GENJURÍDICO
seguranca juridica mudanca-jurisprudencia-modulacao

32

Ínicio

>

Artigos

>

Constitucional

ARTIGOS

CONSTITUCIONAL

Segurança jurídica, mudança da jurisprudência e modulação de efeitos

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

08/11/2023

Como já adiantado em coluna anterior, aos órgãos judiciários não cabe apenas o controle dos atos/omissões dos demais atores estatais, como também proteger os cidadãos em face de sua própria atuação, como se dá, por exemplo, na hipótese de mudança de entendimento jurisprudencial dominante ou mesmo suficiente para servir de base sólida para a proteção da confiança legítima nela depositada pelos cidadãos, em especial quando se trata de jurisprudência dos tribunais superiores.

Nesse contexto, como igualmente já visto, o Poder Judiciário não apenas pode, como deve, modular os efeitos de suas decisões, o que se faz necessário para o resguardo das posições jurídicas de natureza fundamental em jogo no caso concreto.

Apenas para referir um exemplo atual, que bem representa o que acabou de se referir, vale reinvocar decisão do STF que teve por objeto precisamente a aplicação da segurança jurídica no caso de mudança jurisprudencial e a necessidade de atribuir efeitos prospectivos às decisões, a fim de salvaguardar direitos e garantias fundamentais do eleitor. Nesse sentido, toma-se a liberdade de transcrever o seguinte excerto da ementa:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. REELEIÇÃO. PREFEITO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. I. REELEIÇÃO. MUNICÍPIOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. PREFEITO. PROIBIÇÃO DE TERCEIRA ELEIÇÃO EM CARGO DA MESMA NATUREZA, AINDA QUE EM MUNICÍPIO DIVERSO. (…) II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO (…) Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral deve adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. (…) IV. EFEITOS DO PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Recurso extraordinário provido para: (…) (2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior”[1].

Note-se, ademais, que o STF passou a consolidar ainda mais o seu entendimento nessa matéria, colacionando-se aqui, em caráter ilustrativo, outro julgado em situação envolvendo mudança jurisprudencial e atribuição de efeitos prospectivos à sua decisão:

“AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. VPNI. DEVOLUÇÃO DE PARCELAS RECEBIDAS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE ESPECÍFICO DO PLENÁRIO PARA SITUAÇÃO IDÊNTICA. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA. 1. Quando do julgamento do MS 25.430, o Supremo Tribunal Federal assentou, por 10 votos a 1, que as verbas recebidas em virtude de liminar deferida por este Tribunal não terão que ser devolvidas por ocasião do julgamento final do mandado de segurança, em função dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica e tendo em conta expressiva mudança de jurisprudência relativamente à eventual ofensa à coisa julgada de parcela vencimental incorporada à remuneração por força de decisão judicial. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento”[2].

No mesmo diapasão, importa destacar que os tribunais superiores brasileiros inclusive tem sido sensíveis à promoção da proteção da expectativa legítima dos jurisdicionais, mesmo em situação de inconstitucionalidade, e mesmo que a confiança tenha sido construída por julgados de vinculação não obrigatória ou posteriormente revogados, ou seja, com base em precedentes no sentido próprio do termo, sem que se possa adentrar aqui a querela em torno do conceito de precedente na ordem jurídica brasileira, termo que justamente aqui se busca evitar, porquanto não se trata do objeto do presente texto, remetendo-se, contudo, à indispensável e poderosa visão crítica de Lenio Streck sobre o tema [3].

Repise-se aqui que a possibilidade (e mesmo necessidade) da modulação de efeitos das decisões no caso de mudança jurisprudencial, embora já possa ser deduzida como implicitamente prevista na ordem jurídico-constitucional brasileira (o que aqui igualmente não será abordado), encontra-se hoje, como já referido em colunas anteriores, expressamente reconhecida no § 3º do artigo 927 do Código de Processo Civil, de acordo com o qual Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Técnica de fixar efeitos prospectivos de decisões

Nesse contexto, calha sublinhar que também o STJ tem adotado a técnica de fixar efeitos prospectivos quando suas decisões alteram posicionamento anteriormente adotado pela corte, e, assim, violam a expectativa legítima dos jurisdicionados. Exemplificativamente:

“9. Em homenagem à segurança jurídica e ao interesse social que envolve a questão, e diante da existência de julgados anteriores desta Corte, nos quais se reconheceu a interrupção da prescrição em hipóteses análogas à destes autos, gerando nos jurisdicionados uma expectativa legítima nesse sentido, faz-se a modulação dos efeitos desta decisão, com base no § 3º do art. 927 do CPC/15, para decretar a eficácia prospectiva do novo entendimento, atingindo apenas as situações futuras, ou seja, as ações civil públicas cuja sentença seja posterior à publicação deste acórdão”[4].

“4. É bem de ver que há a possibilidade de modulação dos efeitos das decisões em casos excepcionais, como instrumento vocacionado, eminentemente, a garantir a segurança indispensável das relações jurídicas, sejam materiais, sejam processuais.


5. Destarte, é necessário e razoável, ante o amplo debate sobre o tema instalado nesta Corte Especial e considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança, da isonomia e da primazia da decisão de mérito, que sejam modulados os efeitos da presente decisão, de modo que seja aplicada, tão somente, aos recursos interpostos após a publicação do acórdão respectivo, a teor do § 3º do art. 927 do CPC/2015″[5] (grifos do colunista).

Aliás, em relação a essa última decisão, vale transcrever as razões apontadas pelo ilustre ministro relator do acórdão, Luís Felipe Salomão, para fixar efeitos prospectivos à decisão que alterava o entendimento da Corte quanto à necessidade comprovação de feriados para demonstração de tempestividade recursal, no sentido de proteção da expectativa de direito“não parece razoável alterar-se a jurisprudência já consolidada deste Superior Tribunal, sem se atentar para a necessidade de garantir a segurança das relações jurídicas e as expectativas legítimas dos jurisdicionados”[6] (grifos do colunista).

Nesse mesmo contexto, como igualmente (e bem) assinalado pelo relator Luís Felipe Salomão no mesmo julgamento, “não se pode ignorar a confiança legítima que a jurisprudência há muito consolidada no âmbito de uma Corte Superior inspira nos jurisdicionados, que, de boa-fé, moldam os respectivos comportamentos de acordo com tais diretrizes”. (grifos do colunista).

Modulação de efeitos das decisões dos tribunais superiores

A modulação de efeitos das decisões dos tribunais superiores, configura-se, portanto, de acordo com entendimento que aqui se adota, em típico poder-dever, que, que, por sua vez, como preconiza abalizada doutrina, há de ser exercido sobremaneira quando a decisão em questão alterar posição anterior do tribunal, notadamente naquelas situações nas quais foi criada no jurisdicionado a confiança legítima no ordenamento jurídico tal qual interpretado pela corte, ou ainda quando inaugurar interpretação a respeito de ponto sobre qual não havia anteriormente fixado entendimento.

À vista do sumariamente exposto neste igualmente breve articulado, espera-se ter logrado pelo menos propiciar uma notícia geral sobre o tema, que, como notório, é de grande complexidade e encerra uma miríade de aspectos teóricos e práticos, boa parte dos quais controvertidos, e a respeito dos quais já se derramaram rios de tinta. Noutra ocasião, será o caso de explorar um ou outro desses pontos.

Fonte: ConJur

CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DO AUTOR

Agrotóxicos: Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer analisam a legislação sobre o tema

LEIA TAMBÉM


[1] STF, 637.485-RJ, rel. min. Gilmar Mendes, julgado em 01.08.2012.

[2] STF, MS 31543 AgR, 1ª Turma, rel. min. Edson Fachin, julgado em 14.10.2016.

[3] Lenio Luiz Streck. Precedentes Judiciais e Hermenêutica. O sentido da vinculação no CPC/2015, 4ª ed., Rio de Janeiro, JusPODVM, 2023. No que diz respeito o conceito de precedentes até hoje não existe consenso no Brasil. Assim, entre outros autores de inconteste e reconhecida autoridade na matéria, colaciona-se o escólio de Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinário, 7ª ed., São Paulo: RT, 2023, p. 311 e ss., que referem, por cautela, a fórmula “precedentes à brasileira?”, usando-o na forma interrogativa, deixando claro que a sistemática adotada pelo CPC de 2015 afasta-se da concepção tradicional e forjada no sistema da common law de precedentes, porquanto inclui na acepção outros tipos de provimentos jurisdicionais. aulo: RT, 2022. Sobre o tema, v., ainda, Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes Obrigatórios, 7ª ed., São Paulo: RT, 2022.

[4] STJ, REsp 1.758.708/MS, Corte Especial, rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 20.04.2022.

[5] STJ, REsp nº 1.813.684/SP, Corte Especial, rel. p/ac. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019.

[6] STJ, REsp. 1.813.684/SP, Corte Especial, rel. p/ ac. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02.10.2019.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA