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Poder executivo inapto: espaços para legislativo e judiciário

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José dos Santos Carvalho Filho

José dos Santos Carvalho Filho

06/07/2020

Foi Montesquieu o precursor da teoria da separação de poderes nos moldes em que hoje é adotada em várias Constituições, e, ao concebê-la, pretendeu assegurar a liberdade dos indivíduos. Entre os cânones da teoria, afirmava inexistir liberdade quando os poderes executivo e legislativo se amalgamavam. Explicava assim: “…pode-se temer que o próprio monarca, ou o próprio senado, faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente”. (1) James Madison reproduziu a teoria em seu “O Federalista” (2), a qual foi adotada na Constituição americana, que dedicou os arts. 1º, 2º e 3º aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, respectivamente.

A separação (ou divisão) de poderes não foi concebida primitivamente por Montesquieu. Marsílio de Pádua já a mencionava no século XIV, assim como também o fazia Maquiavel no século XVI (“O Príncipe”). Depois, John Locke, no século XVII, apontava a existência de quatro funções fundamentais exercidas por dois órgãos de poder. Mas a verdade é que foi o grande filósofo iluminista que permitiu a expansão da teoria dentro do modelo atualmente adotado, como bem assinala Dalmo de Abreu Dallari. (3)

A ideia central da teoria consiste na atribuição de funções específicas a cada um dos poderes, de modo que tal distribuição de tarefas evitaria a concentração de poder em um só órgão, com evidente prejuízo para a democracia. Bem consigna Jorge Miranda que, para o equilíbrio desses órgãos, foi concebido um regime de controle recíproco, que veio a ser conhecido como sistema de freios e contrapesos (checks and balances), de modo a impedir eventual tentativa de supremacia por parte de qualquer poder. (4)

A despeito das funções típicas atribuídas a cada poder, tal sistema, que resultou da modernização das estruturas do Estado, admite que, em certas circunstâncias, um poder execute funções que, em tese, caberiam na esfera de outro – funções atípicas. Assim, o sistema “teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias”, conforme averba Inocêncio Mártires Coelho, aditando que o Judiciário, por sua vez, profere decisões com o caráter de “legislação judicial’, como ocorre no controle de constitucionalidade. (5)

O sistema, afinal, é resumido no texto do art. 2º da Constituição, que encerra peremptoriamente o seguinte postulado: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A independência revela a autonomia de cada poder, conquanto de modo relativo considerando os demais poderes, razão por que alguns estudiosos clamam pelo termo “interdependentes”, que melhor definiria a qualificação. A harmonia é o fator imprescindível à convivência pacífica entre os poderes em face da convergência de objetivos no cenário constitucional.

Em regimes despóticos, a concentração de poder nas mãos de um só órgão facilita a gestão dos interesses da coletividade, e isso pela singela razão de que ditaduras não encontram óbices em suas ações, mas, em compensação, a democracia sofre o esmagamento provocado pela falta de liberdade e da garantia dos direitos fundamentais.

Já em regimes de descentralização, ou distribuição, do poder, o equilíbrio entre os órgãos diretivos é fundamental para seu bom desempenho e nisso está incluído o exercício das respectivas funções. Desde que os poderes cumpram rigorosamente as funções constitucionais e executem os controles que a Constituição lhes cometeu relativamente aos demais poderes, a tendência é a eficácia política para os fins colimados pelo regime.

Nesse giro, convém buscar o verdadeiro sentido da harmonia a que se refere o art. 2º da CF. Ao dizer que os poderes devem ser harmônicos, a Constituição impôs, primo oculi, a necessidade de que Executivo, Legislativo e Judiciário desenvolvam suas respectivas funções em convívio pacífico e com reciprocidade, numa conjugação de esforços e objetivos, sempre com agregação, e nunca com desagregação.

Nas palavras de José Afonso da Silva, verifica-se primeiramente a harmonia entre os poderes “pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades que mutuamente todos têm direito”, acrescentando: “De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas”. (6)  Sobressai, portanto, o respeito que cada poder deve dispensar ao outro no que tange às suas atribuições.

Entretanto, dessa ideia primária de poderes “harmônicos entre si” decorre outro sentido de natureza subsidiária, mas não menos importante. É que a harmonia indica também o dever constitucional de o poder adotar conduta proativa e eficiente, ou seja, conduta qualificada pela proatividade e pela eficiência – em suma pela aptidão no exercício das funções estatais.

A proatividade retrata as ações positivas que cada poder tem que imprimir relativamente às suas atribuições. Indica que a cada um deles é vedada situação de passividade e inércia. A despeito de ser conduta omissiva, revela inevitável violação aos deveres constitucionais, que obviamente não foram instituídos para não ser exercidos.

Noutra vertente, a eficiência traduz o desempenho das funções de tal modo que, pelos meios adequados, se atinjam os resultados que efetivamente satisfaçam os anseios da sociedade. Daí qualificar-se como princípio administrativo, relacionado no art. 37, caput, da CF. Ensina Onofre Alves Batista Júnior que, por ser essencialmente pluricompreensivo e cambiante, o princípio da eficiência “impõe uma atuação administrativa atenta, flexível e dinâmica, adequada a proporcionar sistematicamente, em compasso com a mutante realidade, a observância das diversas nuanças de sua ideia central”. (7)

Essa adequação entre causas, meios e fins – elementos integrantes da eficiência – não se limita à atuação na esfera administrativa, mas, ao contrário, é impositiva para o desempenho das atribuições de todos os poderes. Faltante esse delineamento, ausente estará a eficiência na atuação do Executivo, Legislativo ou Judiciário.

O problema, porém, da falta de proatividade e de eficiência são os efeitos que provoca. De fato, a consequência da inércia ou da ineficiência de um poder reside da formação de espaços políticos que acabam sendo preenchidos pelos demais poderes. Espaços nunca permanecem desocupados, essa é a grande verdade. Se aparecem no âmbito de qualquer poder, a tendência irreversível é que outro os ocupe.

Talvez o exemplo mais comum – ao menos é o mais mencionado – é o das medidas provisórias, que provêm do espaço deixado pelo Legislativo no que toca à demora e burocracia na promulgação de leis sobre temas urgentes. Por sua inaptidão nesse aspecto, atribuiu-se ao Executivo a missão de fazê-lo, ainda que temporariamente e sob referendo do Legislativo (art. 62, CF).

Adotadas pelas Constituições italiana e espanhola sob regime parlamentarista, ingressaram na Carta brasileira sob regime presidencialista, como informa Guilherme Peña de Moraes, realçando ainda mais o exercício da função legislativa pelo Poder Executivo. (8) O espaço, nesse caso, nasceu tanto da falta de proatividade quanto da ineficiência do desempenho da função legiferante.

O mesmo ocorre quando o Executivo é inapto para exercer suas funções. Os demais poderes inevitavelmente avançam pelos espaços deixados por ele e invariavelmente se imiscuem na esfera de suas atribuições. Como são muitas as invasões, algumas se revelam à evidência inconstitucionais, mas, como atendem demandas sociais, a sociedade afasta a resistência para repudiá-las, e mais, habitualmente as apoiam.

O atual Poder Executivo, não somente pela Presidência da República, mas também por alguns de seus Ministérios, tem-se mostrado inapto na condução de sua missão administrativa, inclusive quanto à gestão da pandemia da Covid-19 e outras políticas públicas. A minimização da doença pelo Presidente, suas ambiguidades e tendências à criação de conflitos, a primazia ideológica relativamente às ações sociais, a desobediência à determinação do uso de máscaras, o escamoteamento de dados estatísticos na pandemia – todos esses aspectos criam espaços para os demais poderes.

O mesmo ocorre quanto a algumas políticas públicas, como nas áreas do meio ambiente, educação, saúde, cultura, usualmente trilhando direções equivocadas, isso sem contar a troca desarrazoada de ministros e outras autoridades, numa clara demonstração de insegurança e hesitação.

Tem havido, portanto, inaptidão do Executivo, quer por falta de ações, quer por ineficiência dos métodos. Não à toa esse poder deixou espaços para o Judiciário e o Legislativo. Este, por exemplo, efetuou a devolução direta da MP 979, que conferia ao Ministro da Educação o poder de nomear reitores de universidades – devolução claramente inusual (só ocorreu três vezes desde 1980) e que sinaliza conflito entre esses poderes. Quer dizer: sequer se processou a MP; foi devolvida de plano por inconstitucionalidade.

O Judiciário e o Ministério Público não raro se arvoram em administradores públicos e avançam nas atribuições do Executivo. São muitos os exemplos. Um deles: juízes ordenam a proibição de flexibilizar a circulação de pessoas em sentido contrário ao definido por Chefes de Executivo. Outro: o STF suspendeu liminarmente ato de livre nomeação de autoridade policial, da competência do Executivo, sob a alegação de desvio de finalidade, fato impossível de ser averiguado de plano. Ainda outro: juiz determina que hospital funcione…

Todas essas invasões são inconstitucionais, mas é preciso reconhecer que decorrem justamente dos espaços oferecidos pelo Executivo em virtude de ser inapto no exercício de sua missão constitucional. Em várias situações – insista-se – a sociedade aplaude, e isso porque os resultados refletem os seus anseios, o que o Executivo não consegue implementar.

Enfim, essa é a verdade: no sistema da tripartição de poderes, quando um poder é inapto, por inércia ou por ineficiência, abre espaços para serem preenchidos pelos demais. No presente momento, o Executivo, por ser inapto, abre espaços e faz a festa dos demais poderes. São estes que ficam bem na foto…

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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1)      MONTESQUIEU, De L’Esprit des Lois, Livro XI, Cap. VI (Os Clássicos da Política, org. Francisco Weffort, Ed. Ática, vol. 1, 2012, pág. 174).

(2)      JAMES MADISON, O Federalista, XLVII, obra em coautoria com Alexander Hamilton e John Jay.

(3)      DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de Teoria Geral do Estado, Saraiva, 30ª ed., 2011, pág. 216.

(4)      JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Forense, 2002. pág. 90.

(5)      INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, Curso de Direito Constitucional, (coautoria com Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco), Saraiva, 4ª ed., 2009, pág. 178.

(6)      JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 20ª ed., 2002, pág. 110

(7)      ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR, Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa, Forum, 2ª ed., 2012, pág. 175

(8)      GUILHERME PEÑA DE MORAES, Curso de Direito Constitucional, Atlas, 4ª ed., 2012, pág. 425.

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