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Menos é mais: precisamos restringir a iniciativa legislativa

João Trindade Cavalcante Filho

João Trindade Cavalcante Filho

05/09/2024

Uma das coisas que mais irritam a quem pesquisa o Legislativo ou nele trabalha são as “estatísticas” que “mensuram” a “produtividade” desse Poder em termos de quantidades de projetos de lei apresentados ou aprovados. Grassam nos noticiários números superlativos, parlamentares se vangloriam em posts de terem apresentado “x” ou “y” proposições, concorrem ao Prêmio Congresso Desfocado, ou algo que o valha, parlamentares que mais apresentam propostas… Quando não são as próprias Casas Legislativas que se “justificam” perante a sociedade alegando que “aprovaram no último semestre tantos projetos de lei”… Como se o Brasil precisasse de mais leis!

Parêntese. Em 2019 fui/fomos obrigados a passar uma vergonha internacional involuntária. O Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonos, da Universidade de Lisboa, sugeriu que, na segunda reunião ordinária bienal do projeto, cada representante de um país apresentasse os números da produção legislativa de sua região. Não só o Brasil foi obviamente o “campeão” em leis aprovadas (mau sinal…), como detinha mais que o somatório de todos os outros países juntos! Ao que um colega ainda tentou nos “consolar”: “mas é porque vocês são uma Federação…”. Mal sabia ele que os números diziam respeito apenas à produção legislativa em nível federal! Fecha parênteses.

Corrida pela autoria

Lembro-me bem de uma competente assessora parlamentar no Senado que, lá nos idos de 2014, bem sabendo que os “prêmios” premiavam a quantidade, não a qualidade, sempre ligava no meu ramal na Consultoria Legislativa: “João, não tem aí nenhum projetinho sobrando? Não precisa nem ser bom, é só pra dar estatística”…

E olha que na esfera federal o quadro ainda é um pouco menos pior do que nos estados. É que, em boa parte das Assembleias Legislativas, adota-se a (reprovável) prática de que os projetos de lei aprovados saiam com o nome dos respectivos autores. Isso cria uma corrida pela autoria, em que vários parlamentares tentam “pegar carona” nas autorias uns dos outros, além de brigarem pela “paternidade” ou “maternidade”. Sem contar com o fato de que, muitas vezes, o projeto aprovado nada, ou quase nada, tem a ver com a proposição inicial.

Resultado disso: uma profusão de projetos de lei cujo destino é o arquivo, sem que nem sequer sejam apreciados nas comissões. Para se ter ideia, quase 80% (mais precisamente 78,49%) dos projetos de lei apresentados no primeiro ano da 55ª Legislatura na Câmara dos Deputados foram arquivados ao final da legislatura sem nem mesmo terem a constitucionalidade analisada no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça [1]. De que adianta admitir que qualquer parlamentar apresente um projeto de lei, mas arquivar quase 80%? Aliás, se recortarmos nesse universo apenas as proposições apresentadas por parlamentar (excluídas, portanto, as autorias do Executivo, do Judiciário, etc.), o percentual de arquivamento sem apreciação de constitucionalidade chega a quase 90%.

Comparativo

Aliás, problemas semelhantes (excesso de proposições de autoria parlamentar e grande número de arquivamentos ao final da legislatura) são noticiados também na Coreia do Sul [2]. Vale a pena citar que esse problema ocorre num país cujo ordenamento já exige que a iniciativa legislativa de deputado seja apoiada por dez outros parlamentares, a fim de que possa ter seguimento. Na Alemanha, o poder de iniciativa paramentar é admitido, mas desde que a subscrição atinja 5% dos membros do Parlamento Federal [3]. Ora, se isso é um problema em relação a ordenamentos em que é exigida alguma porcentagem dos membros da Casa para desencadear o processo legislativo, que dirá em relação ao Brasil, no qual se admite a iniciativa individual…urn:uuid:8792eb42-4f3c-4de0-8274-c266853f05bb

Na verdade, é preciso encarar os fatos: de que adianta qualquer um poder colocar a pedra no pé da montanha, se é preciso uma força de Golias para fazê-la mover-se? Qual a vantagem, para um deputado isoladamente, em poder propor sozinho um novo Código Penal, mas isso não ser sequer apreciado em comissões? Seria melhor condicionar o exercício da iniciativa a uma determinada porcentagem dos parlamentares (assim como acontece em relação às propostas de emenda à Constituição), mas que esse número menor de proposições fosse realmente analisado pelas Casas Legislativas.

Sugestão

Recomendável, portanto, condicionar o exercício da iniciativa parlamentar individual ao apoiamento por um determinado número de membros das Casas – na sugestão formulada, um décimo. Com efeito, se não se pode criar barreiras muito intensas ao exercício do poder de iniciativa pelos parlamentares, também não se mostra funcional um sistema em que, apenas no ano de 2015, a Câmara dos Deputados teve 4.259 PLs apresentados, sendo a esmagadora maioria de iniciativa parlamentar individual. A diferença inclusive da efetividade entre o controle de constitucionalidade incidente sobre PL daquele que tem por objeto PECs vem a reforçar a impressão da disfuncionalidade do modelo de iniciativa parlamentar individual pura.urn:uuid:69be5c92-f185-4224-bdbd-54637481389a

É provável que haja resistência parlamentar a essa proposta? Claro que sim. Mas é possível que os próprios membros do Parlamento se convençam de que, às vezes, menos é mais: melhor ser “forçado” a apresentar uma proposta com apoio dos colegas, do que propor um PL individualmente e ele ser fadado ao arquivo eterno. Pode ser otimismo? Pode, mas “sonhar não custa nada”.

Fonte: ConJur

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LEIA TAMBÉM


[1] Cf. o levantamento que fiz, em relação ao ano de 2015, na tese de doutorado que defendi na USP em 2021: CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Análise da Efetividade do Controle Preventivo de Constitucionalidade pelo Legislativo. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/003152197.

[2] “During the 19th National Assembly, the members proposed 16,664 bills, and more than ten-thousand bills, excluding 2,305 that passed, are set to be discarded due to expiration of the term.” (HONG, WanSik. Rationalization of government legislation procedures.In: CONGRESS OF THE INTERNATIONAL ASSOCIATION OF LEGISLATION, 11th, 2014, Seoul. Innovation of legislative process. Seoul: International Association of Legislation, 2018. p. 85-122. Disponível em: https://ial-online.org/wp-content/uploads/2019/01/INNOVATION-OF-LEGISLATIVE-PROCESS.pdf

[3] Cf. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1998. p. 388

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