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Os direitos fundamentais nos 35 anos da Constituição (parte 2)

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Os direitos fundamentais nos 35 anos da Constituição (parte 2)

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

14/12/2023

Ainda no que diz respeito aos avanços relativos ao que se pode designar de uma parte geral relativa aos direitos fundamentais, inaugurada na coluna anterior, é de particular relevância referir que, depois de uma fase de manifesta resistência (que, aliás, era visivelmente majoritária no meio forense) por parte do STF no que diz com o valor normativo atribuído aos direitos constantes dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que até meados dos anos 2000 tinham, segundo posição majoritária na Corte, hierarquia equivalente à das leis ordinárias, não houve progressos.

Todavia, pouco depois da incorporação, por emenda constitucional (EC 45/2004), de um parágrafo terceiro no artigo 5º, dispondo que os tratados de direitos humanos aprovados com maioria de três quintos, nas duas casas do Congresso, têm hierarquia normativa equivalente ao das emendas constitucionais, o STF modificou seu entendimento, passando a reconhecer a hierarquia supralegal de todos os tratados internacionais, salvo aqueles aprovados na forma do artigo 5º, § 3º, CF.

Direito ambiental e direitos humanos

Mais recentemente, é digno de nota o fato de o STF consolidou sua posição no sentido de que os tratados internacionais em matéria ambiental são também tratados de direitos humanos, fruindo, por via de consequência, da mesma hierarquia supralegal. Além disso, é também de destacar o fato de que não só, mas em especial no STF, tem crescido de modo significativo o número de decisões invocando, na sua fundamentação, tratados de direitos humanos, mas também julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, embora quanto a este ponto ainda exista alguma resistência, a depender da matéria.

Do ponto de vista legislativo, é preciso lembrar que o Congresso Nacional não apenas inseriu o mencionado parágrafo terceiro no artigo 5º da CF, como já aprovou quatro tratados internacionais mediante o rito nele previsto, designadamente, a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, o seu protocolo adicional, a Convenção de Marraquexe e, mais recentemente, a Convenção interamericana contra todas as formas de discriminação.

É igualmente evidente que também nesse domínio, a despeito dos significativos avanços, não são poucas as críticas que ressoam em diversos meios. Esse é o caso, por exemplo, daqueles (dentre os quais me encontro) que criticam o Congresso Nacional por não ter assegurado hierarquia constitucional a todos tratados internacionais de direitos humanos. Em relação ao STF, segue a crítica de que ainda não atribuiu aos tratados o seu devido status constitucional, como também acabou por chancelar a existência de dois tipos de tratados, os que tem hierarquia de emenda constitucional e os que têm hierarquia supralegal, quando desde a promulgação da nossa atual Carta Política, já deveria, nos termos do artigo 5º, § 2º, reconhecer que todos os tratados integram — com o mesmo valor jurídico dos expressa ou implicitamente previstos na Constituição — o nosso bloco de constitucionalidade.

Os críticos, que representam expressiva e dominante parcela da doutrina, partem, dentre outros argumentos, da concepção — como já visto, adotada pelo Constituinte de 1988 — de que direitos fundamentais são sempre de matriz constitucional, não sendo razoável sustentar a tese contrária, não apenas pelo motivo citado, como pelo fato de que interpretar o comando normativo contido no artigo 5º, § 2º, representa uma evidente contradição. Isso porque não faz sentido que, a despeito do expressamente (e claramente) prescrito no referido dispositivo, se entenda que os direitos previstos em tratados internacionais tenham valor normativo inferior ao dos direitos fundamentais contemplados na CF.

STF e proteção de direitos fundamentais

Outro dado a sublinhar, já num outro contexto, é o de que, em termos gerais e amplamente majoritários, o STF tem cumprido com seu papel no que diz respeito à proteção dos direitos fundamentais, inclusive em tempos de crise, como se viu durante o período em que grassou implacavelmente a pandemia do Covid-19, mas também no que diz respeito ao enfrentamento dos ataques às instituições democráticas, incluindo a própria Corte Suprema. O mesmo pode ser dito, também em caráter ilustrativo, em relação à defesa das liberdades fundamentais, das minorias e/ou grupos vulneráveis, incluindo o combate à discriminação e as políticas de ações afirmativas.

Outro exemplo, já lembrado quando da menção aos tratados internacionais, diz respeito à agenda ambiental, posto que, também em termos gerais (há, por certo, casos discutíveis) e de modo progressivamente mais intenso, o STF tem assegurado um nível cada vez maior de proteção ao direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado, a começar pelo fato de já nos anos 1990 ter reconhecido a fundamentalidade desse direito, mesmo diante do fato de que este foi consagrado no título da ordem social — artigo 225, CF, e não no Título II. Valendo-se do disposto no artigo 5º, § 2º, CF, o STF entendeu que a fundamentalidade do direito à proteção do meio ambiente se deve ao fato de sua relevância — e, calha agregar, até mesmo de seu caráter cada vez mais imprescindível para a fruição dos demais direitos fundamentais. De lá para cá, são recorrentes os exemplos a demonstrarem uma posição amiga do STF para com o meio ambiente, o que já se estendeu também para a seara climática como dá conta o julgamento, ainda recente, dos casos “Fundo Clima” e “Fundo Amazônia”.

Também em matéria de direitos sociais, destaque para os direitos à educação e à saúde, na perspectiva de uma atuação protetiva por parte da sem dúvidas majoritária parcela da doutrina e da jurisprudência), os desenvolvimentos pós-1988 foram positivos, o que não quer dizer que com isso se tenha (e se possa) resolver os ainda graves problemas verificados nesses setores, mas que também se manifestam, em maior ou menor medida em outras áreas, como é o caso, v.g. da moradia, da assistência social e do trabalho. Aliás, especialmente no tocante aos direitos dos trabalhadores, é possível registrar vários casos (mas de longe não todos) em que, fixando-nos aqui apenas na jurisprudência do STF, a orientação que acabou prevalecendo foi e pode ser tida — na ótica dos defensores de tais direitos —, como menos protetiva do que o constitucionalmente exigido.

Uma seara particularmente delicada sempre foi a dos direitos e garantias fundamentais na esfera do direito penal e processual penal, em relação aos quais acabou se estabelecendo, em vários momentos — amplo destaque para o que se deu na época do assim chamado “mensalão” e, com uma dimensão jamais imaginada, com a operação “lava-jato” — um clima de aguda tensão e mesmo confronto que chegou a alcançar até mesmo a nossa Suprema Corte, como dá conta, apenas para mencionar um exemplo dentre muitos, da discussão, ainda em andamento mas ora num ambiente substancialmente menos contaminado, a respeito da assim chamada execução provisória da pena. Ainda assim, também no tocante aos direitos fundamentais penais e processuais penais, o balanço geral dos últimos anos é mais favorável do que o contrário, sendo numerosos os exemplos que poderiam ser colacionados, como é o caso de julgados sobre a progressão de regime da pena, o direito à ressocialização, a ampliação dos casos de prisão domiciliar, a proibição do anonimato, o tráfico privilegiado, a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, dentre tantos outros.

É claro que também nesse domínio existem fundadas razões para algumas preocupações, tal como se pode constatar, novamente à guisa de exemplo, com o direito à inviolabilidade do domicílio, onde se está a divisar, pelo menos à vista de algumas decisões mais recentes, uma questionável tendência de flexibilização de algumas barreiras do abuso de autoridade. Um outro desenvolvimento controverso, já verificado quando do julgamento do famoso caso “Ellwanger” (ressalve-se a nossa concordância com o resultado) da primeira metade dos anos 2000, mas que tomou contornos mais agudos e controversos em tempos recentes, é o da criminalização, pelo STF, de condutas (cujo caráter nefasto e juridicamente ilegítimo é sem dúvida evidente) à revelia do legislador e de acordo com não poucos críticos, de encontro a legalidade estrita que de há muito orienta também a nossa ordem jurídica.

Antes de finalizar, cabe sublinhar que para a proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões, não se pode mirar apenas a atuação do Poder Judiciário, que, ainda que indispensável, depende de provocação e do labor de outros atores, ademais da disponibilidade de meios e instrumentos adequados. Nesse contexto, o Constituinte também acertou ao reforçar as garantias institucionais e funcionais dos órgãos indispensáveis ao sistema de Justiça, como é o caso do Ministério Público, da Defensoria Pública e da advocacia pública e privada. Da mesma forma — ilustrando aqui a parte relativa aos instrumentos —, mesmo que se possa discutir alguns pontos (v.g. a possibilidade de propositura de ações de controle abstrato de constitucionalidade por partido político de baixa representatividade no Congresso), a ampliação da legitimidade para acionar o STF no domínio do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade é de ser saudada e parabenizada.

Mas como já adiantado, já com base no sumariamente exposto, é (e deveria ser) possível afirmar que, pelo menos na perspectiva legislativa e jurisprudencial (sem prejuízo da existência de boas iniciativas e práticas no âmbito do Poder Executivo) aqui destacando-se a prática decisória do STF e dos demais atores envolvidos, há mais a comemorar do que lamentar relativamente à evolução da proteção dos direitos fundamentais na perspectiva do marco jurídico-constitucional nos últimos 35 anos.

Por outro lado, não se pode fechar os olhos para os ainda graves níveis de efetividade, ou seja, eficácia social, que se podem constatar e que estão até numa situação mais crítica em alguns setores que dizem respeito à fruição de direitos fundamentais, como é o caso, dentre outros, da pobreza, trabalhabilidade, desigualdades sociais, proteção de minorias e grupos vulneráveis, saúde, educação, acesso a uma moradia digna e meio ambiente. Nesse contexto, é de ser sublinhado que a efetividade dos direitos fundamentais e das “promessas” constitucionais, deve ser compreendida na perspectiva de uma responsabilidade compartilhada do Estado e da sociedade, e, portanto, de todos e de cada um. Afinal, a dignidade humana não é a do indivíduo isolado e egoísta, mas sim de pessoas socialmente integradas e responsáveis.

Fonte: ConJur

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