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TRIBUTÁRIO
Os princípios da reforma são só ‘aula de religião’?
Hugo de Brito Machado Segundo
11/12/2024
A Emenda Constitucional 132 inseriu belos princípios no artigo 145, §3º, da CF/88. Falando deles em recente evento sobre a reforma, um palestrante afirmou que, agora, se um tributo não for justo, transparente, simples e preocupado com o meio ambiente, será inconstitucional. A plateia riu incrédula. O curioso, porém, é que a maior parte dela era composta de juízes, lançando a questão: qual o papel mesmo desses novos princípios? E o que os juízes têm com isso?
Serão só simbólicos?
Diz-se “constitucionalização simbólica” [1] a prática de inserir disposições no texto constitucional preconizando condutas ou objetivos que a sociedade em geral anseia, mas que, já no plano da regulamentação, não são observados, às vezes pelos próprios parlamentares que operaram a mudança constitucional. O texto, em tais casos, funciona como mero álibi ou desculpa para apaziguar os ânimos de quem reclama por mudanças. Se se protesta em face do poder público contra um determinado estado de coisas, aquele a quem se dirige a reclamação defende-se: – Até já mudamos a Constituição para resolver isso! Só que, como não se quer resolver de verdade, a mudança fica só no plano constitucional mesmo.
Em texto produzido por inteligência artificial generativa, a quem se explicou, no prompt, o que é a constitucionalização simbólica, e se pediu explicação ao estilo machadiano, este foi o resultado:
“‘constitucionalização simbólica’, como bem disse Marcelo Neves, é aquela estranha feição que certas constituições assumem: recheiam-se de artigos e princípios que, à vista dos desavisados, brilham como o ouro das Minas Gerais e prometem mundos e fundos; porém, quando chega o momento de ver se há solidez por trás desse esplendor, percebe-se que tais normas não passam de figurantes de uma peça de teatro. A Constituição, nesse caso, não opera como uma espada afiada que corta as iniquidades e corrige os desatinos, mas antes como uma espécie de adorno público, um quadro vistoso nas paredes da República, de onde o povo espera justiça, mas recebe promessas e gestos.
Os direitos ali escritos existem como belos ideais, é certo, mas a distância entre a palavra e a prática é grande. O texto, ao invés de ser instrumento de ordem e realidade, é muito mais um alento poético, uma declaração para inspirar, não para realizar. Quem espera o pão da justiça, do conforto constitucional, acaba com as migalhas de uma promessa. A Constituição, assim, perde-se em seu próprio jogo de espelhos, como aquele amigo que promete favores que nunca faz”.
Deu-se isto com a inserção do princípio da progressividade no texto constitucional de 1988. Até então, a legislação do imposto sobre a renda das pessoas físicas previa alíquotas que variavam de 5% a 55%. Altamente progressivas, sem que nada no texto constitucional o exigisse de modo explícito. Foi só inserir no art. 153 da CF/88 a determinação de que o imposto de renda seja regido pelo princípio da progressividade que a legislação infraconstitucional foi alterada, pelo mesmo Congresso que editou a CF/88 [2], para estabelecer alíquotas de apenas 15% e 25%.
Aula de religião
Outra analogia que se pode fazer para ilustrar a ideia – e a mente humana funciona assim, à base de analogias [3] – é a das aulas de religião que o autor deste escrito era obrigado a assistir quando criança. À época ainda não havia a compreensão um pouco mais preocupada com a tolerância, a liberdade de pensamento e os direitos fundamentais que existe hoje, de modo que não se disfarçava a aula com outros nomes ou expressões, como “relações humanas”. A aula era “de religião”, e era só uma religião que se ensinava a crianças ainda na mais tenra idade, a da escola.
Diante de histórias às vezes até assustadoras para aqueles jovens ouvidos, de povos inteiros massacrados por conta da conduta inadequada de alguns, toda a vida terrestre dizimada por um dilúvio em razão da conduta reprovável de outros (que culpa teriam os pobres animais que não subiram na arca, que nada tinham com isso?), as crianças, um pouco aterrorizadas, e desencorajadas a fazer questionamentos, que poderiam soar como blasfêmias, compreenderam que, para se dar bem na prova, era só repetir um mantra: “É preciso agir com mais paz, carinho, amor, união e compreensão”. Qualquer que fosse a pergunta da professora (como tratar os pais? Como erradicar a fome no mundo? Como acabar com as guerras?), em qualquer situação, a resposta mágica era a mesma: É preciso agir com mais paz, carinho, amor, união e compreensão.
Depende, a rigor, do Poder Judiciário, compreender as disposições do artigo 145, §§ 3º e 4º como normas jurídicas dotadas de alguma efetividade, de um mínimo enforcement. Do contrário, será apenas uma “aula de religião” para quem só repete mantras para sair bem na fita.
[1] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, passim.
[2] Trata-se da Lei 7.713/88, que minimizou consideravelmente a progressividade que até então existia. Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988. 5.ed. São Paulo: Dialética, 2004, passim.
[3] HOFSTADTER, Douglas; SANDER, Emmanuel. Surfaces and essences. Analogy as the fuel and fire of thinking. New York: Basic Books, 2013, p. 5 e ss.