eis por que o que hoje se entende por fronteira é a linha divisória entre os países confinantes: “D’après le droit des gens moderne, la frontière ne consiste plus qu’en une ligne séparant le territoire d’um Etat des territoires des Etats limitrophes” (FAUCHILLE, “Traité de Droit International Public”, vol. 1, págs. 103-104).

O alcance estratégico de uma larga faixa de servidão militar ao longo das fronteiras já não tem, ao que parece, a mesma importância de outrora.

Observou o deputado SILVESTRE PÉRICLES, na Assembléia Constituinte, que a aviação pode determinar a conveniência de zonas militares até mesmo fora do país, em território do país aliado, lembrando o caso dos Estados Unidos, que, na última guerra, tiveram bases militares no nordeste do Brasil (JOSÉ DUARTE, ob. cit., vol. III, pág. 312). E a Constituição, no admitir sejam classificadas como bases militares cidades ou portos em qualquer ponto do território nacional (art. 28, II, § 2°), mostra que as zonas estratégicas podem estar longe das fronteiras.

As necessidades da defesa militar não exigem, ou podem não exigir tão larga margem territorial fronteiriça, na base quilométrica estabelecida em nossos textos anteriores.

Considere-se que, na Europa, o sistema adotado é o de zonas concêntricas em tôrno das praças fortes, a primeira das quais é ocupada peia fortificação com a área circunjacente, constituindo o domínio militar pròpriamente dito, e a outra ou outras (na Alemanha são três) são zonas de servidão militar (habitadas, industrializadas, cultivadas) de extensão que não vai além de 2 ou 3 quilômetros (2.250 metros na Alemanha), servidões legais, dizem os expositores, que não excluem a propriedade privada, a agricultura, as indústrias, ainda que sujeitas às restrições impostas pelas necessidades da defesa militar e da contigüidade das fortificações (LABAND, “Droit Public de l’Empire Allemand”, ed. fr., vol. V, págs. 552 e segs.; PLANIOL et RIPERT, “Traité Pratique de Droit Civil”, vol. III, pág. 837; CUNHA GONÇALVES, “Tratado de Direito Civil”, XI, pág. 222; HAURIOU, “Droit Administr.”, pág. 710; SCIALOJA, “Dizionario del Diritto Privato”, vol. II, “Demanio”; DALLOZ, “Nouveau Repertoire”, vol. III, “Place forte”).

Não se cogita de uma faixa territorial ao longo das fronteiras, senão de zonas de raio razoàvelmente limitado sujeitas a servidão militar, com as restrições decorrentes. E se assim é possível atender à defesa territorial em países fortemente militarizados, é que as necessidades dessa defesa não exigem se imponha maior sacrifício ao domínio particular.

A meu ver, a Constituição atual estruturou em bases diferentes a defesa militar do país no tocante aos pontos territoriais estratégicos. E daí o não aludir mais à faixa de fronteira (que as anteriores fixavam desde logo, exageradamente, em 100 e 150 quilômetros) para permitir um regime legal mais flexível, que tanto poderá comportar um território fronteiriço de largura uniforme em tôda a sua extensão, como faixas de profundidade variável ou, ainda, zonas de maior interêsse estratégico nesta ou naquela fronteira. Que o regime não é o mesmo das anteriores Constituições, di-lo um comentador da atual, o Sr. TEMÍSTOCLES CAVALCÂNTI: “A Constituição de 1946 referiu-se mais lacônicamente (ou digamos, imprecisamente, vagamente) às terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, às fortificações e construções militares e estradas de ferro, deixando assim à lei ordinária atribuir à União as terras devolutas necessárias” (“A Constituição Federal Comentada”, vol. I, página 444).

Por tudo isto ficou prevista uma lei complementar das novas estipulações, conforme se vê do art. 180, § 1º – “A lei especificará as zonas indispensáveis à defesa, nacional…”, lei que, segundo estou informado, se acha em elaboração no Congresso Nacional. Será o novo estatuto legal, assentado em bases que não serão as mesmas da preceituação constitucional e legal anterior, do que decorre que a faixa fronteiriça com a largura de 66 quilômetros, ou 100, ou 150, consoante os textos precedentes, poderá ser outra, possivelmente mais estreita, ou de largura variável, ou nenhuma, se assim o entender o legislador. Porque, na verdade, em nenhum passo da Constituição se alude a “faixa”, senão a “porção de terras devolutas indispensável à defesa das fronteiras” (art. 34, II) ou a “zonas indispensáveis à defesa do país”, “zonas” que “a lei especificará” (art. 180 e seu § 1º).

É certo que está pressuposto, com assento sobretudo no art. 34, II, o domínio público da União sôbre as terras contíguas à linha das fronteiras; mas em extensão, já agora, indefinida, de vez que na dependência da lei complementar prevista a especificação, vale dizer, a determinação, a fixação da área territorial fronteiriça que fôr indispensável à defesa do território nacional.

Eis por que me parece inconciliável com as novas disposições constitucionais a preceituação anterior, naturalmente a mais recente, a do Estado Novo, sob o Estatuto de 37, que adjudicava, desde logo, à União (art. 165) “uma faixa de 150 quilômetros ao longo das fronteiras”.

Ora, a Fundação Paranaense de Imigração e Colonização foi instituída, com o seu patrimônio formado por adjudicação de terras devolutas que se estendem da linha da fronteira do Paraguai para dentro, em 1950-1951, já na vigência da atual Constituição, não se sabendo, pois, se estarão, ou não, no todo ou em parte, na faixa territorial que venha a ser estabelecida pelo Congresso. As concessões anteriores, de referência a essas mesmas terras, feitas e transferidas sob as anteriores Constituições, é que incorreriam em censura, porquanto subsiste, sob a de 91, a lei imperial nº 601, e, sob as de 34 e de 37, as disposições constitucionais adjudicatórias da faixa de 100 e 150 quilômetros, prefixada.

Não havia, pois, por que obter o prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional, cujo beneplácito, nos têrmos do art. 180, está na dependência da prefixação, pelo Poder Legislativo, das “zonas indispensáveis à defesa do país”. Seria antecipar-se a uma prefixação que ainda inexiste, dando como subsistente a extensão quilométrica dos textos anteriores. E assim sendo, é claro que, no regime da lei nova, e em elaboração, aquela autorização será oportuna, e só então o será, se as terras concedidas estiverem, no todo ou em parta, em zona militar de fronteira.

O que se fazia mister, para a validade da concessão das terras devolutas, era a autorização do Senado, nos têrmos do art. 156, § 2°, da Constituição; e essa condição constitucional cumpriu-se.

Mas, ainda quando se entenda subsistente a faixa fronteiriça, determinada pela preceituação legal anterior, nem assim estaria excluída a existência de terras devolutas nessa imensa extensão territorial. A própria Constituição o admite quanto alude a “concessão de terras” (artigo 180, I), que outras não poderão ser senão as devolutas. Importa dizer que as áreas não ocupadas pela União, as terras públicas onde não existam colônias militares, quartéis, fortificações, etc., são terras vagas ou devolutas, se não estiverem no domínio particular por qualquer título legítimo.

Mas a quem competirá concedê-las? À União? Evidentemente não, tão certo é que o govêrno federal não poderia conceder terras devolutas situadas nos Estados.

A lei de terras de que cogita o artigo 156 da Constituição deixa claramente entrevisto que tais terras continuam no domínio estadual (§§ 1° e 2°). Terras devolutas de concessão federal só podem ser as existentes nos Territórios, que são circunscrições administradas pela União; não nos Estados, ainda que situadas na orla fronteiriça. O que se exige, relativamente a elas, é o assentimento da União, por via do Conselho de Segurança Nacional, do qual terá de depender a concessão pelo Estado, com as cláusulas e restrições que, nos têrmos da lei, puderem ser impostas, se havidas por indispensáveis à utilização para fins militares. Quando; na Constituinte de 1934, se discutia essa matéria, o deputado RAUL FERNANDES, com a autoridade de jurista eminente, esclareceu: “…essas terras, originàriamente devolutas e que a Constituição de 91 passou ao domínio dos Estados, podiam ser por êles livremente concedidas, mas agora não o podem senão com as restrições da Constituição, senão com a supervisão do Conselho Superior, tendo em vista a segurança nacional” (“Diário da Assembléia Nacional”, de 8 de julho de 34; ARAÚJO CASTRO, “A Nova Constituição”, 1935, págs. 493-494, nota).

As terras devolutas constituem para os Estados um elemento de propulsão econômica, articulado com a política imigraria, no interêsse do seu povoamento e colonização. Não importa que previstas na Constituição (art. 5º, XV, letra o; artigo 156, etc.), leis federais complementares que estabelecerão as bases, o plano uniforme, a condenação das medidas necessárias ao êxito do sistema. Nada disso exclui a competência estadual para dispor do seu patrimônio latifundiário, no interêsse daquela política, de acôrdo com as normas federais que venham a ser traçadas.

É do interêsse público, e particularmente do interêsse da defesa nacional, que as terras da fronteira sejam povoadas e cultivadas, que nelas se instalem indústrias, que se fundem povoações e cidades, contanto que fortalecido o espírito nacional por medidas adequadas. Criam-se, assim, na fronteira redutos de defesa, assegurando às tropas em operações centros de abastecimento. O deserto é que seria prejudicial, fator negativo do sucesso militar: é impossível, dizia ALSINA, eminente homem público argentino, e então ministro da guerra, relativamente à linha fronteiriça do rio Negro – “es una quimera” pretender guardar com soldados 200 léguas da fronteira, tendo o deserto à vanguarda e à retaguarda – “con el desierto à vanguardia y con el desierto à la espalda” (apud DE VEDIA, ob. cit., pág. 289).

Vejamos agora de que natureza é o direito da União sôbre as terral da fronteira. Será ela proprietária dessas terras; ou serão estas bens dominicais ou do seu domínio patrimonial?

Evidentemente, não.

O domínio público compreende três modalidades: 1ª, o domínio eminente, que a União exerce sôbre todo o território nacional, identifica-se com o conceito de soberania territorial e resolve-se em poderes de legislação e de govêrno, domínio eminente de que partilham os Estados, com base na cláusula constitucional do art. 2º, e, por delegação dêstes, os Municípios, em menor medida (RODRIGO OTÁVIO, “Domínio da União e dos Estados”, 2ª ed., pág. 33; RUI BARBOSA, “Direito do Amazonas”, vol. I, págs. e segs.; ANTOKOLETZ, “Derecho Constitucional y Administrativo”, vol. 1°, página 24); 2ª, o domínio público, pròpriamente dito, abrangendo os bens de uso comum de todos (ruas, praças, estradas, rios, etc.) e os bens afetados a um uso especial; 3ª, o domínio patrimonial do Estado (na acepção genérica), compreendendo os chamados bens dominicais ou dominiais, que são os “próprios”, na linguagem do nosso direito civil e administrativo, podendo pertencer à União (próprios nacionais), a êste ou àquele Estado, a êste ou àquele Município (inclusive o Distrito Federal e os Territórios).

Só relativamente aos bens desta última categoria se pode dizer que é “proprietário” o ente público (União, Estado federado, etc.) a cujo patrimônio estejam incorporados. Dos bens da segunda categoria – bens públicos de uso comum ou afetados a uso especial – não é proprietária a União, nem o Estado, etc. A propriedade dêles, segundo o consenso geral, pertence à Nação, à coletividade, ao povo. Define-se êsse domínio, isto é, o dos bens afetados a um uso público, não pelas regras do direito civil concernentes ao direito de propriedade, mas por normas e princípios de direito público, porquanto o conceito de domínio público exprime antes “una atribución de uso sobre un conjunto de cosas que componen ese dominio, las quales poden ser por todos usadas, ya uti singuli (individualmente) ya uti universi (en su conjunto, pero en manera indireta)”. E acrescenta, adiante, BIELSA: “sobre los quales (bens públicos) el Estado tiene un superior poder de policia, no derecho de propiedad” (BIELSA “Derecho Administrativo”, vol. II, págs. 420-424).

Os bens públicos, diz OTTO MEYER, são instrumentos da administração, que dêles se serve para realizar fins de utilidade pública (OTTO MEYER, “Le Droit Administr. Allemand”, ed. fr., vol. III, págs. 87 e segs.).

As terras de fronteira, na zona ou faixa reservada à União, a esta pertencem, não a título de propriedade, mas como bens do seu domínio público afetado a um uso especial, que é a defesa militar da fronteira, e na medida do necessário a essa defesa. Se nelas existem terras devolutas (aliás pressupostas no texto constitucional), tais terras escapam àquela destinação especial, de vez que delas não se apropriou a União para estabelecimentos militares ou fortificações. É exato que poderá, a todo o tempo, fazê-la; e, por isso mesmo, nessa expectativa é que não poderão ser alienadas pelo Estado respectivo sem o consentimento do Conselho de Segurança Nacional, o que não exclui, antes confirma, a possibilidade de existirem. Se de uma parte delas se apropriou a União, construindo quartéis, campos de aviação militar, fortificações, etc., tais construções, com a área territorial ocupada, passam a “próprios” nacionais, com o direito de propriedade titulado na União.

Mas as áreas remanescentes, que não estiverem no domínio particular por título legítimo de aquisição, pertencem ao Estado, que delas poderá dispor, como terras devolutas, ainda que na dependência do assentimento do Conselho de Segurança Nacional.

Não fosse assim e forçoso seria admitir, ou que inexistem terras devolutas na faixa de fronteira, pressupostas na Constituição e em tôda a legislação anterior, ou que as terras públicas, inecessárias à defesa militar da fronteira, seriam propriedade da União, e só por esta concessíveis, o que, como já vimos, é inadmissível constitucionalmente.

Na verdade, o que existe é uma servidão legal (constitucional) gravando a propriedade do Estado (terras devolutas) e a propriedade particular em tôda a zona fronteiriça. É um direito de propriedade sujeito a restrições consideráveis, ditadas pelo interêsse público. E tal é o sentido jurídico das servidões militares, de que falam os expositores estrangeiros, acima citados. Tais restrições, transportadas para o plano do direito público, traduzem-se na hipertrofia do domínio eminente exercido nela União sôbre tôda a zona confinante com os países estrangeiros, acrescido dos poderes de policia que lhe ficaram reservados (art. 5º, IV e VII), do poder de estabelecer limitações ao direito de propriedade, e que se definem como servidões, com a particularidade, notada por HAURIOU, de recaírem, não tanto sôbre os particulares, senão sôbre os departamentos e comunas, cuja autonomia se restringe ou reduz por efeito daquela intervenção (HAURIOU, “Droit Administr.”, pág. 710, nota).

O domínio público da União sôbre as terras da fronteira é restrito ao fim a que se destina e que redunda afinal numa servidão de direito público (de base constitucional) sôbre as terras não utilizadas. Estas, se públicas, continuam no domínio patrimonial do Estado, ainda que afetadas pelas restrições estabelecidas.

Veja-se a lição de OTTO MEYER: “Il se peut aussi qu’il existe, au profit de l’administration, de l’Etat ou de la personne qui est à sa place, seulement un droit restreint sur la chose et qui, bien que le refoulant, laisse subsister, en principe, le droit d’un tiers propriétaire. Il est des cas ou un pareil droit réduit suffit pour que l’Etat puisse, en vertu de ce droit, affecter la chose au service régulier de l’intérêt public dont s’agit. Ce droit aura la nature d’une servitude, d’un jus in re aliena; il aura pour contenu la charge imposée à l’immeuble de souffir l’usage qui on sera fait dans le but déterminé” (ibidem, ib., pág. 134).

O fato de reservar-se à União uma faixa ao longo das fronteiras não significa, pois, que tais terras pertençam à União, a titulo de proprietária. O verbo “pertencer”, algumas, vêzes empregado na legislação, ou a locução “incluem-se entre os bens da União” não tem êsse sentido, senão o de que tais terras são do domínio público da Nação no interêsse da defesa militar do território nacional. Não se segue daí que o Estado afetado pelas restrições consentidas à União não possa exercer concorrentemente com esta, sôbre a mesma faixa, que é parte do seu território, poderes de jurisdição, tributação, polícia, etc., nem possuir (como, aliás, os particulares) bens patrimoniais nela situados. Tal o caso das terras devolutas; pressupostas ou admitidas pela Constituição.

A coexistência de vários domínios titulados em entes públicos diferentes sôbre o mesmo território é possível, se distintos os objetivos (veja-se BIELSA, ob. cit., vol. II, pág. 436). E é o que ocorre na orla fronteiriça: União (domínio eminente, domínio público restrito às necessidades da defesa militar, domínio privado sôbre as áreas ocupadas ou que declare necessárias a êsse objetivo); Estado (domínio eminente, domínio privado ou patrimonial sôbre as terras públicas não utilizadas ou de que não precise a União para aquêle fim); particulares (domínio privado sôbre os bens que possuam por título legítimo de propriedade).

Temos diante dos olhos a realidade viva dessa coexistência. Existem nas terras adjacentes às fronteiras cidades e povoações, fazendas, campos de criação ou pastoreio, indústrias instaladas. Existem mesmo cidades, como no Estado do Paraná, a de Foz do Iguaçu, situada na linha da fronteira fluvial com o Paraguai; e no Rio Grande, Santana do Livramento e Rivera, separadas por uma rua sôbre a linha da fronteira com o Uruguai. Tudo isso está indicando que o domínio público da União sôbre as terras da fronteira não tem o sentido que se lhe atribui; é um regime jurídico que se define por um conteúdo policial desdobrado em medidas de segurança e limitações ao direito de propriedade na utilização daquelas terras – sem excluir, entretanto, a propriedade privada e o domínio patrimonial do Estado sôbre as terras devolutas que existam naquele domínio.

São as razões que me levam a responder pela afirmativa à questão acima proposta.

VII – 8°) “A Companhia Paranaense de Colonização “Espéria”, S. A., em 29 de julho de 1942, portanto, quando já tinha perdido as aludidas terras, fêz em favor de Carlos Ferreira uma confissão de dívida e pacto de melhor comprador sôbre 300 lotes com a área de 3.000 alqueires das referidas terras, fora das bases da concessão (lei nº 1.642, artigo 1º, § 1º).

“Ajuizada contra ela, perante a 2ª Vara Cível de Curitiba, uma ação cominatória em que houve falta de citação do Estado, afinal, foi adjudicado ao referido Carlos Ferreira o imóvel comprometido.

“Em face dos têrmos do dec. número 1.678, de 17 de julho de 1934, das leis que regulavam a concessão tendo em vista que as aludidas terras haviam revertido ao patrimônio do Estado e que a Lei de Organização Judiciária do Estado atribui competência ao juiz dos Feitos da Fazenda de Curitiba para resolver as questões onde haja interêsse do Estado, não será nula a mencionada sentença proferida pelo juiz da 2ª Vara Cível de Curitiba em 11 de dezembro de 1950, por ser incompetente ratione materiae e por não ter sido citado o Estado do Paraná?”

– O título de dívida em que se fundou Ferreira para acionar “Espéria” faz referência aos núcleos coloniais havidos do Estado do Paraná, deixando entrever, claramente que a adjudicação requerida tinha por objeto terras públicas de concessão estadual. Não pediu a citação do Estado, e calculadamente, para não ter pela frente adversário, limitando-se a fazer citar a “Espéria”, que não acudiu ao chamamento, deixando processar-se à revelia o feito, com a adjudicação dos lotes ao autor, e, ainda, não apelando da sentença.

Ao juiz, à vista dos instrumentos em que se fundou o pedido, cumpria, no despacho saneador, determinar a citação do litisconsorte necessário (Estado do Paraná), nos têrmos do art. 294, I, do Cód. de Processo.

Dessa omissão, da parte e do juiz, em cujas mãos estaria evitar a nulidade, resultou o sentenciar-se contra parte não citada, com a nulidade daí decorrente, e expressamente cominada (Cód. de Processo, art. 165).

Se era indeclinável a presença do Estado no feito, competente seria, não o juiz do cível, senão o privativo dos Feitos da Fazenda.

O fôro privativo do Estado, do mesmo modo que o fôro constitucional da União, para a propositura de causas em que alguma dessas entidades seja parte ativa ou passiva, é fôro privilegiado, indeclinável pela vontade das partes. É elementar que não é prorrogável a jurisdição comum para as causas da Fazenda Nacional, como, por igual, para as do Estado. Se êste criou para os feitos em que seja autor ou réu um juízo especial ou privativo, não estará na vontade do seu contendor acioná-lo em outro juízo, ainda que, citado, nisso consentisse êle, por anuência do seu representante judicial.

A incompetência ratione personae não anula o processado, nem a sentença final, porque, deixando de ser oposta a exceção de incompetência, se entende que as partes aceitaram o juízo em princípio incompetente. Mas essa prorrogação só pode ocorrer entre particulares, como no caso de ser alguém demandado em outro fôro que não o do seu domicílio. É sòmente a tais casos que se dirige a regra de que a incompetência relativa (ratione personae) não anula o feito.

Mas a competência privilegiada para as causas da Fazenda Publica equipara-se à competência absoluta (JOÃO MENDES, “Direito Judiciário”, pág. 49), com as mesmas conseqüências, se preterida, da incompetência ratione materiae (é aspecto a que voltarei adiante).

VIII – 9°) “É jurídico e merece acolhida o parecer da Subprocuradoria Geral do Estado consubstanciado no doc. nº 15?”

– Sim. O parecer do ilustre subprocurador geral do Estado examina proficientemente a matéria e chega a conclusões com as quais estou de acôrdo.

A êsses quesitos aditou a consulente mais os seguintes:

A. “Tendo sido proposta ação rescisória da sentença adjudicatória das terras devolutas revertidas ao Estado, sob o duplo fundamento de ser incompetente ratione materiae o juiz prolator da decisão rescindenda e de ser falso o título em que se fundou tal decisão – pergunta-se: 1º, se, em se tratando de terras devolutas do Estado, configura-se a incompetência absoluta do juízo do cível; 2°, se, apresentada na inicial e discutida no curso da rescisória a matéria da falsidade, por invocação do artigo 798, II, do Cód. de Processo, pode a, a mora invocar. na sustentação oral, o disposto na lei nº 70, de 20 de agôsto de 1947, que deu nova redação ao texto do Código?”

– A razão de ser da nulidade da sentença emanada do juiz incompetente ratione materiae, incompetência absoluta, está na improrrogabilidade da jurisdição do juízo, em princípio incompetente, pela vontade das partes (veja-se a resposta no quesito 8°).

O disposto no art. 798, I, a, quando autoriza a rescindibilidade da sentença por incompetência ratione materiae do juiz que a proferiu, deve ser entendido nestes têrmos, conforme explica CARVALHO SANTOS: “Justifica-se a regra, por isso que, se se trata de incompetência relativa do juiz, de duas uma: ou foi apresentada oportunamente a exceção declinatória, e a questão ficou decidida antes da sentença, ou não o foi, e verificou-se, como conseqüência, a prorrogação da jurisdição, de sorte a não se poder admitir a nulidade da sentença pelo juiz que teve a sua jurisdição assim prorrogada” (“Código de Processo Civil Interpretado”, vol. IX, pág. 147).

A defesa oral permitida às partes, por seus advogados, na instância superior, é “para a sustentação das respectivas conclusões”, vale dizer, para a sustentação da matéria de fato alegada, das provas produzidas e das deduções jurídicas correspondentes.

Quando o Cód. de Processo dispõe, no art. 158, II, que a inicial deve conter “o fato e os fundamentos jurídicos do pedido”, é de entender-se que são os atos e fatos jurídicos que sirvam de fundamento à ação (CARVALHO SANTOS, ob. cit., volume II, pág. 354).

O direito subentende-se no conhecimento do Tribunal – curia novit jus. O essencial é o fato, a matéria, a configuração da hipótese nos seus contornos de fato o probatórios. Tudo o mais são alegações, argumentos, deduções jurídicas, esclarecimentos, possivelmente valiosos, sem dúvida, mas não essenciais ao conhecimento e julgamento da causa pelo Tribunal.

Como observa o desembargador LOPES DA COSTA: “São simples declarações de conhecimento, não declarações de vontade as alegações jurídicas, referência a leis, a interpretação destas, a demonstração de sua aplicabilidade à espécie controvertida” (“Direito Processual Civil”, vol. 1°, págs. 316 e 431).

Se a parte alega o fato jurígeno (no caso, falsidade do título ou das provas em que se fundou a sentença rescindenda, falsidade que, nos têrmos da lei nº 70, pode ser apurada no curso da rescisória) está satisfeita a exigência legal.

B. “No caso de ser admitida a intervenção da União Federal na ação rescisória, acarretará essa intervenção o deslocamento da causa para o Tribunal Federal de Recursos?”

– O fôro privilegiado da União está definido na Constituição no pressuposto de causa a ser aforada na primeira instância, isto é, em se tratando de causa de duplo grau de jurisdição. Só em tais casos se opera o deslocamento do feito para a comarca da capital do Estado (Juízo dos Feitos), se intervier a União.

Se a causa é da competência originária do Tribunal de Justiça, não se compreende a remoção do feito (ação rescisória), de vez que só o próprio Tribunal de Justiça pode rescindir os seus julgados (e por extensão admitida, as decisões emanadas da primeira instância com êle articulada).

Ação rescisória supõe instância de retratação, só admissível na competência do próprio Tribunal que proferia a decisão que se pretenda rescindir. O Tribunal Federal de Recursos só rescinde os seus próprios acórdãos (Constituição, artigo 104, I, a). Não poderia rescindir julgados estaduais.

No caso, não se trata, aliás, de decidir sôbre terras devolutas, e sim de anular a decisão que as adjudicou a um particular, sendo, pois, a rescisão dêsse julgado o objeto da rescisória.

A intervenção que pretenda a União só poderá ser para, assistir a autora, pugnando com esta pela anulação daquela adjudicação.

É claro que, seja qual fôr a decisão, estará ao alcance da União (como de qualquer das partes) o recurso extraordinário, se fôr o caso, ainda que a União não tenha intervindo no feito, por isso que ao terceiro prejudicado é dado recorrer (Cód. de Processo, art. 815), inclusive extraordinàriamente.

É o meu parecer.

S. M. J.

Rio, 16 de agôsto de 1954 –

Sobre o autor

José Castro Nunes, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.

I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:

  1. Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
  4. A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
  5. O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

II) Normas Editoriais

Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br

Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.

Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).

Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.

Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.

Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.

Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
  2. contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
  3. qualidade da abordagem;
  4. qualidade do texto;
  5. qualidade da pesquisa;
  6. consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
  7. caráter inovador do artigo científico apresentado.

Observações gerais:

  1. A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
  2. Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
  3. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
  4. Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
  5. Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
  6. A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.

III) Política de Privacidade

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.


LEIA TAMBÉM:

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA