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Liberdade de expressão na Copa do Mundo do Qatar
Anderson Schreiber
06/02/2023
“A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana” – a célebre frase de Nelson Rodrigues sintetiza o sentimento de muitos brasileiros: o futebol vai muito além de jogar bola. A realização de uma competição futebolística suscita frequentemente questões morais, políticas e até – por que não? – jurídicas. A Copa do Mundo do Qatar, em particular, tem desafiado o Direito sob diferentes perspectivas. Desde a escolha do país-sede, em 2012, a competição tem sido cercada de polêmicas, que vão das acusações de corrupção para a compra de votos até as graves denúncias de violação de direitos humanos no Qatar – que se exprimem de modo flagrante na restrição de direitos às mulheres e na criminalização de relações homoafetivas no país, passando, ainda, pela exploração de imigrantes na construção dos próprios estádios que recebem as partidas. Recentemente, um dos diretores do Comitê da Copa do Mundo reconheceu a morte de cerca de 500 operários na construção dos suntuosos estádios erguidos no deserto, mas uma investigação, ainda inconclusa, alude a mais de 6.000 óbitos.[1]
Copa do Mundo do Qatar
Todas estas polêmicas deflagraram, antes mesmo do início da Copa do Mundo do Qatar, uma série de protestos internacionais. A fornecedora de material esportivo da Dinamarca, por exemplo, inseriu sua logomarca na mesma cor do próprio uniforme com o objetivo de “não estar visível durante torneio que custou a vida de milhares de pessoas”.[2] Os Estados Unidos da América aplicaram as cores do arco-íris no escudo da seleção exibido nas instalações de seu centro de treinamentos.[3] E o País de Gales utilizou a bandeira da comunidade LGBTQIAP+ com o brasão do próprio país no seu campo de treinos.[4]
Os atletas também protestaram de diferentes formas. Capitães de sete seleções nacionais – Holanda, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Suíça e País de Gales – concordaram em utilizar, durante as partidas da Copa do Mundo do Qatar, braçadeiras com a mensagem “One Love”, fruto de uma campanha lançada em 2020 pela Real Federação Holandesa de Futebol contra a discriminação da população LGBTQIAP+.[5] E o fizeram cientes de que poderiam sofrer sanções da FIFA, cujo regramento impede a veiculação no uniforme dos jogadores de mensagens, slogans ou declarações de natureza “política, religiosa ou pessoal”.[6] Nesse contexto, o Presidente da Federação Inglesa, Mark Bullingham, chegou a declarar: “é possível que sejamos sancionados. Se assim for, pagaremos a multa. Acho que é muito importante mostrar os nossos valores e é o que faremos. É triste para nós que alguns dos nossos fãs LGBT tenham decidido não ir ao Catar. É frustrante.”[7]
Ao início de cada jogo, as equipes de arbitragem foram orientadas a fiscalizar e efetivamente fiscalizaram, de modo detido, os capitães de cada seleção. Tornou-se emblemática a imagem de um bandeirinha conferindo a faixa de capitão utilizada pelo goleiro da seleção alemã, Manuel Neuer, antes de dar início à partida entre Alemanha e Japão.[10] Nada disso, contudo, impediu as variadas formas de protesto: a seleção inglesa tem se ajoelhado antes do início dos jogos,[11] enquanto todos os jogadores da seleção alemã posaram para a fotografia oficial da sua partida de estreia com as mãos sobre a boca, em uma crítica evidente à censura promovida pela FIFA – a qual, a propósito, deixou de registrar o protesto nas transmissões oficiais daquele jogo.[12]
Tentativa de restrição à liberdade de expressão
A tentativa de restrição à liberdade de expressão por parte de atletas não é, naturalmente, um fenômeno exclusivo da Copa do Mundo do Qatar. Para ficar em apenas um exemplo, quando uma série de protestos se disseminou por competições desportivas nos Estados Unidos, após o brutal assassinato de George Floyd , ganhou destaque na mídia a forma como diferentes ligas, incluindo a National Football League (NFL), a National Basketball Association (NBA) e a Major League Baseball (MLB), possuem regramentos que limitam a liberdade de expressão de seus jogadores, com o intuito de preservar uma pretensa neutralidade política dos espetáculos esportivos.[13]
O tema, a rigor, também não chega a ser novo: há quase cinquenta anos, em 1968, os corredores Tommie Smith e John Carlos protagonizaram o pódio mais famoso de toda a história dos Jogos Olímpicos, ao baixarem as cabeças durante a execução do hino norte-americano e erguerem os punhos cerrados, com luvas pretas, símbolo dos Panteras Negras, organização que havia sido fundada dois anos antes para lutar pelos direitos da população negra dos Estados Unidos. Embora, hoje, o gesto seja lembrado com exaltação pela mídia mundial, não foi o que ocorreu à época: os dois medalhistas foram duramente criticados pela imprensa e sofreram sanções do Comitê Olímpico Internacional, que cancelou seus vistos de permanência no México, que sediava aquela edição dos Jogos, e os expulsou da Vila Olímpica.[14]
Entidades privadas podem impor restrições à liberdade de expressão?
Mas, afinal, podem entidades privadas, como são a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional, impor restrições à liberdade de expressão dos atletas, ou dos próprios torcedores, ao argumento de que é preciso preservar o esporte, como fenômeno de união entre os povos, livrando-o de manifestações de cunho político ou ideológico?
Não parece haver dúvida de que a pretensa neutralidade política das competições esportivas é fruto, em larga medida, da transformação do próprio significado do esporte, que vem deixando, historicamente, o campo do jogo e do lúdico para se converter em entretenimento midiático e verdadeiro produto de consumo na sociedade contemporânea.[15] Nesse contexto, a assepsia política do esporte parece atender, mais diretamente, não a um genuíno espírito de união entre os povos, mas aos variados interesses econômicos envolvidos na transmissão global de eventos desportivos. É nesse contexto que as entrevistas de atletas ao fim das disputas vão sendo progressivamente despidas de toda e qualquer particularidade, fruto de longas horas de media training, como parte do processo de estandardização típico dos bens de consumo. Na mesma direção, regramentos de numerosas competições esportivas reprimem expressamente a interferência de questões políticas ou religiosas no jogo. A questão consiste em saber se essa pretensa neutralidade política do esporte pode ser assegurada por meio de regramentos desportivos que proíbam ou sancionem de qualquer forma a livre manifestação de pensamento de atletas e torcedores.
No Direito brasileiro, como se sabe, a liberdade de expressão consiste em garantia constitucional, que encontra duplo fundamento: (a) seu caráter imprescindível para o livre desenvolvimento da pessoa humana (Constituição, artigo 5º, IX); e (b) seu papel insubstituível na composição de um Estado Democrático de Direito, em que a ampla circulação e o livre debate de ideias e opiniões assumem caráter indispensável à formação da vontade coletiva. A Constituição impede, expressamente, que a liberdade de expressão seja submetida a qualquer tipo de “censura ou licença”.[16] Licença é a prévia autorização para a exteriorização do conteúdo derivado de certo exercício da liberdade de expressão. Censura é restrição ao exercício da liberdade de expressão realizada por terceiro em situação de poder, que resulta na proibição ilegítima de veiculação de determinado conteúdo. A proibição da censura encontra-se historicamente atrelada a ações do Estado, como ocorreu no Brasil durante a ditadura militar. A censura pode, todavia, se consubstanciar na prática de entes privados, que detenham posição de poder por razões sociais ou econômicas.
Assim, empresas privadas que impedem manifestações políticas de seus empregados, diretores de escolas particulares[17] que cerceiam a liberdade de expressão de seus alunos, clubes que punem seus atletas por protestos políticos ou pela livre manifestação de suas ideias, todos podem, em última análise, ser chamados a responder por violação à Constituição da República. Isso porque a proteção dos direitos fundamentais não se limita a uma proteção em face do Estado, mas se estende às relações entre particulares. Nessa direção, já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.”[18]
Tutela constitucional da liberdade de expressão
A tutela constitucional da liberdade de expressão não pode, evidentemente, ser afastada no âmbito das práticas desportivas organizadas por entidades privadas. Significa dizer que a estipulação de regramentos desportivos que restrinjam aprioristicamente a liberdade de expressão dos atletas ou dos torcedores se afigura inconstitucional à luz do Direito brasileiro.
O que dizer, todavia, do Qatar? Embora soberano como nação, o país-sede da Copa do Mundo do Qatar não pode ser visto como uma espécie de terreno livre para que a censura privada silencie vozes de protesto, especialmente quando não se trata, a rigor, de um protesto dirigido a certo governo ou facção partidária, mas em prol de valores que integram a ordem pública internacional, tais como o acolhimento da diversidade e do pluralismo. À luz do próprio regramento da FIFA, as manifestações de atletas em favor do respeito a direitos fundamentais da população LGBTQIAP+ dificilmente poderiam ser enquadradas como “mensagens, slogans ou declarações de natureza política, religiosa ou pessoal”. A própria FIFA não interpreta deste modo, por exemplo, mensagens de combate ao racismo, que têm sido frequentemente empunhadas por seleções em competições realizadas fora do Qatar. Além disso, se as manifestações em favor do respeito aos direitos humanos da população LGBTQIAP+ pudessem ser consideradas como mensagens “políticas”, as braçadeiras oficiais confeccionadas e distribuídas pela própria FIFA também o seriam, pois dizer “não à discriminação” significa, em termos de natureza da mensagem, exatamente o mesmo, apenas que de modo mais genérico e acovardado. E não se pode supor que a FIFA teria decidido violar voluntariamente suas próprias regras.
A verdade é que a realização de um espetáculo esportivo de abrangência internacional, como é a Copa do Mundo do Qatar, consiste justamente em incentivo ao exercício da liberdade de expressão. Não só atletas se exprimem, mas também os torcedores, que têm ali uma oportunidade única de manifestar o orgulho por seu país, a admiração ao craque, a indignação contra o pereba, a alegria e a tristeza dos resultados surpreendentes que fazem do futebol um esporte tão especial. Tentar privar torcedores e atletas de expor, nesse contexto, suas ideias e suas críticas às suas próprias nações ou às demais – e à própria entidade privada organizadora do espetáculo – é como pretender incentivar a emoção só até a página dois. Não tem como funcionar.
Na França, durante a Copa do Mundo de 1998, uma singela partida da primeira fase marcou para sempre a memória dos presentes ao Stade de Gerland: Irã e Estados Unidos, países que não mantinham relações diplomáticas há quase vinte anos, enfrentaram-se em campo. A realização da partida era cercada de tensão e foram adotados cuidados especiais com a segurança no estádio. Antes do apito inicial, os jogadores do Irã surpreenderam o público, entregando flores aos seus adversários. Os atletas de ambas as seleções posaram juntos para fotografias, empunhando as bandeiras das duas nações, lado a lado, como não se via há muito tempo. A bola havia feito mais pelo diálogo do que duas décadas de diplomacia.[19]
O futebol tem muito a oferecer ao mundo, se os organizadores das competições souberem respeitar valores fundamentais, como a liberdade de expressão e o combate à discriminação e ao preconceito. É, voltando ao início, “o óbvio ululante”.
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NOTAS
[1] Confira-se a reportagem intitulada Comitê da Copa do Mundo rebate diretor sobre mortes de trabalhadores e ‘corrige’ número, publicada no Estadão, em 29 de novembro de 2022: “Hassan Al Thawadi, um dos chefes da organização do Mundial, disse em entrevista que cerca de 500 operários morreram durante os preparativos; órgão cita 40 mortes, mas investigação aponta para 6.500 óbitos”
[2]Dinamarca usa camisa monocromática para esconder símbolo em protesto contra o Catar (globoesporte.com, 24.11.2022).
[3]EUA adornam centro de treinamento na Copa com escudo nas cores do arco-íris (Folha de S. Paulo, 14.11.2022).
[4]País de Gales desafia FIFA e Qatar com bandeira de arco-íris (Folha de S. Paulo, 23.11.2022).
[5]Entenda o que é a braçadeira ‘One Love’ e por que a FIFA a proibiu (Folha de S. Paulo, 24.11.2022).
[6] Confira-se o teor do regramento da FIFA acerca da matéria: “Law 4 – The Players Equipment: – Basic compulsory equipment. The basic compulsory equipment must not have any political, religious or personal slogans, statements or images. The team of a player whose basic compulsory equipment has political, religious or personal slogans or, statements or images will be sanctioned by the competition organizer or by FIFA. – Undergarments. Players must not reveal undergarments that show political, religious, personal slogans, statements or images, or advertising other than the manufacturer logo. A player/team of a player that reveals an undergarment that shows political, religious, personal slogans, statements or images, or advertising other than the manufacturer logo will be sanctioned by the competition organizer or by FIFA.”
[7]Inglaterra não teme a multa: “Vamos mostrar os nossos valores” (O Jogo, 18.11.2022)
[8]FIFA ameaça dar cartão amarelo, e seleções desistem de braçadeira contra homofobia (Folha de S. Paulo, 21.11.22).
[9]FIFA lança suas próprias braçadeiras de capitão para Copa (Folha de S. Paulo, 19.11.2022)
[10]Alemanha protesta em foto; Neuer esconde braçadeira: “Direitos humanos são inegociáveis” (globoesporte.com, 23.11.2022)
[11]Inglaterra vai se ajoelhar em protesto contra racismo na estreia da Copa (Portal Uol, 20.11.2022)
[12]Transmissão oficial da FIFA ignora protesto de jogadores da Alemanha (Portal Uol, 23.11.2022).
[13]Como ligas dos EUA regulamentam ativismos e protestos de atletas (Folha de S. Paulo, 11.6.2020).
[14]Protesto que marcou a história das Olimpíadas até hoje reverbera e provoca tensão (G1, 11.07.2021).
[15] Sobre o tema, ver a obra seminal de José Miguel Wisnik, Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[16] “Art. 5º (…) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
[17] Escolas particulares, registre-se, exercem atividade privada de interesse público, que depende de prévia autorização do Poder Público (Constituição, art. 209, II).
[18] STF, 2ª T., RE 201.819/RJ, rel. min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2005, que acrescenta: “ (…) A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia privada da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transigir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.”
[19] Aquela partida terminou com vitória do Irã por 2 x 1. Nesta Copa do Qatar, em clima bem mais ameno, os dois países voltaram a se enfrentar, desta vez com vitória dos americanos por 1 x 0.