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O ‘revogaço’ e a busca do consenso mínimo

BOLSONARO

LULA

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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

02/02/2023

Muito tem se dito, ultimamente, sobre o verdadeiro “Fla-Flu” em que se transformou o debate político no país. A imagem de um “Brasil rachado ao meio”, que já tinha vindo à tona em outros momentos da História recente, ganhou força nas últimas eleições diante da diferença de pouco mais de 2 milhões de votos que separou os dois concorrentes ao cargo de presidente da República.

A verdade, contudo, é que a nostalgia de um Brasil unido em torno de pautas comuns é fantasiosa. A identidade brasileira, forjada historicamente no conflito entre uma elite escravagista e um largo contingente de explorados e excluídos, sempre carregou consigo o embate latente entre, de um lado, o desejo de preservação de privilégios sociais e econômicos e, de outro lado, a luta pela emancipação e inclusão efetiva dos marginalizados.[1]

Identidade brasileira

Conquanto disfarçada em mitos de cordialidade e democracia racial, a identidade brasileira sempre foi conflituosa. O que há de novo talvez seja simplesmente o desmascaramento deste conflito. A crescente visibilidade de pautas inclusivas – hoje adotadas até mesmo por um empresariado, que, historicamente, as desprezava – contrapõe-se a uma reação ostensivamente conservadora, alçando ao centro do debate público disputas que outrora se travavam de modo mais silencioso. Essas disputas evidenciam, a rigor, uma divergência política e ideológica que sempre existiu entre nós, brasileiros, e que talvez já tenha sido até mais profunda, embora menos divulgada publicamente.

A divergência política e ideológica não é um mal, mas representa, bem ao contrário, um elemento inerente a qualquer sociedade democrática caracterizada pela ampla liberdade de expressão e pelo pluralismo de ideias. O mal é o extremismo, que radica na incapacidade de dialogar e converte todo discurso em violência. É preciso reconhecer os próprios erros, mas também os acertos dos outros.

Isso não assegura, todavia, qualquer salvo-conduto ao partido político do presidente da República ou ao novo governo, cuja atuação deve ser fiscalizada diuturnamente pelas instituições encarregadas do controle de legalidade – controle que consiste, também ele, em um dever constitucional (artigos 49, X, 70, 71, 74, I a III, 129, II, da Constituição). O combate à corrupção e às múltiplas formas de ilegalidade que se alastram na vida pública brasileira, incluindo o uso da máquina pública para fins puramente pessoais e o emprego irresponsável de recursos públicos, exigem vigilância permanente.

A construção de um país mais igualitário e o combate às ilegalidades no âmbito governamental, além de imperativos constitucionais, parecem desenhar um espaço mínimo de consenso no embate ideológico brasileiro. A delimitação de um consenso mínimo não é um objetivo animado pela construção de um país cordato ou amigável, que só existiu no papel, mas é algo que pode auxiliar imensamente na concretização, ainda que tardia, do projeto constitucional, pela simples razão de que se avança mais rapidamente em terrenos menos pedregosos.

O detalhamento destas duas pautas, com as necessárias especificações práticas, mereceria maior destaque no debate público e maior atenção dos juristas. No Brasil, o movimento da comunidade jurídica parece continuamente guiado pelas normas editadas pelo presidente da República – já que todos, sem exceção, têm abusado do instrumento das Medidas Provisórias – e pelo Poder Legislativo. A comunidade jurídica brasileira, em outras palavras, “reage” à edição de normas, quando deveria incentivar a sua criação e o seu aperfeiçoamento ou, ainda, a sua revogação no caso de normas que se provaram equivocadas.

Revogaço

Não deixa de ser emblemático, nesse sentido, que a primeira notícia do novo governo tenha sido não a edição de novas normas jurídicas, mas a revogação de normas editadas no período anterior. O chamado “revogaço” – consubstanciado no grupo de decretos e outras normas revocatórias assinados logo após a posse e publicadas no Diário Oficial já no segundo dia do ano – revela, por meio dos temas escolhidos, os maiores ou mais imediatos dissensos entre os dois grupos políticos que se enfrentaram nas eleições do ano passado.

Por exemplo, o Decreto 11.369/2023 revogou o Decreto 10.966/2022, que havia instituído o Programa de Apoio à Mineração Artesanal e em Pequena Escala, programa que, na prática, abria permissão para a garimpagem em terras indígenas e áreas de proteção ambiental. Por sua vez, o Decreto 11.370/2023 revogou o Decreto 10.502/2020, que havia instituído a chamada Política Nacional de Educação Especial, no âmbito da qual se permitia a criação de escolas especializadas para pessoas com deficiência. A eficácia do Decreto 10.502/2020 já havia sido suspensa pelo Supremo Tribunal Federal,[2] em decisão que destacou o compromisso do país com a educação inclusiva, por meio da inserção na rede regular de ensino, em oposição à segregação que poderia resultar das normas integrantes do referido Decreto.

Um tema que mereceu especial atenção foi o armamento. O novo Decreto 11.366/2023 suspendeu os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito, restringiu os quantitativos de aquisição de armas e de munições de uso permitido e suspendeu a concessão de novos registros a clubes e escolas de tiro, bem como a colecionadores, atiradores e caçadores. O mesmo Decreto determinou a criação de grupo de trabalho para a regulamentação do Estatuto do Desarmamento, lei de 2003 que, curiosamente, serviu de base à edição de decretos e outras normas infralegais que, ao longo do governo anterior, ampliaram o acesso às armas no Brasil. O aumento do número de armas em circulação eleva, com o perdão do truísmo, o risco à vida e à saúde da população. Brigas de trânsito, discussões domésticas e até debates políticos convertem-se em morte, como se viu durante as últimas eleições.[3]

Em artigo específico sobre o tema, Daniel Sarmento registrou a invalidade do argumento segundo o qual a autorização para uso de armas “favorece apenas as ‘pessoas de bem’, que podem adquirir armas para autodefesa contra ‘bandidos’. Na verdade, a maior parte das armas utilizadas em crimes no Brasil tem origem lícita. Porém, em algum momento, elas se extraviam, são furtadas ou roubadas, e acabam nas mãos de criminosos. Isso significa que o aumento do número de armas, mesmo quando adquiridas por pessoas honestas, favorece a criminalidade e aumenta a insegurança social”.[4]

A necessidade de combate à violência e à criminalidade – especialmente nos grandes centros urbanos – também parece ser um ponto inegável de consenso entre os eleitores brasileiros. A divergência quanto à forma de fazê-lo pode ser superada por um debate público amplo e transparente, com uso de dados e consulta a especialistas, inclusive a partir de experiências específicas de sucesso no Brasil e no exterior. O consenso quanto à importância do objetivo afigura-se seguramente superior ao dissenso quanto aos meios para alcançá-lo. Trata-se de tema que também se associa umbilicalmente à luta pela igualdade e ao combate à corrupção.

O Brasil não se tornará, nos próximos anos, o país idílico da cordialidade e da ternura. O conflito ideológico não desaparecerá. E isso é bom. Sempre que o embate nacional foi encoberto por medidas apaziguadoras ou varrido para debaixo dos tapetes, o conflito retornou às nossas portas com maior intensidade. Após 35 anos de vigência da Constituição, o Brasil já tem maturidade o suficiente para discutir com franqueza e definir caminhos, a partir de debates sérios e cientificamente fundamentados, sem superficialismo, sem panfletagem e sem violência. São os votos que deixo a todos os leitores neste novo ano que se inicia.

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] Em sentido semelhante, ver entrevista de Luiz Antônio Simas, Luiz Antonio Simas, A ideia de identidade nacional fixa é uma ilusão (GZH, 7.11.20).

[2] Decisão liminar monocrática proferida pelo Ministro Dias Toffoli em 1º de dezembro de 2020, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.590, posteriormente referendada pelo Plenário do STF em 18 de dezembro de 2020.

[3]Bolsonarista invade festa de aniversário e mata petista no Paraná (Uol.com.br, 10.7.2022).

[4] Daniel Sarmento, Armamentos, Democracia e STF (Blog Fumus Boni Iuris, 26.3.2021).

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