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Os direitos fundamentais nos 35 anos da Constituição (parte 1)
Ingo Wolfgang Sarlet
04/12/2023
Embora não tenham sido poucas as crises, em especial no que concerne o ambiente extremamente polarizado — e os constantes e mesmo ferinos ataques às instituições democráticas, em especial as endereçadas ao STF, TSE e Congresso — e que atingiu o seu ápice quase surreal com os atos sem precedentes praticados no dia 8 de janeiro deste ano, a nossa Constituição (justamente designada desde o seu nascedouro como Constituição Cidadã), que acabou de completar seus 35 anos de existência em 5 de outubro p.p., tem-se mostrado resistente e resiliente.
Além disso, a despeito de já ter sido emendada 137 vezes (incluindo as seis assim chamadas emendas constitucionais de revisão), é possível afirmar que, mesmo com a alteração de centenas de dispositivos do texto constitucional (incluindo aqui uma série de acréscimos), e mesmo tendo ocorrido em não poucos casos restrições nem sempre legítimas a direitos fundamentais, ademais de outras mudanças questionáveis e questionadas (v.g. na ordem econômica, social), o balanço geral, em especial focando o núcleo identitário da Constituição — destaque para os princípios gerais e estruturantes do Título I e os direitos e garantias fundamentais (Título II) —, é positivo.
Principais conquistas da Constituição de 1988
Como não se pretende aqui oferecer um inventário mais minucioso, que, mesmo apenas considerando os direitos fundamentais, demandaria dezenas de colunas, é o caso de traçar, à luz de alguns exemplos, um panorama geral da trajetória constitucional desde a sua promulgação. Nessa perspectiva, importa sempre relembrar algumas das mais importantes conquistas consagradas no texto que veio a ser promulgado em 5 de outubro de 1988, iniciando pelo que se poderia chamar de uma parte geral e estruturante do sistema constitucional de direitos.
Um aspecto a enfatizar desde logo é o fato de que pela primeira vez a terminologia direitos fundamentais foi adotada num texto constitucional brasileiro, o que, somado a outros elementos, assume um valor de longe não meramente simbólico. Note-se que apenas na segunda metade do século 20 a adesão à terminologia vem sendo difundida em larga escala, porquanto antes disso, ao que se sabe, apenas a Constituição alemã de Weimar, 1919, e a efêmera Constituição da Igreja de São Paulo, Frankfurt, 1849 — catálogo de direitos de 1848 — utilizavam o termo. De fato, foi com a Lei Fundamental da então República Federativa Alemã, de 1949 (na então Alemanha Ocidental), que ocorreu a incorporação de uma, na época nova, e, especialmente, mais robusta, concepção de direitos fundamentais, que, por sua vez, guarda relação direta com a terminologia, concepção essa que foi adotada no Brasil, em especial no texto constitucional, na nossa atual Constituição Federal. Dão conta disso — em termos textuais — pelo menos quatro exemplos.
O primeiro, embora não contemplado no Título dedicado aos direitos fundamentais, foi a inclusão da dignidade da pessoa humana (que, por sua vez, também assume a condição direito fundamental), como princípio geral e estruturante, dotado de eficácia normativa, a orientar e iluminar toda a ordem jurídico-constitucional, mas com especial relevância no campo dos direitos fundamentais, o que não equivale a dizer que todos os direitos fundamentais tenham fundamento direto na dignidade humana, tampouco seu núcleo essencial a essa reduzido, aspecto que aqui não há como desenvolver.
O segundo ponto a destacar reside na afirmação (artigo 5, § 1º, CF) de que as normas definidoras de direitos fundamentais têm aplicação imediata, enunciado que, como mais do que sabido, influenciou imensamente (embora de modo diversificado) a força normativa dos direitos. Note-se, além do mais, que a partir disso ganhou força e se consolidou o entendimento de que as normas de direitos fundamentais vinculam, diretamente e sem lacunas, todos os órgãos estatais, inclusive projetando-se nas relações privadas, a despeito da querela em torno de como se dá a eficácia das referidas normas nesse domínio.
Uma terceira conquista digna de nota foi a incorporação, na já tradicional (desde a Constituição de 1891) cláusula de abertura (não taxatividade) do catálogo de direitos fundamentais (artigo 5º, § 2º, CF), dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Tal novidade soma-se à previsão, no artigo 4º da CF — que incorporou ao texto constitucional um inédito conjunto de princípios que regem a atuação do Brasil no âmbito das relações internacionais —, de um inciso (II) que afirma a prevalência dos direitos humanos.
A quarta novidade, que aqui é imperativo recordar, foi a inclusão (artigo 60, § 4º) do voto direto, secreto, universal e periódico (inciso II), bem como de todo o conjunto de direitos e garantias individuais (inciso IV) no rol das assim chamadas cláusulas pétreas, ou seja, dos limites materiais ao poder de reforma constitucional.
Tudo somado e sem prejuízo de outros desenvolvimentos a serem ainda apresentados, é possível verificar que os “pais e mães” da nossa Constituição optaram por uma concepção forte de direitos fundamentais, que remonta (embora com algumas diferenças) substancialmente àquela adotada, na época de modo original e inédito, pela Lei Fundamental da Alemanha (1949), e que, por sua vez, foi assumida por muitos estados constitucionais, destaque dado para a Constituição da República Portuguesa de 1976, que influenciou de modo significativo, em vários aspectos, o nosso próprio Constituinte. Em suma, também na nossa ordem constitucional os direitos fundamentais passaram a ser fundamentais para valer, visto que dotados de um regime jurídico qualificado, reforçado e diferenciado e, portanto, não se limitando à condição de meros direitos constitucionais.
Direitos fundamentais
Vista, em traços gerais, a parte geral relativa aos direitos fundamentais, chama a atenção também a dimensão do catálogo de direitos, que muito cresceu em termos quantitativos e qualitativos relativamente às constituições pretéritas. Nesse sentido, sem entrar em maior detalhamento, houve uma significativa expansão dos assim chamados direitos individuais e coletivos (basicamente, os direitos civis e políticos), contemplados no artigo 5º, mas também a consagração como fundamentais, dos direitos sociais, culturais, econômicos e ambientais, além de um detalhado e expressivo conjunto de direitos dos trabalhadores.
Também é de se chamar a atenção para o fato de que, apesar de ainda não terem sido ratificados e incorporados os principais tratados gerais de direitos humanos (os dois pactos da ONU, respectivamente sobre direitos civis e políticos e sobre direitos econômicos, sociais e culturais, bem como a Convenção Americana e o Protocolo de San Salvador), praticamente todos os direitos contemplados nesses documentos já se fizeram presentes no nosso texto constitucional de 1988.
Da mesma forma, muito embora as recorrentes críticas endereçadas ao número de direitos fundamentais e à (alegada) falta de fundamentalidade material de muitos dos direitos, a evolução que se deu de 1988 para cá, mostrou a inconsistência de tais críticas, visto que, não apenas os direitos previstos no catálogo originário foram mantidos, mas também outros foram acrescidos mediante emendas constitucionais, como é o caso dos direitos à moradia, à alimentação, ao transporte, à renda básica familiar, à razoável duração do processo e à proteção de dados pessoais.
Além disso, um número significativo de direitos foi acrescido por meio do reconhecimento, por parte do STF (valendo-se do poder-dever previsto no artigo 5º, § 2º), da fundamentalidade de outros direitos constantes em outras partes do texto constitucional (v.g. meio ambiente, greve dos servidores públicos, motivação das decisões judiciais, igualdade dos filhos e dos cônjuges), mas também pelo reconhecimento, igualmente pela jurisdição constitucional, de direitos implícitos (não expressamente positivados), como é o caso, em caráter exemplificativo, do sigilo fiscal e bancário, do direito à ressocialização dos presos, da identidade genética, do direito ao nome, tudo a demonstrar que tanto o Congresso Nacional quanto o STF têm, em geral, sido sensíveis às novas demandas geradas pelas mudanças econômicas, sociais, culturais, inclusive no respeitante às novas tecnologias.
Um outro aspecto que cabe ser referido, no concernente à evolução ocorrida desde a promulgação da CF, está ligado ao fato de que o Poder Judiciário, representado pelo STF, deu — novamente em termos gerais — maior robustez ao regime jurídico dos direitos fundamentais, o que pode ser demonstrado especialmente pela aplicação do disposto no artigo 5º, § 1º ao universo dos direitos sociais, aqui tomado em sentido amplo. Tal movimento também é aferível pela circunstância de que o STF, pelo menos até o presente momento, tem feito uma leitura ampla dos limites materiais à reforma constitucional, não apenas estendendo-as a todos os direitos fundamentais, como também admitindo limites materiais implícitos. Além disso, foi (embora não por isso) a partir da fórmula adotada pelo § 4º do artigo 60 (não serão objeto de deliberação emendas tendentes a abolir…), que o STF, em diversos casos, firmou o entendimento de que a condição de uma cláusula pétrea não significa que não possam ocorrer ajustes e mesmo restrições, desde que preservado o seu núcleo essencial.
É claro que também os desenvolvimentos referidos nunca foram imunes a críticas, em parte apoiadas em razões de relevo e mesmo não raras vezes procedentes, o que não afeta o quadro geral positivo, pelo menos na leitura que aqui se faz. Nesse contexto, dentre outros pontos que se poderia levantar, situa-se tanto a recorrente denúncia da invasão, pelo Poder Judiciário, da esfera de atuação reservada aos Poderes Legislativo e Executivo (v.g. no campo da judicialização dos direitos sociais), quanto a crítica relacionada com uma hipertrofia questionável dos princípios e direitos fundamentais. Da mesma forma, é possível afirmar que nem sempre o STF bem manejou a em si correta concepção do núcleo essencial dos direitos fundamentais, o que também se pode (com bem maior frequência) dizer em relação ao modo pelo qual a nossa Suprema Corte tem aplicado os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Para não cansar o leitor, os demais tópicos que se intenciona apresentar serão abordados na próxima coluna.